Elisa Lucinda: Amor, o antibélico

Elisa Lucinda
Elisa Lucinda

 Passou a data comemorativa do Dia dos Namorados e ainda bem que os amantes persistem, resistem, insistem. Num mundo onde o amor e seus princípios são afrontados diuturnamente, urge espalhar suas mudas por aí. Não fosse a imperiosa, a colossal, a poderosa, a animal, a orgânica vontade de fuder, de transar, fazer amor, trepar, ter relações ou qualquer nome que se dê, viveríamos trancafiados , nestes tempos individuais, dentro de nossos corpos, de nossas casas, de nossas telas, nossos canais a rabo. É tempo de salvar o amor. O medo ganhou espaço. Precisamos nutrir a terra de amor. Parece piegas dizê-lo, mas não por isso me calarei: precisamos salvar o amor para que ele nos salve. Os amantes têm sido uns verdadeiros sobreviventes!

Reclama-se da dificuldade em se dar, em amar na contemporaneidade.Talvez a gente devesse desmembrar de uma vez o amor do império normativo moralista que o cerca, e muitos casais têm buscado tal proeza. Na verdade, ser humano é ser mistério. A subjetividade, acostumada a caminhar sobre ilusões, impressões, a caminhar sobre versões da realidade, versões estas apoiadas em cada cultura, alicerçadas em cada criação, varia muito e há uma diversidade imensa entre os seres.Porém,na mesma proporção há muita ignorância sobre o território emocional do outro. O que sabemos dos amores trans, lésbicos, gays? O que sabemos do que acontece realmente entre um casal hétero no escuro de um quarto, nos puteiros, nos palácios, nas praias desertas, nos becos?

A única coisa que sei é que afetos aprisionados se distanciam de sua gênese. E sei também que pode não ser boa ideia aquele ideal em que os dois amantes se vejam como um só ser. Se misturam de tal forma que o amor perde a saúde e a individualidade de cada um. São duas pessoas.São dois. Se eu começo a ser você e você a ser eu, os objetos se perdem e podemos não ter mais a quem amar ali,naquela casa daquele laço.

É muito interessante e necessário refletir sobre o amor como uma política de existência.Pessoas passam a vida em sua busca,desde a infância muitas vezes. Pela falta do amor, pela desimportância que a ele se oferece, esculachamos a Terra, sacaneamos o planeta, poluímos os ares, não nos reconhecemos como parte da natureza que destruímos, e por isso a destruímos.

 Quando criamos nossos filhos longe do sentimento coletivo, longe da convivência colaborativa,quando os criamos chafurdados na viagem egóica e capitalista de que estão se preparando para “vencer” o outro, para destruí-lo se preciso for, nós estamos dificultando o caminho afetivo daqueles pequenos cidadãos,e complicando sua vida adulta. E consequentemente a vida do mundo. Estamos assim adubando uma terra de dor,e preparando uma lavoura de guerra para todos.

Há muitas maneiras de se exercitar diariamente a nutrição ou a destruição dos focos de amor. É bom queestejamos atentos. Paulo Freire ensina que quando uma criança termina de fazer um desenho, e principalmente quando, depois de muito praticar a imaginação, ela é alfabetizada, se coloca imediatamente no lugar de sujeito criador, capaz de traduzir-se em narrativas. E a criação é uma experiência amorosa, é um jorro que faz da obra criatura, e do pequeno aprendiz um criador. Por isso a educação faz diferença no projeto de desenvolvimento de uma nação. A educação referencia no tempo e na história o cidadão. É igualmente importante que a experiência da criação,já desde a infância, tenha preço que não seja valorável necessariamente pelo que a sociedade entende como única forma de riqueza o dinheiro.Ou seja, um monte de gravetos dispostos diante de uma cavidade feita na areia, que forme um portão de um castelo pode significar verdadeiras e duradouras fortunas para aquele ser, a nível desinapses. Igualmente bem-vindos neste bojo são as folhas, as flores,os insetos,os animais,um beijo, uma canção, um papel desenhado, uma pedrinha.

