Dez crimes que levaram à cassação de Renato Freitas

Negro, pobre, periférico, Renato Freitas acreditou que era possível lutar contra o racismo e a exclusão e sair impune. Mas a Câmara nos mostra mais uma vez que isso é impossível
Renato Freitas em sessão do Conselho de Ética. Foto: Carlos Costa/CMC

Por que a Câmara de Curitiba vai cassar Renato Freitas? Punir um colega vai contra tudo que os vereadores da cidade acreditam – e no entanto, ficou claro que dessa vez não há escapatória. Derrotado no Conselho de Ética, Renato provavelmente sofrerá um resultado ainda mais humilhante em plenário. Perderá não só o mandato como os direitos políticos. Não exercerá mais o cargo para o qual foi eleito, nem poderá disputar as eleições de outubro.

Por Rogerio Galindo, do Plural

Mas por quê? A Câmara de Curitiba é conhecida por seu corporativismo: teve todas as oportunidades para cassar mandatos, e sempre recuou. Um presidente que mandou por 15 anos a Câmara com mão de ferro foi pego em um escândalo milionário – não foi cassado. Vereadoras foram pegas fazendo rachadinha em seus gabinetes – não foram cassadas. Um vereador cometeu assédio sexual – não foi cassado. Outro cometeu racismo explícito – e escapou.

Por que Renato Freitas não escapará? Por que pela primeira vez a Câmara decide que é preciso punir como máximo rigor um de seus pares. Uma vereadora que roubou o erário perdeu apenas o direito de falar ao microfone por uns dias. Renato Freitas será cassado, expulso da Câmara, expelido da vida política de Curitiba – será enxotado como um cão indesejado que entrasse pela porta da Câmara. Por quê?

Há motivos para isso, e não são difíceis de se perceber. Renato Freitas é vereador, e aí acaba toda a semelhança entre ele e seus pares julgados anteriormente. Em todo o resto ele é uma exceção. E ser fora do padrão é seu crime.

O primeiro erro de Renato Freitas foi nascer preto. O segundo foi nascer pobre. O terceiro foi nascer na periferia.

Claro, há outros vereadores negros (poucos). Há quem tenha nascido pobre, e sempre há os representantes da periferia. Mas Renato Freitas é diferente dele também. Porque há outros crimes que o levam a ser alvo dessa cassação.

Ao contrário de outros vereadores negros, ele é um dos dois únicos que fez da raça a causa de seu mandato – a outra é Carol Dartora, e não seria de se espantar se ela for a próxima.

Ao contrário de outros vereadores pobres, Renato Freitas fez da defesa dos pobres um motivo de seu mandato. Não usou seus eleitores para trocá-los por emendas, por cargos e privilégios, e sim realmente tentou mudar suas vidas.

Ao contrário de outros vereadores periféricos, Renato Freitas continuou estando à margem: fez questão de manter seu cabelo afro, para horror da Câmara; e para horror da Câmara, veste camiseta, anda de skate, fala como quem é.

Esse é o quarto crime de Renato – não ter mudado depois da eleição, nem ter decidido que a política era algo que deveria mudar sua vida. Muito pelo contrário, ter tomado a decisão de ser quem é e de usar a política para mudar a vida de seus eleitores.

O quinto crime de Renato Freitas foi achar que não era preciso baixar a cabeça. Que chegando à Câmara seria possível ser encarado como um igual. Isso jamais acontecerá. No mandato, foi chamado de moleque, destratado, detido, preso, arrastado, levado à força pela Guarda Municipal, que subiu em seu corpo negro e algemado, como numa pintura do século 18.

O sexto crime de Renato foi acreditar que a Câmara era um lugar para se fazer política, para lutar por causas, e não para se dobrar ao prefeito, aos empresários, aos donos da cidade.

O sétimo foi sua convicção de que uma cidade pode mudar rapidamente, que é possível convencer as pessoas de que é possível viver sem se sujeitar a regras econômicas injustas, que é dever de um político se rebelar contra o que vê de errado.

O crime de número oito foi ter orgulho. O de número nove foi não ter medo.

Mas o décimo crime, o realmente imperdoável, foi o de revelar com sua coragem o quanto são pusilânimes os vereadores em sua maioria. Aqueles que se elegem em nome da ambição pessoal; que se realizam ao ganhar loas e cargos; que vivem para si e para navegar em privilégios; e que jamais pensaram em mudar nada com seus mandatos. Pelo contrário: pois na maioria os vereadores de Curitiba, como a maior parte dos políticos, existe para garantir que tudo permaneça exatamente como está.

Existem para garantir que os pobres continuem pobres.

Que o prefeito possa governar para os privilegiados sem que haja uma revolta.

Existem para garantir que a educação seja frágil e “sem partido”.

Para ter certeza de que a ganância dos empresários do lixo, do transporte, da saúde seja saciada e passe impune.

Ocupam seus mandatos para ser parte de uma máquina que garante a divisão da cidade em mandantes e mandados. Nos que podem tudo e nos que nada podem.

