Pior do que os mais céticos imaginavam, o Novo Ensino Médio (NEM), fruto da açodada Medida Provisória nº 746 de 2016, transformada em Lei nº 13.415 de 2017, ambas no governo de Michel Temer, mostrou-se um fracasso, tragédia. Verdadeira catástrofe na etapa final da Educação Básica.
Diante das inúmeras queixas e mobilizações de estudantes, entidades de professores, estudiosos sobre educação e publicações na mídia convencional denunciando que a suposta flexibilidade curricular propalada provocou, na realidade, aberrações pedagógicas – disciplinas sem lastro científico, como aquelas sobre “brigadeiro gourmet” e “como tornar-se um milionário”; privação de acesso a conhecimentos consolidados historicamente pela humanidade e cobrados nos principais vestibulares do país; fragmentação curricular com diferentes sistemas de ensino ofertando mais de 400 componentes curriculares no Ensino Médio; falta de professores e inexistência de capacitação continuada para os docentes assumirem os Itinerários Formativos; recursos e estrutura física insuficientes para concretizar as mudanças; etc. -, o governo federal rendeu-se às críticas e acenou para possíveis mudanças.
Estudiosos sobre o assunto apontaram que o NEM é irreformável, impossível de ser aprimorado, pois o seu principal problema situa-se na concepção e não na implantação.[1] Por isso, esses atores sociais, juntamente com estudantes organizados e sindicatos, defendem a imediata revogação da Reforma do Ensino Médio. Com receio, possivelmente, de derrota no Congresso Nacional, marcado por composição política predominantemente reacionária, o governo Lula optou pelo caminho do aperfeiçoamento. Por conseguinte, o Ministério da Educação (MEC) promoveu, em meados deste ano, Consulta Pública para ouvir e acolher propostas para “reformar a reforma”. A partir das 140 mil contribuições, compilou material que serviu como base para o Projeto de Lei nº 5.230/2023, apresentado ao parlamento neste final de ano, com pedido de urgência e objetivo de estabelecer novas diretrizes para a Política Nacional de Ensino Médio.
Em comparação à Lei 13.415, o PL 5.230 traz avanços que, aprovados, auxiliarão na redução das desigualdades escolares e no acesso ao direito à educação, com destaque para: 1. retorno às 2.400 horas destinada à Formação Geral Básica (FGB), na lei atual é, no máximo, 1.800; 2. garantia das 13 disciplinas da FGB no Ensino Médio; 3. indicação de retorno da disciplina de Espanhol como obrigatória; 4. proibição da EaD para a FGB; e 5. entraves para atribuir aula a profissional não habilitado. Contudo, o PL abre via expressa larga para jogar dinheiro da esfera pública para iniciativa privada, especialmente por meio dos cursos técnicos.
Perante a conjuntura política e derrotas do governo Lula no Congresso Nacional, vide os projetos do Marco Temporal e proibição da linguagem neutra em órgãos públicos, o PL 5.230 é visto por alguns críticos ao NEM como a “reforma possível”. No entanto, sua relatoria foi entregue ao deputado Mendonça Filho (União-PE), Ministro da Educação à época da Reforma. Imerso na imaginação paradoxal da música “Bom Conselho” de Chico Buarque, o parecer força-se a enxergar realidade paralela. Não considera as inúmeras pesquisas e evidências que transbordam a razão. Não quer ouvir “um bom conselho, que eu lhe dou de graça”. Insiste em brincar com fogo, queimando o futuro da juventude brasileira.
Descabidos, os argumentos acionados sugerem que o autor do parecer entrou num buraco de minhoca e transmutou-se para realidade desejada: o contexto do Golpe de 2016. “A reforma do ensino médio perpetrada pela Lei nº 13.415, de 2017, com a oferta de itinerários formativos, oferece aos estudantes a chance de refletirem sobre seus sonhos, acerca de quem são e o que desejam para as suas vidas. O modelo foi construído para uma juventude criativa, participativa e atuante. A proposta foi concebida para promover uma educação contemporânea, que prepare os jovens para o mundo do trabalho e para uma vida significativa em sociedade. Isso implica superar o formato conteudista e avançar para a formação de jovens com autonomia, como meio de implementar as finalidades do ensino médio consignadas no art. 35 da LDB.”, aponta o relator, omitindo propositadamente que a lei resultou da nada democrática MP 746, e que os estudantes não foram ouvidos.
As redes de ensino implantaram o NEM a partir de 2022, com exceção do Estado de São Paulo, que iniciou a trágica experiência em 2021 – antes adotou alguns testes desastrosos, com ênfase para a formação técnico-profissional aligeirada.[2] Relatos de estudantes e professores são facilmente lidos em diferentes mídias: não aprenderam nada; deixaram de estudar conteúdos das disciplinas de Biologia, Física e Química de um lado; Artes, Filosofia, Geografia, História e Sociologia de outro; que foram obrigados a fazer Itinerário Formativo que não escolheram; falta de docentes para assumir as aulas; capacitação continuada inexistente para desenvolver os componentes curriculares dos Itinerários Formativos; entre outros.
Foto: Roberto Parizotti
O parecer justifica que o contexto da pandemia e a falta de coordenação do governo federal do período dificultaram a implantação da Reforma do Ensino Médio, e que os dados atuais são insuficientes para concluir que o NEM não dará certo. Necessita apenas de pequenas alterações: “Ao nosso ver, a atual configuração curricular do ensino médio pode ser uma das responsáveis pelos problemas de aprendizagem. Considerando que a implementação do Novo Ensino Médio ocorreu em 2022, os resultados do Saeb [Sistema de Avaliação da Educação Básica] 2019 e 2021 deixam bastante claro que os problemas estavam presentes antes da reforma promovida pela Lei nº 13.415, de 2017.”
