Elisa Lucinda: Meu exibido amor

Elisa Lucinda
Elisa Lucinda

Sempre que posso venho te ver, amado meu, você sabe. Mas desta vez mandaram me chamar, ou melhor, seu pombo correio foi me buscar para que eu desse testemunho da intimidade que nos une.

 

Estou aqui, meu senhor, exposta à tua luz e disponível aos caprichos de teu calor. Sob ti vejo a cidade humana com seus amanheceres adoráveis, suas tardes mimosas e claras, seguidas de cinematográficos poentes.

 

Ah, Céu de Brasília, francamente, você, quando capricha, meu coração fica sem argumento. Te adoro, você me acolhe e me protege como nenhum céu o faz, nem o céu capixaba maravilhoso de minha terra. É lindo ele, mas é de outra qualidade, outra especialidade. Sempre foi assim, já reparou? Desde a primeira vez, cheguei plebéia e saí daqui rainha. Você é uma gracinha, foi logo me premiando de estréia! Me tratas com muitas honras para quem é só dois anos mais velha. Bobagem minha, Céu de Brasília, ninguém pode ser mais velho que você, oh eterno! Me sinto tão íntima tua, com tanta liberdade para divagar nos chamamentos, nos tratamentos quando o destinatário é a tua pessoa. É “você” é “tu”, não importa, como uma namorada cheia de intimidade, transito entre primeira e segunda pessoa sem me importar com isso, porque o que quero é evocar-te!

 

No teu poder de fundo, de ser firmamento, a cidade fica mesmo entre bucólica e espacial, uma coisa futurista, com verde, com árvore, mas com as certezas modernas dos traços do arquiteto. Tudo junto, tudo acontecendo entre as super-quadras, casais se agarrando nas escadarias dos prédios e ninguém vê. Só você, com seus matizes, suas pinceladas, suas nuvens, as cores que o sol pinta na sua casa. Quer dizer, você e os poetas. Nicolas Behr, por exemplo, ele também vê esse amor de invisíveis entre as super-quadras. E vê bonito. Para mim o chão que abasteces e cobres, Céu, parece tão igual. Este endereço de letras e números, parece uma lógica que não alcanço, por isso admiro. Os lugares são longe e perto, iguais e diferentes ao mesmo tempo. Sua terra, Céu de Brasília, é muito dada a antônimos. Há uma Brasília sob você que é decidida no Palácio, nos restaurantes, nos hotéis, nos poderes e seus segredos. Há outra que é a mesma, mas é outra: a fervente das queridas e humaníssimas satélites! São as cidades cujos filhos cuidam de Brasília, lavam, passam, cozinham, guiam carros oficiais e não oficiais, criam os meninos de muitas patroas. Ainda fazem música, pintam, bordam, ensinam e produzem a cultura de sua comunidade. É muita gente, é um movimento forte. Fico até achando que é pouco ônibus para muito povo; para você isso até que é bom porque te polui menos, mas dá-se um jeito. Tudo aqui foi programado para ter jeito. Para errar erro novo. Deve ser muito bom, né Céu, ser céu de uma cidade pensada antes, não é? Uma cidade fruto do sonho, da obstinação e também da insensatez e loucura de um homem e dos que acreditaram nele; ele pirou e foi no improvável, se atirou nele, apostou todas as fichas no improvável e criou uma cidade nova, gente bonita, interessante. Tu és o céu de uma cidade muito boa para visionários. E o interessante é que o negócio é organizado e maluco ao mesmo tempo: tem setor para tudo, e pra quem gosta de cenário como eu, olho pros lagos como se fossem de verdade; é tão bonito que dá vontade de aplaudir no final. É certo que não ter esquina dificulta a vida das macumbas, mas quebra-se o galho com esquinas conceituais.

 

Vou te falar bem ao pé do ouvido, meu gostoso: o que me enlouquece é esse seu mato candango. Eu gosto do serrado, acho um charme e deve ser bom ser uma Flor do Serrado tendo você tão perto. Não pense que eu falo isto para todos os céus não. Com os outros é diferente. Esse céu do planalto, que é o céu de Goiás, enfim, esse Céu que você é, é muito perto da gente. Num só dia pode mudar tudo, pode chover e fazer sol de novo, pode ter arco-íris e quando estou assistindo você, parece que ganha mais infinito o meu olhar, quase dá para ver o infinito quase todo. Fico até achando, Céuzinho azul do meu coração, que você só faz isso quando eu chego aqui, que é tudo para mim, pra se exibir pra mim, pra se mostrar pra mim, que é pra me seduzir, pra sugar meu sangue-poema até a última gota. Eu gosto.

 

Bem, vampirinho meu, agora vou parar um pouco, o sol está se pondo e aqui do Miliá Hotel eu desfruto do show de camarote; quero ver o espetáculo, quero curtir, depois vou sair. Perto de você tudo é tão engraçado. Ah, eu ia esquecendo de dizer : hoje eu almocei na casa de uma embaixatriz. Essas coisas em Brasília tem outro gosto, outro tom e tudo eu acho que é por tua causa.

 

Até já, beijo.

 

Sabe que acordei bem? Dormi feliz debaixo de você, você estava estrelado, com lua nova, gostoso, iluminado e misterioso, bonito mesmo, você precisava ver. Mas talvez seja esse o único privilégio que você não tenha, não é meu poderoso? Por falar nisso, estive pensando em como o rosa aqui tem regalias nos domínios do azul. Ontem, no crepúsculo estupendo, vi claramente isso: o rosa do poente se refestelando como se tivesse permissão, autorização do azul, era um rosa à vontade, quase protagonista.

Bem, voltando para a noite bonita de ontem, pensei nos beijos do Beirute, nunca beijei lá mas acho que quase rima, acho que combina. Gosto dos seus bares. Céu, acho que lhe sou é grata, sabia? Tantos poemas me deram suas noitadas, tantos aplausos, esse seu público inteligente, essa sua gente misturada, vindo de toda a sorte de Brasis, me oferta e me ofertou. Grata lhe sou pelos poemas que escrevo nos teus hotéis, no aeroporto, no avião entre suas nuvens macias, nas ruas apreciando seus silêncios, sua falta de umidade, sua soberba e também sua humildade. Quantos versos desabrochei nos teatros do teu urdimento, Céu de Brasília amado!

 

Às vezes eu acho que eu piro, sabe Céu? Passeio na UNB e quero morar aqui, ter vinte anos e estudar teatro de sofisticada liberdade com Hugo Rodas, amanhecer aqui, viver aqui. Paixão é o nome do que sinto por ti, Paixão também é o sobrenome da primeira família que me hospedou aqui. Te amo, levo-te comigo pro Rio de Janeiro, escreverei esta carta lá, direi que foi aqui, mas mesmo assim só você saberá, Céu clarividente, que jamais te mente essa sua remetente.

 

Sua Elisa Lucinda.

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