Ei… Rapaz! Pegou essa camisa onde, negão?

O caso de racismo “momesco” que se arrasta há nove anos na justiça baiana.

 por Franklim Peixinho, em parceria Jornalistas LivresCirandanetHori

–  Rapaz… preciso falar com você. Aconteceu um lance desagradável esse carnaval comigo.

– Qual foi?

– Fui impedido de entrar em um camarote, o qual já estava, sai para ver minha esposa, quando retornei fui impedido por que estava sem o ingresso, embora a camisa fosse o suficiente para entrar e eu já estava lá dentro.

– E aí?

– E aí? Quando questionei o porquê de outras pessoas adentrarem sem ingresso, só com a camisa, como eu, o cara me disse: “não me interessa os outros, mas saber onde você pegou essa camisa, negão” … “aqui não é espaço pra você”. A partir daí me vi cercando de seguranças tão negros como eu… pira aí bicho!

– O pior irmão é que nenhuma guarnição da PM quis me acompanhar para prender o segurança, tive que insistir muito para no terceiro posto da civil no circuito do carnaval, eles registrarem a ocorrência”.

História Real

Esta é uma história real que ocorreu no carnaval de Salvador em 2016, com um homem negro, advogado, compositor e agente cultural, Leandro Oliveira (@leandrofullmaca) ou Leandro Fullmaça (nome artístico), em um grande camarote, organizado por uma emissora de televisão.

Poderia ser um dos casos que entraria na cifra obscura ou “dark number”, relacionados aos crimes de racismo. Entretanto, tem um “dendê” ou uma “pimenta malagueta” a mais neste episódio de racismo no festival da música baiana.

Relata Leandro Fullmaça, que ganhara uma camisa do camarote vip HD, no carnaval de 2016, organizado pelo Planeta Band. Ao sair para ir na bilheteria tentar troca a camisa para um camarote inferior, onde estava sua ex-companheira, foi impedido de retornar pelos seguranças, que exigiram a exibição de um convite, fato este que não ocorrera com pessoas brancas, que adentravam somente com a camisa do camarote.

Leandro Fullmaça já estava no camarote!

Não é novidade que no carnaval soteropolitano o “mito da democracia racial”, mostrar ao mais preguiçoso observador, a falsidade desta harmonia na convivência e tratamento entre negros e brancos nos espaços momescos.

Para o soteropolitano quem tem mais de 30 anos, guarda bem na memória os latentes ou não manifestos critérios de seleção de “gente bonita” dos grandes blocos carnavalescos tradicionais de Salvador, em que a ficha de inscrição com a foto 3×4 e o indispensável comprovante de residência, conduzia a uma aporofobica e racista escolha de um público branco dos bairros nobres soteropolitanos.

Na “pipoca” espremida por cordeiros negros e “fantadas” da “fila de soldados, quase todos pretos, dando porrada na nuca de malandros pretos”, há o “batifum” – expressão de Salvador para um monte de gente pulando – o local de êxtase, privação e luta por parcos espaços, que sobram do que foi ocupado pela “Casa Grande”. Esta tem assegurado o seu direito de pular, cheirar e beber em paz, com proteção e conforto; ainda bem que pelo menos “a praça Castro Alves é do povo”,… pelo menos.

Racismo no carnaval da Bahia não é novidade – sem falar na Axé Music (aí é outro pano pra manga), vide “só louvo meu Rei Yeshua”, da nega loira.

O caso do racismo sofrido por Leandro Fullmaça reverberou em 2016 em diversos espaços institucionais, culturais e políticos (Ministério Público, Aganju, Blog de João Jorge do Olodum…), o que resultou na sua intimação para depor sobre o ocorrido, sete meses depois do carnaval, na 7° delegacia do bairro do Rio Vermelho.

Para sua surpresa, a ocorrência registrada no circuito da folia, em sua terceira tentativa, não existia no sistema da Secretaria de Segurança Pública da Bahia.

O estarrecedor deste enredo foi a postura dos agentes públicos, ao julgar discricionariamente que o racismo praticado neste caso, era algo de somenos, “normal ou coisas do carnaval” – palavras ditas no contexto pelos policiais –, ou ainda ao negar o registro da ocorrência, por ser na interpretação do “puliça” um caso banal, que não justificaria a atuação das forças de segurança pública.

Justiça tardia é justiça racista!

O caso se arrasta há mais de oito anos nos corredores da justiça baiana. Corre o processo cível na  2º vara de consumo de Salvador sob o nº 0516042-93.2016.8.05.0001.

Estranhamente, o magistrado, Dr. Roberto José Lima Costa, que presidiu a audiência e colheita das provas foi substituído pela magistrada Célia Maria Cardozo dos Reis Queiroz, que julgou o caso de racismo improcedente.

Caneta branca para julgar racismo contra negro?

Atualmente, o processo segue em grau de recurso no Tribunal de Justiça da Bahia, com julgamento marcado no dia 19/03/2024, porém adiado com pedido de vistas por um dos desembargadores que irá julgar o caso.

Acesso em 29 de março de 2024

Também se arrasta desde 2016, o inquérito policial que apura o caso, sem qualquer desfecho, mesmo com o pedido de providências realizado pelo Ministério Público estadual, por meio da Promotora Lívia Vaz.

O negro quando é vítima, como neste caso, enfrenta estas barreiras para a tipificação penal do racismo, com interpretações que relativizam  a conduta do criminoso, pois “não foi bem assim”, “o racismo tá na sua cabeça”, até  por que“a raça é humana”,  e outra,“não sou racista, inclusive tenho amigos negros”.

Que o fogo da justiça de Xangô queime toda estratégia racista, neste caso e em todos que esperam na fila longa da justiça branca.

“… mesmo que o rádio não toque, mesmo que a TV não mostre, aqui vamos nós, cantado reggae, Alelulia Jah!…” (Sangue Azul –  Canção de Edson Gomes).

Franklim Peixinho é homem negro, Ogan do Ilê Axé Ikandèlé, professor de História e Direito Penal, advogado antirracista, militante do Círculo Palmarino/Bahia, Dirigente do Instituto Hori. Mestre em Políticas Públicas e em História da África, Diáspora e Povos Indígenas (UFRB), Doutor em Ciências Jurídicas. Pesquisa a necropolítica da guerra às drogas no Brasil e educação antirracista.

Artigos de Franklim Peixinho

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