ELISA LUCINDA: Em Portugal, com o Brasil a doer no coração

Elisa Lucinda
Elisa Lucinda
Elisa Lucinda na terra de Eça de Queiroz, onde participou do Encontro Internacional Literário Correntes D’Escritas - foto: Jonathan Estrella
Elisa na terra de Eça:  “o mundo está assistindo nossa dor” – foto: Jonathan Estrella

Estou em Póvoa de Varzim, terra de Eça de Queiroz, lindo lugar que pertence ao distrito do Porto, lançando o livro “A fúria da beleza” por uma editora luso cabo-verdiana, Rosa de Porcelana… Uma beleza. Somos muitos autores neste Encontro Internacional Literário bem chamado de Correntes D’Escritas. O país que nos colonizou vai muito bem, respeitando as artes e as ciências humanas e exibindo escolas públicas de altíssima qualidade. Pois vai muito bem mesmo este nosso Portugal. (não se preocupem não vou morar aqui… rsrs). É nutrição de esperança ver Portugal brilhando como esquerda europeia. O pequeno imenso país vai mesmo muito bem.

Meu coração brasileiro é que não.

Tenho vergonha do desmonte lá de casa. Vim representar um país cujo governo o despreza e o ataca diariamente. Para ele, fodam-se os índios, os pretos, a diversidade de gênero, a Amazônia, nossos metais valiosos, nossos museus, nossas universidades, nossa ciência, nossa pesquisa, nossa sustentabilidade, a soberania nacional. A elite brasileira não perdoa um governo que olhe para o povo. Por isso o ministro da justiça Sérgio Moro não luta mais contra corrupção; notaram? Se esqueceu da possível armação rachadinha do Queiroz, faz vista grossa para milícias e tudo que possa ferir o poder que alcançou negociando cargo em plena gestão de suas condenações da lava jato. Moro parece só pensar agora em ser o próximo presidente, e não tem tempo para a justiça. Tampouco se explica ao país. O poder é mais um dos seus brinquedinhos, coisa de menino rico que só sabe ser o dono da bola e ganhar sozinho o jogo. Nada pra ele é do coletivo. Não está nem aí pro genocídio da juventude negra pois, em sua balança cega para os que dela precisam, pesa a desigualdade. A cada hora uma criança perde a vida no Rio de Janeiro na chamada guerra contra o crime. E só é assassinada criança preta e pobre. Os petroleiros estão em greve. A cada hora um trabalhador perde ainda mais sua possibilidade de trabalho na constante desindustrialização do país por parte deste governo. Também, fodam-se os trabalhadores pois o ministro da economia quer o dólar alto por que não quer saber desta farra de domésticas viajando pra Disney sem parar, já que, a sonhada bobagem de grandes bonecos de Mickey e Pateta, é simbologia branca da classe média, e de quem tem dinheiro. Não é pra pobre não, senão vira bagunça. O presidente é racista, homofóbico, misógino e publicamente sem qualquer pudor, desrespeitador das mulheres e de várias vastas “minorias”. Tenho vergonha dele. Aqui ainda me sinto mais mal. Trago um Brasil doente no peito. Na internet do mundo rola o fedor da nossa roupa suja. O pessoal aqui tá sabendo. O ataque baixo do presidente à jornalista Patricia Campos Mello, ao jornal Folha de S.Paulo e a toda imprensa independente que o está criticando, todo mundo tá sabendo. Que horror! Socorro! Estou num festival de letras representando um país cujo presidente não me representa, não acredita nas letras e que, em nome de deus quer que o pobre continue pobre e não tenha dignidade nem saída. Estou representando um país cujo presidente se tornou internacionalmente metáfora de coisa ruim. Referência de despotismo, de fascismo, de atraso. Todos o sabem. Perguntam-me nas ruas daqui estarrecidos. Na lanchonete o rapaz que faz o sanduíche me questiona: “O que aconteceu ao Brasil? O homem só faz estragos! Só diz asneiras! E a Regina Duarte, será que não vê isto, oi?”

Por isso, declaro aos presentes aqui: Sei que o mundo está assistindo nossa dor.

Nossa democracia sofre duros e sucessivos golpes numa nocauteante sequência. Estava num bom caminho e nitidamente desandou aos nossos olhos e aos olhos do mundo que sinceramente tinham o Brasil num imaginário de um notável país, amante da liberdade e em desenvolvimento que, reduziu a fome, ostentou o SUS como melhor atendimento de saúde pública do mundo, zerou o analfabetismo, foi referência no combate à Aids. Fez o dinheiro circular e o trabalhador começou a poder andar de avião. Diminuiu com forte impacto a população abandonada e moradora das ruas das grandes cidades. Preto, indígena e pobre ocupando lugares nobres nas PUCs e outras importantes Universidades, LGBTQI+ avançando nitidamente ao seu lugar legítimo de cidadania.

