Enquanto houver racismo, não há democracia

Fala de Beatriz do Nascimento expõe que a luta pela democracia é sobretudo a luta de negros e indígenas por direitos 
11 de Agosto na Faculdade de Direito foto: reprodução/ Marlene Bergamo
11 de Agosto na Faculdade de Direito foto: reprodução/ Marlene Bergamo

Os atos do dia 11 de agosto de 2022 sem dúvidas entrarão para os livros de história como um momento em que o povo brasileiro se uniu em defesa da democracia. Com mais de 1 milhão de assinaturas, a Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito foi lida no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Ainda que diversos movimentos sociais tenham discursado no salão nobre, a plateia que assistia sentada nas confortáveis cadeiras de veludo era esmagadoramente branca. As pessoas negras e os indígenas, em sua maioria, assistiram do lado de fora do prédio. 

Momento do Hino Nacional na Faculdade de Direito da USP

Beatriz Lourenço do Nascimento, coordenadora da Uneafro Brasil e membro da Coalizão Negra por Direitos, expôs em seu discurso a necessidade de a branquitude lutar ativamente em favor das causas raciais. “O Brasil é um país em dívida com as populações negras, dívidas históricas e atuais. Portanto, qualquer projeto ou articulação por democracia no país exige o firme e real compromisso de enfrentamento ao racismo. Convocamos os setores democráticos da sociedade brasileira, as instituições e pessoas que hoje demonstram comoção com as mazelas do racismo e se afirmam antirracistas: sejam coerentes. Enquanto houver racismo, não há democracia” declarou Beatriz. 

O tão aclamado Estado de Direito nunca existiu de fato para as populações indígenas e pessoas pretas. A página de abertura da Carta destaca a frase de Goffredo da Silva Telles, que foi professor da Faculdade de Direito da USP: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Mas que poder político emana as populações negras e indígenas em um Congresso formado por 75% de pessoas brancas? Apenas 18 parlamentares se autodeclaram negros e apenas uma mulher se declara indígena, Joênia Wapichana (Rede-RR).

Devido à falta de diversidade étnico-racial dentro das instituições políticas, pautas como cotas raciais, demarcação de terras, combate ao garimpo ilegal que ameça quilombos e aldeias, e a luta contra a violência policial enfrentam dificuldades para serem aprovadas. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, ainda não deu um parecer sobre o Marco Temporal que, se aprovado, irá determinar como terra indigena apenas os territórios ocupados antes da constituição de 1988, ameaçando o direito histórico dos povos originários à terra, enquanto o avanço desenfreado da agropecuária e da mineração devasta áreas que deveriam ser protegidas.   

É um retrato da desigualdade do Brasil que a Faculdade de Direito da USP, a mais tradicional do país, tenha apenas uma professora titular negra: Profª Eunice Aparecida Jesus Prudente. A USP, inclusive, foi a última das grandes universidades brasileiras a implementar o sistema de cotas raciais no vestibular. Enquanto a reserva de vagas existe desde 2013 nas federais, a estadual paulista a implementou apenas em 2018.

É lindo ver a mobilização em prol da democracia, mas também é necessário questionar que democracia estamos reivindicando. Não podemos defender um Estado que se sente no direito de matar um homem negro com uma câmara de gás improvisada. Um Estado que permite que grileiros assassinem indígenas na disputa por terras. Um Estado que promove chacinas, disfarçadas de operações policiais, como a da Vila Cruzeiro (RJ). 

As manifestações de 11 de agosto foram um recado de que a sociedade brasileira não irá tolerar um novo golpe, mas também precisa ser um lembrete de que não podemos mais tolerar a destruição dos territórios indígenas, o extermínio das populações negras e nem um política hegemônica branca. Em outubro, devemos exercer a nossa tão amada democracia nas urnas com a consciência de que 54% do Brasil é negro, 51,8% são mulheres e, nas palavras de Vanuza Kaimbé, uma líder indígena, “O Brasil todo é terra indígena”. 

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