Por mais que eu caminhe neste mundo cão, não conseguirei me afastar do tema amor.  Está espalhado em pequenos gestos e me é muito triste ver crianças que crescem exiladas dele, alijadas dos profundos efeitos de seu poder.Pobres criaturinhas que não interagem com nenhuma natureza, que se sentem interiormente travados para correr sobre uma duna livremente. São impedidos por dentro. Não se sentem confortáveis sem que não seja quando agarrados às telas dos tablets, e alguns já o fazem desde quando babavam. É muito triste ver um telefone celular substituindo o balanço, a árvore, a conversa, a historinha contada pelo pai ou pela mãe, o castelo de areia feito na praia. Será que não se vê que o castelo de areia é um palco perfeito para fabricações dos sonhos em liberdade?

Existe muita coisa fora dos joguinhos de ferir e matar. Existe um outro modo de se relacionar sem ser via competições e desavenças. Está por fora criar os meninos para a guerra, para ofender as meninas, para dar porrada no amiguinho. São incalculáveis os danos. Estão por fora aqueles filmes pornôs construídos sobre a dominação, influenciando negativamente a cabeça glande do jovem punheteiro iniciante na vida sexual. Um prazer escroto, feito de poderes e submissões como o único modo de acessar o gozo. Aquela mulher gritando fuck me, parece, inúmeras vezes, que não está gostando. Eu vejo. Parece um help me, às vezes. A coisa ganha mais entendimento quando percebemos que os roteiristas de tais filmes são, em sua maioria avassaladora, homens, e homens machistas. Há, por exemplo, nestas produções, uma diferença enorme entre o sexo oral feito no homem por uma mulher do que ao contrário. O que o homem faz ali é mais demonstrativo e rápido, do que exatamente prazeroso para a parceira. Da mesma maneira, nesses filmes, o sexo entre as meninas é mais para excitar os homens, é fake.

Mas catzo, o que é que tudo isso tem a ver com o Dia dos Namorados?! Tem que, na véspera deste dia, a Helem Moreira, importantíssima jovem voz negra nos movimentos sociais e anti racistas, em plena ascensão profissional, foi brutalmente assassinada pelo marido ciumento. E a cada minuto uma mulher é violentada e assassinada no Brasil. Tem que muitas mulheres ainda têm medo de perderem seus homens se não fizerem suas vontades, se usarem aquele short curtinho que elas adoram, ou forem para um barzinho com as amigas curtir. Tem que muitas mulheres entendem tal domínio como amor. Tem que, em verdade, não existe crime passional, porque quem ama não mata. Tem que o nome disso é crime de ódio. Tem que muitos homens ainda usam o verbo “ajudar” para qualificar sua participação na gestão do complexo cotidiano de uma família. Como se fosse um favor. Tem que, em muitos lugares, em pequenas ações diluídas na lira do dia a dia, ainda estamos mantendo costumes que ao fim, vão maltratar o amor. Ainda estamos agindo através das práticas educacionais que damos aos nossos filhos numa esfera tão pouco reflexiva que, por fim, vão não só respingar, mas sim decidir no futuro a vida amorosa desses filhos. Há sempre uma hora em que parte do futuro da humanidade está sob os nossos cuidados. Estará ali, na relação com nosso amor, tudo o que aprendemos desde a infância e logo fica provado se fomos criados para o amor ou para guerra. Muitos se reeducam depois de adultos, depois do susto destas dores. Outros seguem promovendo o individualismo que se estende em metástase nas orientações que se dá aos filhos. Cada vez menos tribais e coletivas, famílias se arrastam mudas, cada um agarrado à sua maquininha, sentados cada um, no seu mundo isolado, juntosporém separados, no restaurante, em casa, até na praia eu já vi.

Pois venho dizer que nossas telas virtuais, tão úteis, tão necessárias à comunicação moderna,nos conectam com o mundo não como fim, mas como ponto de partida, como salto para o real e assim deve ser.

