Por Renê Gardim (*)
Dentro da lógica capitalista, o número de pessoas passando fome se justifica no Brasil pelo fato de considerável parte da população estar abaixo da linha da pobreza. E esse número tem crescido assustadoramente. Afinal, o sistema vive de números. Mas os números mostram um incômodo paradoxo.
Atualmente, há mais de 14 milhões de brasileiros passando fome. Também existem milhões de pessoas no limítrofe da extrema pobreza. Enquanto isso, um estudo divulgado pela Embrapa em março deste ano mostra que o agronegócio do Brasil é responsável pela alimentação de cerca de 800 milhões de pessoas ou aproximadamente 10% da população global.
O levantamento mediu apenas os dados a partir da produção básica de grãos e oleaginosas no país. Não considerou o que produzimos de carne, hortaliças, frutas e por aí afora. Se o IBGE calcula (lembrem-se que há 11 anos não temos um censo populacional) que temos cerca de 213 milhões de habitantes no país, a conta não fecha.
Ah! dirão os capitalistas, o empobrecimento da população não permite que tenham dinheiro para as compras. E isso não está errado. Mas estamos falando em comida, não em carros de luxo, mansões em Brasília, viagens a Israel, Nova York, Dubai. Nem mesmo em roupas e festas. Estamos falando de alimentação mínima para garantir a saúde das pessoas. Estamos falando de fome.
E, pasmem!, pelas regras estabelecidas pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, a FAO, ela também um órgão criado pelo capitalismo, assim como a Organização Mundial da Saúde (OMS), cada pessoa necessita consumir, em média, 250 quilos de grãos por ano para viver.
Desta forma, para saber se um país é capaz de garantir sua segurança alimentar, basta dividir a produção total de grãos no ano pela população. Os países com produção superior a esta necessidade básica estão em segurança alimentar. Aqueles que produzem menos e não asseguram nem 250 quilos por habitante/ano estão em insegurança alimentar.
O Brasil produziu 254 milhões de toneladas de grãos na safra 2020/2021, que foi encerrada em junho deste ano, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), órgão do Ministério da Agricultura. Portanto, somente em grãos (aí temos basicamente soja e milho) nós produzimos duas toneladas por habitantes, mais do que o suficiente para que nos coloquem entre a casta de países em segurança alimentar.
Ou seja, somente o que produzimos de grãos seria suficiente para alimentar quatro vezes a nossa população, algo em torno de 900 milhões de pessoas. Mas a agropecuária brasileira vai muito além. Ela produz todo ano algo como 35 milhões de toneladas de mandioca, batata, inhame, batata doce, cará.
Somos líderes na produção de laranja, com cerca de 20 milhões de toneladas por ano. E ainda são mais de 40 milhões de toneladas de frutas, sendo 7 milhões de toneladas somente de banana; 10 milhões de toneladas de hortaliças. Isso sem contar com um milhão de tonelada de castanhas, amêndoas, pinhões e nozes e 34 milhões de toneladas de açúcar. E somos o quarto produtor mundial de feijão.
OSSO NO JANTAR
Apesar de tudo isso, fomos confrontados com a deprimente cena de pessoas avançando em um caminhão com carcaça de bois em decomposição para conseguirem um pouco de carne. Proteína, aliás, que é fartamente produzida por aqui. Temos o maior rebanho bovino do mundo, com 217 milhões de cabeças. Mais de um animal para cada habitante. Se considerarmos a produção de carnes (bovina, suína e aves) o país produziu 29 milhões de toneladas em 2020. Dessas, cerca de 11 milhões de toneladas foram bovinas.
Portanto, não falta alimento, não falta carne. O que falta é uma política nacional de segurança alimentar que garanta que a população tenha comida em seu prato e não precise rastejar para ter um osso na sopa rala.
Os estoques reguladores da Conab, que deveriam servir a esse propósito, estão zerados desde 2019. É preciso ser justo. Eles vinham em queda desde 2017. E foram ignorados pelo atual governo.
O povo passa fome não é devido ao desemprego elevado, nem à inflação galopante. Temos como alimentar nossa população. O que não temos é vontade política para isso.
(*) Jornalista há 36 anos, atuou na Folha de Londrina, Jornal de Londrina e RBS. Foi editor de economia e agronegócio no DCI.