Elisa Lucinda: Vamos precisar de todo mundo

Elisa Lucinda
Elisa Lucinda

É de tarde. Escrevo diante da imensidão do mar de Guaibura, à beira da famosa Guarapari, terra capixaba. Finda o ano e, daqui, deste meu cercadinho de palavras, assisto e teço frases e mais frases em busca de traduzir tanta novidade do velho mundo.
Esta escola da vida não se acanha em ser tão forte nas aulas. Os períodos do curso de 2018 foram estarrecedores. Correntes afirmam que esse grupo de 12 meses foi  e ainda está, orquestrado por Xangô, Yansã e Exu. Três orixás que não deixam pedra sobre pedra. A justiça do primeiro, o furacão da segunda, e a inteligência astuta do terceiro garantiram a queda das máscaras. O baile continua.

Quando começou em fevereiro já levando meu pai, adoecendo meu irmão e assassinando Anderson e Marielle, nem imaginava o que o ano traria. A lição, cheia de atividades impactantes, tal qual um antigo laboratório de fotografias, revelou sinhazinhas-patricinhas homofóbicas e machistas até, revelou os abusos intrínsecos a inúmeros relacionamentos ditos “amorosos”, mostrou a cara de escravocratas modernos no racismo dos católicos, crentes e pessoas de “bem”. Tudo isso deixou o monstro à mostra. Todos nós nos espantamos. Parecia que não o conhecíamos. Aquela parente advogada que começa a falar mal dos Direitos Humanos, aquela amiga professora ou empresária querendo a volta da ditadura, aquele jovem desinformado achando que a solução é andar armado. Tudo isso abriu um lugar secreto e de lá saiu , autorizado por tantos que há muito queriam ter direito de ser escroto à vontade. Para muitos, foi um festival de horrores. No entanto, esse monstro é nosso e é antigo. Sua lógica faz estragos diários num Brasil que, desde a escravização , é conivente com a injustiça. É verdade que contribuímos diariamente para a manutenção dos privilégios. Se a igualdade for diminuir o número de lanchas de alguns e, se os donos de tais iates forem amigos de certos cargos públicos e outras proteções, estamos perdidos. Já sabemos que há um Brasil exposto. O carnegão do furúnculo apareceu e produz asco. A queda das máscaras foi tão determinante que mexeu no elenco das festas natalinas. Foi o limite , a demarcação. Tipo “não posso mais compartilhar com essa pessoa a ceia de natal”. No entanto, se estamos diante de uma contrariedade, não há outra saída a não ser enfrentá-la, compreendê-la, aprender seu funcionamento , para melhor poder desmontá-la quando atentar contra a paz coletiva a curto ou longo prazo.

De um modo geral, a humanidade corre para um abismo muito alarmante. Parte do mundo não para de produzir lixo eletrônico: celulares e televisões imensas , descartáveis a céu aberto. Rios sujos, violentados, assoriados, mares imundos entalando com plástico a goela das aves , e mais um tanto de gente cujos filhos morrem afogados na praia enquanto eles , os pais ,estão distraídos em seus celulares; milhares de pessoas continuam criando seres para vencer o seu semelhante ,para não ter gentileza, para só querer vantagens, em nome do próprio umbigo. Crianças e mais crianças estão sendo treinadas para não olhar para o lado, para se fartarem de selfies e até caírem em precipícios tentando a melhor foto. Nenhuma máquina substituirá o afeto. Não adianta. Negros e mulheres continuam sofrendo de desrespeito e incompreensão por parte dos que mandam no mundo, enquanto gays, trans, travestis, sapatões pagam o pato pela hipocrisia dos que não falam o que fazem escondido , e bradam em público contra o sexo.

Sabemos que essa dura lição pela qual passa a democracia é a principal professora da nossa história. Tudo acontece simultaneamente e , ao mesmo tempo que essas notícias ruins pipocam, outras boas apontam para uma mudança irreversível: Ninguém pode dar ré na quebra do silêncio feminino e só por isso os crimes de Abadiânia não param de sair do armário. Não mais nos calarão.

 

Uma minoria excluída foi à universidade, se formou, balançou suas periferias e ,pela primeira vez ,no congresso haverá maior representatividade de pretos, gays ,trans e índios. Nossa esquerda está entendendo à duras penas que sem a pauta do racismo na linha de frente das lutas sociais não chegaremos a lugar nenhum e bandidos continuarão confundidos com mocinhos.
Por isso, acredito no ano novo e no tempo novo. Somos cada um um grão de areia.Somente juntos formaremos algum caminho, algum território. Vamos precisar de todo mundo. O mito de narciso adverte a todos que só olhar para si é assunto que acaba em afogamento no fundo do lago, no profundo do espelho. Sem o coletivo, o afeto, a comunidade, ninguém se salvará.

Cada um em seu cotidiano deve de todos cuidar.Vamos precisar de todo mundo. Feliz e 2019!

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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