Na inversão provocativa da canção de Chico Buarque poderíamos inferir que “o pior cego é aquele que quer enxergar”. O parecer, no entanto, reconhece alguns dos problemas da Reforma do Ensino Médio. Intui-se, então, outro ditado popular: “pagar pra ver”, mesmo incrédulo em relação ao resultado. “Sabemos que a concretização de uma reforma do porte da realizada em 2017 caminha ao lado de desafios políticos, logísticos e pedagógicos. Pode haver questionamentos ao modelo atual, certamente há diferenças regionais significativas e uma multiplicidade de atores que agrega complexidade ao processo de implementação. Adicionalmente, a reforma foi dificultada pela pandemia de covid-19 e pelo seu impacto na educação brasileira.” Frágil argumento para transformar, mais uma vez, em laboratório de experimentação a realidade escolar de mais de 7 milhões de estudantes da rede pública. Mas com a costumeira desobrigação da escola particular seguir esse trágico modelo. Nesses dois anos de efetiva adoção do NEM, verificou-se que muitos estabelecimentos privados ignoraram os Itinerários Formativos e/ou disfarçaram e permaneceram desenvolvendo os conhecimentos consolidados historicamente pela humanidade e cobrados como forma de ingresso nas principais universidades brasileiras.
Portanto, o parecer apresenta como razão para os inúmeros problemas no NEM a implantação e não a concepção de educação que ancorou a Reforma do Ensino Médio. Nega as inúmeras pesquisas, embasadas em dados, de que o NEM acentua as desigualdades escolares, intra-escola, entre os períodos diurno e noturno e em relação à EJA.[3] Além dos Itinerários Formativos sonegarem o acesso aos conhecimentos científicos, humanísticos e culturais a milhões de educandos.
Ancorado no fantasioso parecer, o Substitutivo ao PL 5.230 ignora propositadamente os dados e evidências levantados nos últimos anos sobre a Reforma do Ensino Médio e as centenas de milhares de contribuições colhidas na Consulta Pública realizada pelo Ministério da Educação. Por quê? Imbuído provavelmente por sentimento semelhante àquele das Erínias, personagens da mitologia grega que representam a vingança e o rancor, retoma a Lei 13.415 quase que na íntegra: volta com os Itinerários Formativos; reduz a Formação Geral Básica para 2.100 horas; facilita a adoção da EaD para o Ensino Médio; tira a sugestão de obrigatoriedade da disciplina de Espanhol; adota áreas de conhecimento em detrimento dos componentes curriculares (não cita uma única vez essa categoria); determina que os Itinerários Formativos terão, no mínimo, 900 horas nos três anos (proposta do MEC é de 600 horas); facilita a atribuição de aulas para profissionais com notório saber; reapresenta a proposta de desenvolvimento cognitivo e socioemocional; e incentiva a fuga de recursos públicos para a iniciativa privada por meio da oferta do ensino técnico-profissional.
Sustentada pelas empresas lucrativas disfarçadas de fundações e alguns secretários congregados no CONSED (Conselho Nacional de Secretários de Educação), o Substitutivo ao PL 5.230 aparenta querer se vingar daqueles que ousaram questionar o destino traçado pela modernização conservadora com vestes atualizadas de neoliberalismo progressista. Não aceita a audácia de estudantes, educadores, sindicatos e especialistas, que ousaram lutar e questionar o óbvio. Reduz a carga horária destinada à formação científica, humanística e cultural; dificulta o acesso dos estudantes das redes estaduais públicas ao ensino superior; propõe formação técnico-profissional aligeirada; precariza as condições de trabalho e de formação dos educadores; perpetua o subfinanciamento da educação; e favorece a transferência de recursos da escola pública para a iniciativa privada. Oferece mundo invertido para o estudante da escola pública, mas preserva, como sempre, discentes dos estabelecimentos privados.
Reforma da reforma para não se mudar nada no Ensino Médio. Se na proposta do MEC cede-se os anéis para não perder os dedos, no Substitutivo se entrega anéis, dedos, braço, corpo e mente. Tudo. “Eu semeio o vento na minha cidade / Vou pra rua e bebo a tempestade.”
Rogério de Souza: Doutor em Sociologia pela Unicamp, escritor e professor no IFSP. Coordena o Grupo de Pesquisa em Educação Profissional (GPEP) do IFSP, Campus São Roque.
[1] KRAWCZYK, N., JACOMINI, M. e SILVA, M. R. Novo Ensino Médio: o que não tem conserto. Disponível em: https://outraspalavras.net/direitosouprivilegios/novo-ensinomedio-o-que-nao-tem-conserto/. Acesso em: 27/04/2023.
[2] PIOLLI, E. e SALA, M. O Novotec e a implementação da Reforma do Ensino Médio na rede estadual paulista. Crítica Educativa (Sorocaba/SP), v. 5, n. 1, p. 183-198, jan./jun.2019.
[3] REVISTA DA ESCOLA DE FORMAÇÃO DO CNTE. Dossiê: A implantação do Novo Ensino Médio nos estados. Retratos da Escola, 16 (35), 285–293. Disponível em: https://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/1620