Elisa Lucinda
Elisa Lucinda

Me lembro quando ainda fazia teatro amador no Espírito Santo e também trabalhava como jornalista. Meu chefe-editor, uma vez ficou massageando meu ombro, eu sentada escrevendo texto e ele perguntando baixinho e dubiamente: “Já terminou? Tá ficando bonitinho?” Lembro o quanto era constrangedor. O quanto aquilo me incomodava e eu tentava deixar claro ou não disfarçar o que era explícito do meu incômodo. A sensação que eu tive é de que aquilo durou horas e deve ter sido segundos. Só que a nossa geração não sabia que isso se chamava assédio. Não o nomeávamos. Era como se fizesse parte. Fomos criadas para nos defender dos homens, para escapar deles. Só isso. Embora eu me visse impedida de falar sobre o que estava acontecendo, como se me faltasse factualidade, como se a possível acusação que eu fizesse pudesse se perder na névoa da subjetividade das interpretações e acabar se voltando contra mim, ainda assim , meu corpo tentava um protesto tímido que fosse , mas que exacerbasse o constrangimento e o desconforto da cena. Eu não sabia que era silenciamento a ausência de minha palavra naquela hora. Logo eu.

 

Mas do que estamos falando? De um contexto em que uma moça negra, inserida no estigma da “mulata brasileira”, recém formada no primeiro curso de jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo e que, por competência, ocupava tal posto num ambiente predominantemente masculino e branco. Era barra pesada. Mas o nosso feminismo, isso não faz tanto tempo assim, ainda não havia nos levado a esse olhar; estávamos desfrutando das pílulas, das escolhas, tomávamos anticoncepcionais antes mesmo de começarmos a ter vida sexual. A geração de minha irmã, mais velha que eu, tinha “rasgado sutiãs”, envolta numa onda do feminismo internacional, e no começo do casamento de minha mãe, ela e as das sua geração lutavam para que os maridos permitissem que usassem calça comprida e trabalhassem fora. Nesta época vivíamos sem questionar essa dupla cauda do cortejo masculino, a cantada, o galanteio. Resvalar para o assédio, o abuso, a invasão, a grosseria e o estupro, é coisa que caminhou sempre numa linha muito tênue. Como o território do corpo feminino foi historicamente calado, mutilado, emudecido, negociado e desfrutado para uso de seus donos, normatizou-se o trânsito sobre este corpo feminino de maneira tal que a história nos obriga a fazer um feminismo em camadas e cada tempo prioriza uma, em cada tempo encara sua etapa.

O feminismo de agora é fruto do que foi feito antes e está se caracterizando por uma inevitável onda configurada pelo que estamos chamando da era do fim do nosso silêncio. Time´s up. É tempo de desconstrução. Reformatação do que entendemos até como romantismo. Ainda existem mulheres com triplas jornadas de trabalho que, afoitas ,têm que correr para casa porque os maridos não gostam que elas cheguem depois deles. Exigem que já estejam em casa quando chegarem. Elas ainda não vêem como controle o dito “ ciúme” , o domínio do tempo dela e de seus horários, a medida e os decotes de suas roupas, e outros despotismos de fórum íntimo. No entanto, o mundo todo se conecta e cada vez mais vozes femininas assumem a plataforma de suas narrativas e, sem o silêncio, nada mais poderá ser detido debaixo do tapete. A garantia do nosso silêncio sempre foi o grande cúmplice do nosso algoz. Sempre protegeu o assediador. O cara sempre se sentiu à vontade para dizer as coisas mais violentas, invasivas e principalmente não desejadas pela vítima, objeto do suposto “galanteio”, porque sabe que a mulher “direita”, “digna”, bem-educada, ficará em silêncio. Se abrimos a boca, desfazemos o jogo, ferimos suas regras, revelamos nosso descontentamento. O novo tempo exige educação de homens e mulheres. Atualização. É tempo de desconstrução, repito. Algumas ilusões caíram brutalmente por terra, não lamentemos. Eram ilusões.

O machismo e a falocracia são tão berrantes e abusivos e estão, em nosso olhar crítico, representando um lugar de tamanho privilégio para os homens, que nem notamos os danos que os mesmos causam aos mesmos homens e às tentativas da humanidade em caminhar para uma sociedade mais harmônica, menos competitiva, menos violenta.

 

Na educação masculina, na contrapartida do nosso silêncio como bons modos, aos meninos foi ensinado “mexer” com a mulher quando ela passa. “É sua obrigação de macho”. Já cansei de observar alguns que “mexem” rapidamente, timidamente, como se tivessem que fazê-lo, como se aquilo os oprimisse. É como se ele tivesse vergonha mas não pudesse evitar. É como um TOC, um transtorno. Ele se sente obrigado em falar alguma coisa, senão não é homem. Algumas mulheres da minha turma na universidade, entre elas, eu, gostavam de confrontá-los: “Você é muito gostosa” (o sujeito dizia meio entre dentes). O que é que você disse? Eu voltava a ele perguntando. Geralmente o cara corria, se tivesse de carro acelerava como se tivesse medo. Muitos até hoje o fazem igual.