Revelar essa monstruosidade, revelar a cumplicidade da Câmara com tudo isso, é imperdoável. Lutar contra o racismo quando a maioria dos vereadores é racista; cobrar justiça quando a maior parte da Câmara é injusta; exigir que as coisas mudem quando tudo o que os vereadores querem é que tudo permaneça no seu lugar, principalmente o que está errado; eis o crime imperdoável.

Renato Freitas será expulso da vida pública. Mas surgirão outros Renatos. Porque não é possível que isso permaneça para sempre. É preciso acreditar que as injustiças não perduram indefinidamente, ou perderemos a vontade de ser cidadãos.

A Câmara de Curitiba nos ensinou mais uma vez a eterna lição: não existe mudança que venha fácil. Mas os eleitores jovens, negros, pobres, periféricos de Curitiba ainda vão prevalecer. E nesse momento, os atuais vereadores vão ser vistos pelo que são – artífices voluntários de uma cidade sempre mais injusta e excludente.

COMENTÁRIOS

25 respostas

  1. Não baixe a cabeça,siga sendo esse homem negro de fibra sempre.

  2. Melhor matéria jornalística que eu li no Brasil nos últimos tempos!
    Parabéns

  3. A periferia precisa aparecer, ser vista, notada politicamente, e o vereador Renato Freitas, tornou possível isso, e despertou a fúria da burguesia.

  4. Não não foi por ter nascido preto e pobre foi por ser um ativista irresponsável inconsequente baderneiro aí está pagando o preço

  5. Renato. Força pra você continuar na luta diário de um Brasil racista.

  6. Repugnante e abjeta a decisão da Câmara de Curitiba. Precisamos de Renato, de sua indignação, de sua luta e sua coragem. Precisamos de muitos Renatos! Somos todos Renato Freitas. Fora, vereadores canalhas!

  7. A câmara de Curitiba é o espelho da sociedade sulista:
    Covarde,injusta,racista, ignorante,mas sobretudo preconceituosa!! Esta decisão era esperada por todos que conhecem aquela camarilha!!!

  8. O mundo da desigualdade fala mais alto infelizmente!

  9. Verdade, Curitiba é uma cidade linda, mas super excludente. Feita para homens brancos. Uma pena!

  10. Ok, mas qual a acusação formal da casa? A que entra para os autos, anais e outros salamaleques?

  11. Recriem os Diretórios Estudantis , e verão nascer vários Líderes como Renato . Diretórios geridos por estudantes (e não por professores de educação física )nas Escolas Públicas e Privadas
    . Antigos berços geradores de lideres comunitários .

  12. Força Renato! Estamos com você! Um dia a periferia acordará e tirará esses mercenários da câmara. Não desista, lute! E continue sendo quem você é…um cidadão que merece todo nosso respeito. Abraços companheiro!

  13. Um absurdo não podemos ficar de braços cruzados esperando acontecer ,moro muito longe de Curitiba, não posso me manifestar pessoalmente, mas deixo aqui meu repúdio a esse ato de covardia,

  14. Lamentável. Mas é isso mesmo, não se pode ir contra o sistema ou se é expulso. O mesmo ocorreu com o deputado de SP que, embora seja execrável, só foi punido por arrumar briga com seus pares. Quem sabe, um dia, isso mude… só depende de nós.

  15. Não acredito que a Câmara de Curitiba vai caça – l o

  16. Não se pode discriminar que punir o ato de ser diferente,pensar diferente e ter uma cultura diferente!

  17. Um absurdo tudo isso, essa cidade sempre foi racista e preconceituosa. Mas essa onda de ódio e injustiça passará, Renato é jovem e logo logo dará a volta por cima. Força Renato, tamo juntos.

  18. Texto triste e incrível! Essa é a nossa cruel realidade. Realmente esses são seus crimes

  19. Realmente os crimes são grandes ……lutar com a ordem vigente e pelo consenso fabricado e mantido pela ordem dominante não é para qualquer um, e na maioria das vezes, sacrifica inocentes. Renato Freitas é culpado de se impor e tentar com todas as suas forças lutar contra as injustiças denunciando a estrutura injusta e o cruel produto disso ….a pobreza, a doença, a miséria, a fome e a morte dos mais humildes.
    Força Renato Freitas……. você é um guerreiro!!
    Para aqueles políticos, empresários e puxa sacos que se voltam contra um dos únicos mandatos na Câmara de Curitiba que realmente representa o pobre trabalhador negro e demais etnias digo: ” CUIDADO SENHORES, CUIDADO, A MÃO DE DEUS PESARÁ SOBRE VOSSAS CABEÇAS”.

  20. Outros Relatos virão; convencer a classe dominante que é preciso reduzir seus privilégios sem ruptura da ordem é conversa; mas outros Renatos virão.

  21. A cassação de Renato Freitas revela o racismo da Câmara Municipal de Curitiba

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