Homero Gottardello, jornalista
Enquanto opositores e apoiadores do desgoverno Bolsonaro se digladiam a cada rodada de depoimentos na CPI da Covid, as atenções dos brasileiros vão sendo desviadas em relação à espoliação que está em curso, um escândalo que entrará para a história como uma pilhagem dez, 20 vezes maior e pior do que a privatização da Vale do Rio Doce, em maio de 1997 – que foi entregue por R$ 3,3 bilhões, quando só suas reservas minerais eram avaliadas em mais de US$ 100 bilhões.
Trata-se da entrega da Eletrobras a preço de banana para grupos de investidores, uma manobra que vai aumentar tarifas em meio a um novo apagão, transformando a energia elétrica em um verdadeiro luxo para a classe média. O alerta máximo foi ativado pela combinação de dois fatores, que apontam para um futuro temerário: primeiro, há uma nova crise hídrica posta pelo aumento na demanda e pela falta de chuvas, que deixou os reservatórios em níveis muito baixos; segundo, a lógica de mercado que se segue a qualquer privatização e vai impor uma rápida amortização dos valores investidos com o aumento nos preços da distribuição, abrindo caminho para os lucros.
Enquanto os mais absortos sonham com um relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito capaz de derrubar o presidente Jair Bolsonaro, a cessão do setor energético para o completo despojo caminha a passos largos para uma conclusão rápida e, pior, despercebida. Nesta terça-feira, a privatização da Eletrobras será debatida quase que às escuras na Comissão de Meio Ambiente do Senado, ao mesmo tempo em que mais um ‘round’ da CPI da Covid tomará os holofotes para si. Até o final deste ano, as contas de luz terão dobrado de preço, ao mesmo tempo em que os consumidores serão obrigados a se virar para reduzirem os gastos à metade.
Pesquisadores do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) calculam que, na prática, nos próximos seis meses, o quilowatt-hora (kWh) – que é a unidade de medida usada para medição do consumo doméstico de energia elétrica – terá seu valor quadruplicado e uma conta de luz que, hoje, fica na casa de R$ 130,00 saltará para a faixa dos R$ 300,00. E não haverá como escapar disso, já que, ao contrário da pandemia, cujas vítimas são contabilizadas individualmente, a crise energética atinge a todos de uma forma impartível e, se é possível sobreviver a uma emergência sanitária, no apagão todos ficarão no escuro – o ocorrido no Amapá, há menos de um ano, já foi varrido para baixo do tapete, mas o caos experimentado pela população de lá serve de alerta para quando o mesmo ocorrer em São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo.
Segurança Nacional
Não é preciso ser administrador público para saber que a segurança enérgica é considerada, mundialmente, um elemento fundamental das próprias seguranças nacionais, daí que os estados concentram sua administração e governos figuram como garantidores finais dos serviços de abastecimento. O Brasil está à beira de uma crise energética muito maior e muito mais grave do que aquela de 20 anos atrás, e isso quando o setor privado já detém 70% da geração de eletricidade – a União ainda tem mais de 51% dos papéis ordinários. Assim que for completamente subtraído de seu posto de endosso, o Estado não terá qualquer responsabilidade pela crise de abastecimento que se anuncia. Com o afastamento do Estado, os consumidores – vulgo, a população – não terão a mínima condição de enfrentar a explosão das tarifas.
O interesse econômico, neste momento, encontra-se totalmente amarrado ao campo político, onde são definidas as regras do setor elétrico, contrariando a lógica global – afinal, não existe um único país do mundo onde ele é autorregulado. Quem define como este setor vai funcionar são os estados, nos parlamentos, nos Congressos de cada nação, justamente para coordenar os interesses, permitindo que as empregas geradoras de energia operem e que se tenha uma expansão adequada dos serviços. A destruição das instituições brasileiras que o desgoverno atual vem promovendo e que os economistas estão adorando, implicará de forma dramática na crise dantesca que se anuncia. A financeirização e a judicialização deste setor acarretarão um verdadeiro desmanche, mas a população assiste o avanço da privatização sentada, enquanto a questão é decidida no Senado.
É óbvio que os brasileiros só perceberão a catástrofe, quando ele já tiver se operado. Daí, será tarde demais para manifestações, panelaços e carreatas, que poderão até mesmo ocorrer, só que à luz de velas ou iluminadas por faróis. O fato é que pouquíssimas pessoas se deram conta de que o país está diante da transferência iminente de todo o setor de energia para o capital privado, uma manobra que vai encarecer tudo o que necessita de eletricidade para ser produzido, transportado ou comercializado. Basta pensar em um pote de sorvete ou nos mais variados tipos de alimentos congelados para se ter uma ideia da forma com que os aumentos de custos serão repassados para o consumidor final. O ‘home office’ também encarecerá absurdamente, reduzindo o ganho do trabalhador que se viu compelido a este modelo remoto, na medida em que seus custos domésticos também irão aumentar.
O mais insólito de tudo isso é que se trata de uma manobra conhecidíssima, repetida à exaustão por vereadores, em âmbitos municipal, por deputados, em níveis estaduais e federal, e senadores. A amnésia do brasileiro em relação ao passado recente, seu esquecimento patológico sobre os grandes temas nacionais, está fazendo o país regredir a um ponto de onde não haverá resgate. Os desmonte da saúde, da previdência, a extinção dos direitos trabalhistas e, agora, a transformação de um bem tão imprescindível, como a energia elétrica, em fausto vai promover a “haitização” do Brasil. A classe média será empurrada para a periferia, os centros das grandes cidades virarão terra de ninguém e, jogada para fora do perímetro de proteção da segurança pública, a agora ex-classe média terá que pagar pelas “polícias privadas”, ou seja, pelas milícias. Só não enxerga que tudo isso já está em operação quem é cego ou está tão deslumbrado com a CPI da Covid – que já tem até sua musa, a médica ex-bolsonarista Luana Araújo – que não consegue avistar o depauperamento de tudo que está ao seu redor.
Ainda há tempo para uma reação, mas ela precisa ser rápida. Porque o povo, quando é vil, merece o que tem…