De repente, o tempo virou.

Rapidamente o Brasil sai deste lugar pra virar constrangimento? Para citar e namorar os conceitos nazistas em pleno 2020? Enquanto as universidades do mundo estudam e aplicam o método Paulo Freire de ensino o presidente o ataca, ofende sua memória, importância e saber, na cara de quem o estudou? O presidente se volta contra a literatura, o cinema, os artistas, os professores, os direitos humanos? Enquanto os terreiros de candomblé e umbanda são atacados e vilipendiados por neo fundamentalistas, a Damares faz de seu ministério um templo, defende abstinência sexual para os jovens e o Estado, que era laico, faz culto evangélico na assembleia do Rio???!!!! O racista Sérgio Camargo insiste em assumir a Fundação Palmares, criada para defender os direitos dos negros! O cara está sendo imposto como um lobo destinado a cuidar das chapeuzinhos. Ele tem sede. É capitão do mato. É como designar um pedófilo para coordenar uma creche. Mas venho avisar a este mundo que estamos lutando. O senhor Sérgio não nos representa e não vai ocupar a presidência que leva o nome do Quilombo mais poderoso de que já se teve notícia. Quem trai Zumbi não ocupará Palmares. Este presidente não nos representa. Falo em nome dos que nunca acreditaram neste governo e também dos que por ele foram traídos e só agora estão entendendo. E parabenizo os nossos constitucionalistas, os ativistas, os bravos parlamentares, os professores, os estudantes, os petroleiros, povos da floresta, povos das favelas, povos quilombolas, ambientalistas, aqueles que de suas trincheiras não cansam de lutar. Bolsonaro não tem partido nem tem o congresso. Se cercou de militares, e não aceita que nem todo seu desejo possa virar decreto. A lei o atrapalha. O congresso e a constituição complicam sua vida.

O Brasil se revelou na sua hipocrisia:

Está mais assumidamente racista, perdido nas fake news, vendo atrocidades em nome de Deus, da pátria e da família. Mas está cada vez menos explicado: de qual Deus, de que pátria e de qual família fala o presidente? E quem entrou pelo sistema de cotas na universidade está entendendo sim e explicando pro seu pessoal, esclarecendo, conscientizando. Agora temos mais advogados pretos, temos rede social filmando as barbáries, desafiando e esfregando na cara da sociedade a realidade que ninguém quer e ninguém queria ver. O mundo mudou. O país é novo e complexo. Por isso advogados rapidamente se apresentaram diante do abuso sofrido por Raull Santiago. Sempre foi assim pros pretos. Desde o nosso holocausto que durou 400 anos. Há muito nos matam por lá. Por isso o governo Lula criou a Secretaria Especial da Igualdade Racial que este governo fez questão de acabar. Mas agora todo mundo vê. Lê. A fofoca é geral. Salva, comenta e compartilha. Estamos mais articulados do que nunca e, embora mais silencioso do que o conjunto de seus algozes, o quilombo contemporâneo se avoluma. A minoria está ficando do tamanho da maioria que é. É ao vivo, em tempo real, sem edição. Haverá revolução.

Agradeço a esse encontro das Correntes D´Escritas, lugar onde a palavra é celebrada, em que várias vezes o Brasil foi citado como uma preocupação mundial. Sei que vocês sabem que o Brasil não é um caso isolado, e a retrógrada e insana mão da extrema direita ameaça o mundo. Por isso o Brasil percebe a solidariedade de todas entidades do planeta comprometidas com a igualdade, sabedora de que a desigualdade não produzirá a paz. Aproveito para compartilhar uma das lições que a nossa democracia duramente está recebendo: Nós da esquerda temos que nos livrar de costumes separatistas, preconceituosos que engendramos e praticamos em nossa política do cotidiano, e dos quais se aproveitam as forças conservadoras. Enquanto formos machistas, racistas e homofóbicos na vida íntima ou coletiva, mais estaremos vulneráveis ao nazismo e ao fascismo. Agradeço a este país que me recebe de braços abertos, aos escritores e poetas do mundo que cá estão, e faço questão de vos lembrar as palavras de Martin Luther King: “A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar”. Há um país que não aceita mais o racismo explícito do jornalista William Waack ou do Rodrigo Bocardi e que, apesar de sofrer toda a peste da evangelização tóxica em toda parte a dominar as mentes com seus moralismos, há um país cuja população adulta é filha da liberdade, e seus filhos mais ainda. Há uma país que não abrirá mão desta liberdade, que não a negociará, e que não vai parar de fazer amor, nem de exigir saber quem mandou matar Marielle!

Póvoa de Varzim, Inverno em fevereiro, 2020

 

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