É PRECISO FALAR DOS ESTADOS UNIDOS

 

ARTIGO

Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes, da Universidade Federal Fluminense

 

            A maioria de nós foi estimulada a ver os EUA como protetores da humanidade. Mesmo nas guerras com objetivos eminentemente comerciais, o discurso de liberdade e defesa da democracia em favor de povos tiranizados parecia a justificativa política nobre e necessária para toda sorte de genocídios. A indústria cinematográfica não mediu esforços para vender essa imagem. Antes, quando os soviéticos eram os principais antagonistas, o super-herói alienígena que ganhou cidadania americana não media esforços para livrar a humanidade de uma guerra nuclear.

            Quando as tensões da Guerra Fria arrefeceram, novos inimigos foram imediatamente escalados. Além do Oriente Médio, que situava a salvaguarda das liberdades no plano terreno, os EUA combateram, em nome da vida no planeta, uma série de ameaças alienígenas. Não pouparam investimentos para vender a imagem de que estávamos mais seguros com eles. Nada disso é novidade, mas ainda que muitas vezes a ficção se desdobre como uma possibilidade real, em outras tantas não passa de simples fantasia oportuna, rasteira e miserável.

            A ameaça surgiu e não veio de outro planeta. Ela é invisível a olho nu, mas seus efeitos são duramente sentidos: no momento em que escrevo, ultrapassamos a marca de um milhão de casos e 70 mil mortos, mas esse número é certamente subestimado. A letalidade é alta para uma doença que se dissemina com tanta facilidade, e para nosso lamento, a pandemia está apenas no começo. Poucos duvidam que o número de vítimas excederá os da Guerra do Vietnã, mas se essa parece uma cifra demasiado distante, façamos outra conta: já morreram 23 vezes mais pessoas do que no atentado às Torres Gêmeas ou 11 vezes mais do que o número de mortos pela polícia brasileira no ano de 2019. Não mata mais que a fome, é verdade, que atinge 820 milhões de pessoas no mundo, mas isso não é uma competição, mesmo porque os famintos são também os mais frágeis diante dos sintomas do COVID-19, tanto pela imunidade baixa como porque não gozam dos mesmos privilégios sanitários e acesso à saúde que os que se alimentam em demasia.

            Mas acontece que o vírus é um inimigo sem vergonha. Ele anda por aí sorrateiro, disfarçado, incólume, apátrida. Além disso, não faz distinção entre ricos e pobres em termos de contágio: Bill Gates e Jeff Bezos podem se contaminar da mesma forma que o mais miserável dos sujeitos. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, foi infectado pela mesma doença que faz padecer centenas de Josés e Marias da América Latina. É aí que mora o segundo perigo do coronavírus, pois ele abre o flanco para discursos que falsamente atribuem condições de igualdade ou indistinção entre ricos e pobres. É o momento em que sai do fundo do poço aquele sujeito de bom coração que diz “estamos todos no mesmo barco” e que “é preciso superar as diferenças pelo bem comum”. Nada poderia ser mais falso, e os EUA estão aí para que lembremos disso.

             De repente, quando a realidade se impõe como um machado sob nossas cabeças, toda filmografia redentora que alçava os EUA à condição de tutores do mundo se vê naufragar diante da busca por soluções visceralmente nacionais em meio a uma crise de dimensão planetária. Farinha pouca? Meu pirão primeiro.

            Donald Trump decidiu agir após semanas de negligência, e quando fê-lo, não abandonou seu estilo: America First!. O ultranacionalismo e o excesso de medidas protetivas que o mundo conhecia desde antes da epidemia continuou com ela na forma do mais selvagem capitalismo que os EUA defendem como modelo. Com absoluta certeza a recessão econômica os atingirá e exacerbará as desigualdades econômicas com que decidiram conviver.

            Ninguém passará incólume, é verdade, mas contra o falso discurso de igualdade, é bom que se note que muitos morrerão para que os efeitos da crise sejam menos cruéis entre os ianques. Todo o poder econômico construído à custa da miséria alheia é mobilizado para resguardá-los dessa mesma miséria que, mais uma vez, decidiram vender. Na última semana, os EUA adotaram práticas que foram descritas por autoridades de vários países como “pirataria moderna”.

           Para que ninguém duvide de sua intenção, Trump declarou no último sábado (4/4/2020): “Não queremos outros conseguindo máscaras”. Difícil saber a que se referia: se ao confisco em Bangcoc das máscaras que iriam para a Alemanha, se à carga com 600 respiradores artificiais produzidos pela China que viriam para o Brasil e foram retidos no aeroporto de Miami, ou à proibição que impôs à norte-americana 3M (maior produtora mundial de máscaras modelo FFP2) para que não exportasse seus produtos para outros países. E para aqueles que seguem defendendo união no momento de crise, é importante lembrar que o longo embargo econômico imposto a Cuba impediu que máscaras, ventiladores e testes para detectar o vírus SARS-CoV-2 chegassem à ilha após doação feita pela empresa chinesa Alibaba.

            Não são poucos os exemplos de solidariedade internacional. A própria Cuba tem enviado médicos para ajudar no tratamento de doentes e que são recebidos com aplausos em vários países. Não obstante terem sido defenestrados do Brasil por Jair Bolsonaro e sua trupe de puxa-sacos de Trump, retornarão para ajudar o mesmo povo que os expulsou. Em 18 de março, o cruzeiro britânico MS Braemer com infectados pelo COVID-19, que havia sido rejeitado por diversos países caribenhos, atracou em Havana e foi acolhido por razões humanitárias.

            Há outros exemplos que poderiam inspirar quem mais pode a fazer mais, mas isso seria contraproducente e incoerente com que os EUA decidiram como próprio de si: America First!. E não se espante se daqui há algum tempo aparecer algum filme louvando a dedicação dos EUA em livrar o mundo do coronavírus. A ficção não será uma realidade possível, mas a falsificação possível da realidade. A miséria sempre foi seu principal produto de exportação e gozam de imensa experiência em fingir ser o que não são. Não, não estamos no mesmo barco, até porque, se estivéssemos, os EUA dariam um jeito de nos jogar aos tubarões.

           

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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