Elisa Lucinda: Tábua de tiro ao Álvaro

Elisa Lucinda
Elisa Lucinda
Fotomontagem: Joana Brasileiro / Jornalistas Livres

É mesmo de estarrecer. A esquerda passou o final de semana de bode. Minto, não só a esquerda, o povo brasileiro todo está de cara. A justiça resolveu escancarar de vez que, na verdade, só castiga pobre. Não bastasse a “pobre mãe” Adriana Ancelmo, mulher do Sergio Cabral, receber o indulto humanitário para poder criar seus filhos em casa, sem que o mesmo benefício seja dado a milhares de mães encarceradas, longe de seus filhos, e pelo mesmo motivo: foram aviõezinhos dos seus maridos. Não bastasse o Temer caindo aos pedaços, mas agarrado como uma unha encravada ao poder, Aécio volta a ser senador, como se para ser senador não se precisasse mais ser honesto, não se necessitasse de uma vida sem flagrantes delitos, uma pessoa que não esteja sob tanta suspeita. É de vomitar. No país, onde tantos ladrões de galinhas, de celulares, de trouxinhas de maconha estão amargando nas cadeias, enquanto o homem da mala de quinhentos mil reais mais conhecido do mundo, pessoa íntima do presidente, autorizada a soturnas visitas noturnas no Palácio, é liberado para cumprir sua pena em casa, coitado. O que será desse homem preso em sua mansão, cheio de empregados a seu dispor, vendo sua TV, à beira de sua piscina e outros mimos, mas tendo que carregar uma tornozeleira eletrônica?

 

Ai, meu deus, só falando assim pra ver se meu olhar acha um pouco de graça na podridão da República de agora.

 

Pois não bastasse tudo isso, no sábado, recebi um convite amoroso do meu amigo, músico, compositor, talentoso demais, pra que fosse  vê-lo no Beco do Rato, como faço sempre que posso, e em tal onda deliciosa sempre sou convidada a  curtir e dar canja de poesias e canções. O evento é mensal, e é uma roda de samba da melhor qualidade, de repertório e de som, produzido pelo meu amado Diogo Rodrigues. Como estava no teatro assistindo a um espetáculo imperdível também, “O Reino de Suassuna”, do grupo a Barca dos Corações Partidos, que bateu no mesmo horário, eu não pude ir ao samba. Perdi.  Pois foi neste dia que se deu o ocorrido do vídeo que postei ontem e que está aí nas redes em geral.

 

Um homem trabalhador, honesto, bonito, pai, cidadão longe de qualquer suspeita, um homem de bem, brasileiro que, a duras penas, neste momento de violentos ataques à cultura, neste momento de desmonte, exercia este seu trabalho mensal no Beco do Rato. Esse homem sofreu brusca e desrespeitosa abordagem policial, na porta deste seu espaço de labor. Inacreditável. Tratado com desrespeito, revistado, humilhado sob os olhares do próprio público! Um achincalhe. Uma porrada. Uma desonra para um ser cujo valor está no “ser” e não no “ter”.

É violento demais. Ofensivo demais. Seu nome é Nêgo Álvaro. Guardem esse nome! Por coincidência, passei a semana ouvindo seu disco que ganhei do próprio de presente,“Cria do Samba”, lançado pela Coqueiro Verde Records (aconselho, é agradável, inteligente, inspirado, muito bom de se ouvir). Um cara pacífico, que foi aviltado, “pesquisado” grosseiramente, questionado asperamente por policiais que não encontraram nada de ilícito que ele portasse, e que, mesmo assim, numa sequência  de erros sem limites, nossa vítima, a que  recebe a indevida ação, foi arbitrariamente conduzida à delegacia. Sem dever nada. E tudo sendo filmado, tanto pela polícia quanto pelos amigos do Álvaro. Isso não é filme não, gente. Isso acontece aqui, todo dia, no nosso chão.

Lendo ontem a nota de “Escurecimento” publicada por esse querido artista, somada a outro artigo que também li hoje do fabuloso Henrique Sousa sobre as questões que envolvem o homem negro num mundo de domínio branco, me vi envolta na teia de pensamentos do que mais me assola, entre tantos  problemas  deste país: a dificuldade, o sacrifício, a verdadeira gincana com provas cobertas de cacos de vidro, que significa construir-se como um ser negro, como uma mulher negra, com divindade neste Brasil. Houve uma hora em que um dos policiais, na infeliz abordagem, afirma que o Nêgo Álvaro estava sendo vitimista, quando o mesmo lhe perguntou se estava sendo preso porque era preto. Ora ora, se existe uma coisa que o povo negro não precisa é de se fazer de vítima Não precisa. Já está posto. Tratava-se justamente da vítima de uma ação que não acontece com um rapaz de 28 anos branco. Não rola.

 

É muito difícil você ser negro e se constituir numa sociedade com uma boa auto-estima num país que não considera um homem como o Nêgo Álvaro um príncipe. Não tem beleza ariana, não serve para esse papel. Para muitos ele pode ter, só por ser preto, cara de bandido. Esse modelo torto é o que se vende e se impõe às nossas crianças, nos livros de histórias, nos filmes, nas telenovelas. Parece que estou batendo na mesma tecla, mas é preciso abrir os olhos para que a gente não se omita nessa luta que é de todos e que tanto empobrece o país, dá merda no final. A injustiça gera ódio. É perigosa. O que são as cadeias senão grandes senzalas? Enquanto escrevo a juventude negra está sendo assassinada sem sair no jornal. Sem nome. É só número. “Qualquer coisa a gente diz que estava envolvido com drogas, e fica pairando um certo ar de ‘justiça’ sobre o genocídio.”

