Elisa Lucinda: O demônio do domínio

Elisa Lucinda
Elisa Lucinda
Todo mundo cai nesse papo: é o demônio! Pergunto: um lugar onde alguém joga uma filha pela janela precisa de demônio? Um padre que abusa de um coroinha o qual a mãe confiou à catequese precisa do demônio? Cidadãos de bem e de terno, parlamentares e representantes públicos que desviam dinheiro da merenda escolar, dos leitos, dos salários dos trabalhadores para uso de Miami, e outros motivos onde se foda o bem coletivo, precisam de demônio? Não precisam. Fica difícil para o diabo superar. Qual a origem dessa maldade? Que autorização escrota é essa que a sensação do domínio sobre o outro costuma provocar? Em muitas relações dadas como normais, o domínio e a opessão funcionam diretamente ligados à sexualiadade. Não raro tal distorção tem como origem o poder. “Sou o tal, tenho grana e posso tudo”. Muitas escalas tem tal domínio.Às vezes pode vir disfarçado de uma manobra brusca na hora do sexo, em que o outro, a outra ,esteja visivelmente desconfortável. O inquérito constante e diário de: “onde você esteve?A que horas saiu de lá ? Mas não teve reunião ontem?Esse vestido chama muita atenção. Quero você em casa quando eu chegar.” Anos de aulas de escravização humana autorizaram esse requinte estúpido de utilização do corpo do homem sobre o outro , sobre outra mulher e, o pior de todos, sobre as crianças.
A fé, o templo da crença humana, é revestido da última esperança. Ali é o reduto do mundo perfeito, do arrependimento, do império do bem. Todo mundo ali é bom. Cremos tão firmemente nesta fantasia que esquecemos do demônio-homem que habita os templos e anda nele com desenvoltura. E por isso a notícia de que mais de 300 mulheres denunciaram até agora abusos sofridos na casa de João de Deus, deixou a todos estarrecidos. É como se desaparecesse o último guardião, é a prova do apocalipse. O sacerdote, o pastor, o pai de santo, o médium, o mestre, são todos representantes bem próximos do que entendemos como divino, o lugar da salvação. O horror agindo ali é uma derrota imensa para o bem. Uma desmoralização. Há um colapso lógico e emocional na cabeça da gente quando o algoz é uma face do mocinho, do protetor. É desesperador quando o bandido é a lei. É uma porrada imensa na utopia e na crença no mundo bom. Quando ouvimos a notícia de que um iniciado usou da fé para cometer abusos da mesma maneira com que manipula a ingenuidade das crianças para molestá-las, também ficamos órfãos de tudo e duvidamos mais ainda do mistério. No caso de João de Deus, muitas pessoas foram curadas ali, sua fama internacional não sobreviveria se fosse só boato. Então, é difícil acreditar que uma casa que faça bem também possa, deliberadamente, fazer mal. Por um lado não queremos acreditar. Quem vai provar tudo é a investigação.
O que quero dizer aqui é da importância do rompimento do silêncio feminino, este grande aliado dos “acordos” de opressão. Uma mulher abriu a boca e , qual uma luz que se acende sobre um porão, várias outras se revelam a partir da primeira. Me pergunto hoje: quantas mulheres foram abusadas neste país e morreram com seus segredos, pois não entendiam o domínio psicológico e não compreendiam porque não conseguiram interromper o abuso? Estudos atuais comprovam o choque, o medo, o extremo estresse que paralisa a presa Inúmeros casos nas empresas , entre os poderes de tantas instituições religiosas ou não, demonstram que está escondido no manto da história este grande segredo feminino: “fui abusada”.
Me parece este o século onde fomos mais longe. Onde estamos podendo discutir o abuso como crime, como não foi por tantos anos, quando a vítima dividia a responsabilidade com o algoz. É bom que fiquemos atentas. Há muitas formas de manipulação. Há casos que nem chamávamos de abuso e só agora entendemos assim, porque agora a justiça considera que não precisa ter ferimento físico. O crime de estupro ganhou categorias.
É, o Brasil está tomando uma lição muito dura. Pilares maniqueístas desabam em grande velocidade nestes últimos tempos e, específicamente nesse ano que se finda. Por incrível que pareça o mundo melhorou também, não só piorou como parece. Existem grandes terreiros, grandes templos no Brasil, cada casa com sua história. Mas o que está em jogo aqui não é a crença, é o ser humano. Capaz de coisas muito piores do que a visão do inferno.
Chega de silêncio. Luz sobre a verdade. Quando uma fala puxa as cordas vocais da humanidade.#chegadeabuso
#ninguemsoltaamãodeninguem #mexeucomumamexeucomtodas
#xotapower
#emponderadas

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Para os hipócritas tudo se resume ao céu e ao inferno. Definitivamente, religião é o ópio do povo. Podemos ter uma religião, mas o que se vê hoje é o comércio criminoso da fé.

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