 

Os homens precisam se reunir mais e mais entre eles, discutir essa cadeia de privilégios duvidosos onde literalmente se meteram e se foderam na emoção, na manifestação de suas sensibilidades, na drástica redução de sua subjetividade ao pobre binário modelo masculino: Ou é babaca e brigão, ou é sensível e viado. Deu em guerra. Deu em dor. Deu em massacre em muitas sensibilidades, deu em sufoco no coração de muitos meninos.

 

Sou do feminismo contemporâneo. Mulheres desse novo tempo me ensinam e me sinto muito confortável em dar nome de assédio a tantos infortúnios que sofremos. Nossas novas narrativas deixam claro o equívoco da carta da França, a comentada carta encabeçada por Catherine Deneuve e outras atrizes em franco contraponto à porrada substanciosa da negra power Oprah Winfrey. A carta da França é um equívoco porque autoriza as violações do território feminino das quais estamos cansadas e que, por não estarmos mais silenciadas, fizemos dessa fratura uma coisa exposta. Não se trata aqui de um feminismo agressivo e intolerante. Nenhuma de nós quer que homem acabe. Ninguém quer deixar de ser chamada de bonita. Nem de ser elogiada no social. É muito difícil alguém se voltar contra o afeto. Não é isso que queremos. Não é o fim da cantada, não se trata aqui duma ameaça à todas as possibilidades de manifestação do desejo. Oprah, grande e carismática comunicadora, foi muito contundente e não deixou dúvidas: Dedicou sua fala à milhares de mulheres que, por terem filhos, não puderam romper com o laço trabalhista abusivo que as oprimia. Suportaram, caladas, assédios normatizados dentro das empresas, em silêncio, num mercado que ainda paga menos a mão de obra feminina. O ardil de tantos anos de abuso fez também com que tivéssemos medo de sermos tratadas como vilãs e não como vítimas: “Ela que seduziu”. “Ele é homem fez o papel dele”. Em nome dessa moral, muitas mulheres foram mortas, assassinadas em nome da honra, enquanto advogados de defesa usavam bizarros argumentos apoiados nesta “justiça”: Que homem não faria o que este homem fez?”

Há pouco tempo, um namorado mais jovem do que eu, insistia em me beijar enquanto eu tentava explicar para ele, que não nos víamos há 6 meses, que havia uma distância que havíamos percorrido um do outro e que pra gente voltar a se relacionar teríamos que recuperar nossa proximidade. Enquanto eu dizia isso com calma, ele tentava me puxar pra ele, ignorava o que eu dizia. Continuei. Não quero te beijar agora, quero que a gente compreenda que está acontecendo alguma coisa que tem nos afastado. Mas ele prosseguia, insistente, como se tudo que eu dizia fosse uma cena. Tinha descrédito e quase desprezo pelas minhas palavras de limite físico para ele, além de uma estranha e antiga certeza de que, ao final, eu “cederia” e que, meu não se transformaria num sim. Achei aquilo, sobretudo, antiquado. Um jovem de 35 anos?! Pára, eu não quero te beijar agora, me escuta! Eu disse. E ele: “Você não vê que eu estou agindo assim por que estou morrendo de saudades? Você não entende?” Mas essa mão é dupla, meu querido, e isto que você está puxando é o meu corpo; meu corpo, minhas regras! Ele então deu um risinho e soltou o que seria responsável por sua “sentença”: “Ai, tá muito feminazzi”. Olhei profundamente em seus olhos e disse: Descobri o nosso problema, você é muito velho para mim!

Entendo que estamos diante de um novo normal se estabelecendo. Mitos fortes rolam pela escada. Há muito o posto de rainha do lar já não nos atrai. Estamos reescrevendo o feminino nas tábuas do agora. Esta confusão que tenta acusar o protesto das americanas, das brasileiras e outras feministas do mundo de puritanistas não colará. Há muito levamos camisinhas em nossas bolsas pessoais, estamos namorando com liberdade, e os filhos, há um bom tempo, transam nas casas dos pais. É uma extemporaneidade falar de puritanismo numa hora dessas, momento em que lésbicas, trans, travestis, gays cada vez mais asseguram seu direito ao livre amor e à cidadania. Embora a carta da França nos acuse de puritanismo, seu discurso é que é conservador e nele, abertamente, incentiva e perdoa, mais uma vez, o abusador. Ora, ninguém quer perder o olhar de ninguém e nem deixar de ser desejada. Se há consenso entre as partes estão também presentes os seus gostos, suas formas particulares de sedução. Ninguém manda nisso. Mas, para quem tem dúvida do que é abuso ou não, para quem ainda não sabe distinguir um sorriso delicado e charmoso de uma violação, a chave está no consenso entre os amantes ou entre os envolvidos. Marisa Monte foi clara “se não existe algoz e nem refém, amar alguém só pode fazer bem”.

Elisa Lucinda, Verão quente, 2018, sob o sol de janeiro.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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