 

Tudo isso que digo agora vem cheio de sede da justiça que acho possível nesse momento em que venho trazer aos que me leem esclarecimentos a partir de uma realidade, que a maioria dos meus amigos brancos não vive. São notícias de um inferno, do que poderíamos chamar de porões da cidadania. Nos trabalhos que passo e por onde ando, inclusive dentro das instituições sócio-educativas, farejo tantos Djavans, Seus Jorges, Emicidas, Lázaros Ramos, Camilinhas Pitangas, Taisinhas Araújos, Miltons Nascimentos, Caetanos e Gils, todos anônimos, sem falar de bailarinas, tenistas, golfistas, pianistas, maestros, artistas plásticos, grandes desenhistas que muitas vezes não chegam a conhecer seus dons porque não têm as mesmas oportunidades. Enquanto não juntarmos isso, enquanto não diminuirmos a distância dessa desigualdade, nosso processo de paz ficará adiado, creiam-me. Estou, mais uma vez, chamando à luta os humanistas, os que clamam pelos direitos humanos e dedicam grande parte de sua batalha diária, compondo narrativas a partir de seu parlamento, seja ele qual for: as salas de aula, os palcos, as mídias, as telas. Atenção, jovens roteiristas, em suas equipes há quantos negros escrevendo a nova história? Podemos ser todos o que estou chamando de abolicionistas modernos!

 

Por outro lado, estive agorinha na Flup, a Festa Literária das Favelas, bravamente empunhada por Julio Ludemir e Ecio Salles, e foi na Mangueira, estava lotado, e era de tarde, e era sábado, o encontro esplendoroso revelando que os movimentos sociais estão bombando nas periferias, nas favelas. Não somos mais o mesmo país, repito galera, há uma esquerda invisível aos olhos da Casa Grande, que está em suas comunidades atuando de modo diferente. Muitos puderam ir à universidade nos últimos governos, antes do golpe, e muitos são educados pela cultura do rap, que cresceu na mesma medida em que o silêncio não é mais possível.

 

Estou dizendo para não ficarmos só em casa vendo Netflix. Sem meter a mão na massa, sem falar no difícil assunto, sem perguntar a si mesmo se você seria capaz de namorar uma mulher ou um homem negro. E se seria, por que não rolou até agora? Será só questão de gosto ou não estava no escopo dos que te educaram? E não lhe foi permitido sonhar? É como costumo parodiar: “Precisamos falar sobre Kevin”, ou seja, assunto amargo, remédio difícil de tomar, mas depois a gente melhora, creiam-me. A gente se torna um ser humano melhor, mais coerente com o nosso discurso.

 

Meu filho, Juliano Gomes, o sarará do qual muito me orgulho e que também já foi abordado pela polícia quando tinha o cabelo black grande, e teve que ouvir do policial que ele tinha aspecto suspeito, pois é, esse cara está promovendo uma sessão amanhã, dia 06 de julho, no Instituto Moreira Salles- RJ, às 19 horas,  onde  exibirá o clássico “Adivinhe quem vem pra Jantar”,  logo depois da sessão de Corra. Tudo será seguido de debate com esse crítico, linkando as duas obras e seus papéis dentro do tempo. Um programa imperdível para quem quer já ampliar o seu olhar sobre o tema do qual falamos aqui. Fica a sugestão.

 

Bom, essas palavras querem beijar o rosto do meu querido amigo, ofendido no sábado passado, tratado como sub-cidadão, ferindo a Constituição que o presume inocente, a princípio. Mas a boa notícia é que ele é articulado, tem público, visibilidade, advogado, e a ação não ficou invisível exatamente para que não fique impune. Mas o mais pedagógico é que essa cena explícita mostra para muitos o que acontece nas favelas e em todos os lugares que a gente não vê, onde a justiça não alcança.

 

Através dessa injustiça ocorrida na Lapa, coração carioca, podemos ver o crime que acontece no escuro dos “quartos de despejos” da cidade, que raramente importam às primeiras páginas dos jornais. Uma mostra trágica das notícias do que estamos trazendo na poesia que fazemos, nas canções  resistentes, nas  narrativas que armamos. Enquanto vilões graúdos praticamente secaram as veias da nação, uma multidão chamada povo vive um ultraje diário, inclusive os policiais. Mal pagos, trabalhando em péssimas condições, com uma formação desatualizada dos caminhos conceituais da segurança contemporânea, formada para não ser uma polícia comunitária, esses profissionais, muitas vezes negros e pobres também, morrem na mesma guerra. Gente que queria ser alguém na vida e que pudesse lutar pelo seu semelhante, mas foi massacrada ali. É verdade. Há grandes policiais nas corporações, homens sensíveis, corajosos, honestos. Mas o nosso sistema está cupinizado.

 

Bem, esse assunto é sem fim, mas tudo isso é para beijar o Nêgo Álvaro, chamar à luta meu semelhante, os que apreciam meus pensamentos, os que me ensinam com os seus. É preciso que toda a sociedade se envolva para cuidar de cada criança que vai compor a nação de amanhã. Seja o que for o futuro, a população negra não pode seguir sendo o alvo, o lugar que existe para ser machucado por todos. Seja mulher, seja homem, seja menino. O negro parece um endereço certo para os desprezos sociais de um país marcado por quatro séculos de escravidão.

 

Triste, o nome é alvo, mas de branco não tem nada. É quase não-humano nosso povo negro. É visto como um ponto preto, um lugar para se atirar. Apenas um alvo.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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