Há mesmo muita gente com medo de amar, embora hoje o amor esteja mais saudável, mais sincero. Pelo menos hoje casamentos não mais se arrastam, moribundos, dependurados na mera aparência.  Há, mas diminuiu muito. O que se reclama agora é do medo de amar e talvez o temor de amar se dê por conta dessa infância sem conversa, dessa prisão dos condomínios fechados, etnicamente homogêneos por esse hábito calado de assistir a tudo, sem coragem de manifestar opinião,e o despreparo para viver a experiência de existir, coisa que não é bolinho não. Na relação direta da experiência humana os riscos são reais e muda-se de fase, tal qual nos joguinhos; mas é tudo improviso ali, nenhum luminoso avisa que o jogo continua ou acaba. Pelo menos não de maneira mecânica. No jogo ao vivo o olhar ao vivo conta. A luminosidade da presença. Tem a hora dele e da palavra. Tem a hora do olhar e da boca. Tem o cheiro, o ferormônico beijo que ninguém esperava, tem as unidas mãos dadas, o não desgrudar sem ninguém combinar nada. E tem as rejeições, os nãos, as discussões em nome até do próprio amor.

Como ainda se encontra apinhada de caretices, moralizamos, normatizamos a vida afetiva, tudo com as devidas fundações do machismo, do racismo, da homofobia sistêmica. Imagina o bololô. É até compreensível tanta guerra. Explicável.

Enquanto escrevo, a indústria bélica americana lucrou bilhões de dólares, só com o mercado interno, só com próprio consumo de armas de fogo. E todo produto precisa de propaganda. Para vender cada vez mais armas temos que vender antes o ódio, implementar sua cultura, torná-lo diário, cotidiano, até afirmarmos que o ódio é inerente a todo homem e assim decretarmos o fim do amor, seu único antídoto. Então,agora ,observe se o que há por trás de toda mazela não é a falta de amor?  O que são as corrupções, as injustiças, o roubo do dinheiro público, as escrotidões de nossos intolerantes senão o ódio pelas pátrias, pelo outro,pelo povo.Incrível!  No fundo de todas as misérias está a ausência do amor. É o amor de um pai pelo filho ou de outro adulto pela criança que desenvolve nela um amor por si capaz,principalmente, de reservar para o outro o carinho com o qual ela gostaria de ser tratada. Se observarmos esta medida e a aplicarmos como auto teste dentro do mais trivial gesto, vamos nos assustar ao ver o quanto somos injustos: será que eu gostaria de ser tratado com tanto controle como faço com minha mulher, com meu namorado? Será que eu suportaria este olhar de desprezo que ofereço ao meu conhecido só porque ele é negro, viado ou mais pobre do que eu?

Tais perguntas bobas podem dar respostas que vão dizer se estamos, na vida, próximos ou não do abismo da infelicidade, coisa da qual toda humanidade foge. Muitas atitudes e sensações ultrapassadas como excesso de ciúmes, a ilusão da posse de pessoas, as hipocrisias das juras de fidelidade obrigatória, ainda reinam entre os tablets e as quartas dimensões da mesa do século 21. É preciso quebrar tais armadilhas. Há coisas ultrapassadas e nefastas que já não são mais aplicáveis.Não cabem nos saberes atuais.

Bem, o assunto é vasto. Também não cabe aqui.

O amor faz parte de uma política da existência. Como vai a sua?

Só sei que há uma hora em que a ponta da dramaturgia da vida, o fio do novelo da novela vem parar na nossa mão e a gente continua a história do jeito que achamos melhor. Quando chega à minha mão, de minha parte, fico tentando levar a linha para o lado da cultura da paz com justiça. Pegar sempre uma mudinha de amor de um jardim e plantar no outro. Tenho mão boa, mas também erro e me traio, e me caio e me atrapalho querendo acertar, contaminada que também estou, por tantos sistemas condicionantes. Há muitas maneiras de cuidar dos afetos. Embora atenta, sei que não é fácil, mas ninguém falou que seria. O mundo todo precisa se acalmar, amar melhor, compreender a dimensão política que tem dentro do mais trivial gesto. Muitos em nome do amor praticam diariamente uma política de ódio sem perceber. Escrevo isso para que eu não seja aquela que observou tais pensamentos e atos e se omitiu,se calou. Vim falar do amor.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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