Deputada portuguesa relata experiência da união das esquerdas contra a austeridade, em Portugal

Cortes em salários, aumento de horas de trabalho, desinvestimento histórico na educação e saúde públicas, desemprego galopante, crescimento inédito da pobreza, atingindo crianças e idosos, redução de transferências de renda, emigração em massa, sobretudo de jovens. Esse era o cenário de Portugal em 2015, conforme descrição da deputada portuguesa Joana Mortágua, do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda, que realizou palestra, em 27/8/2018, na sede do Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz (Asfoc), iniciativa em parceria com o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

Joana veio relatar a experiência de seu país, vítima de uma brutal ofensiva neoliberal, que vinha se conformando desde 2009 e que foi barrada, graças a uma coalizão de partidos que, naquele momento, puseram as diferenças de lado em prol da agenda que tinham em comum. A coalização foi batizada de Geringonça, em referência ao seu caráter pouco estruturado. A parlamentar fez um pequeno histórico no qual buscou apresentar não só a “solução portuguesa”, como também os limites e tensões enfrentados pelo grupo, decorrente da condução de uma política que une forças diferentes.

Assista à íntegra da exposição de Joana Mortágua aqui.

“Na verdade o que fizemos foi tirar o bode da sala”, iniciou Joana, referindo-se à anedota que sugere a sensação de redução dos problemas ao se viver o desconforto de um bode na sala e o alívio de este ser retirado, retornando-se à situação inicial, sem melhoria real. “Nenhum dos problemas estruturais do país está mais perto de ser resolvido do que antes da crise. O problema é que a ameaça da direita era tão grande que travá-la não foi pouca coisa. Mas já ambicionamos mais”.

A crise financeira global chegou a Portugal em 2009, relatou Joana. “Há movimentos especulativos sobre o euro, brutal, há um crescimento da dívida pública absurda, os juros da dívida pública disparam, e há uma opção deliberada da União Europeia por não sustentar os países da periferia do euro, caso de Portugal; países deficitários que não estavam preparados para enfrentar uma moeda única, compartilhada com economias brutalmente fortes”, explicou. “Quando aderem ao euro, esses países perdem soberania orçamentária e a capacidade de fazer ajustes monetários ou macroeconômicos para lidar com a competitividade e suas desvantagens no mercado global”, analisou Joana, acrescentando que “a resposta do capital à crise da dívida, foi agravar a exploração e atacar o estado social, inventando-se uma narrativa que os povos aceitassem, de que vivíamos acima de nossas possibilidades e chegou o tempo das vacas magras; não há mais dinheiro para todos, nem todos vão poder viver bem e vamos ter que conviver com grupos de pobres, excluídos”.

Quando aderem ao euro, os países periféricos perdem soberania orçamentária e a capacidade de fazer ajustes monetários ou macroeconômicos para lidar com a competitividade e suas desvantagens no mercado global

Os primeiros programas de austeridade começaram a ser formulados ainda no governo do Partido Socialista, sob o comando do primeiro-ministro José Sócrates, que estava “governando como direita”. Acabou caindo, em 2013, dando lugar a um governo de direita “original”, uma coligação entre os partidos PSD e CDS, com apoio do Partido Socialista. Entre um governo e outro, relatou, ainda, Joana, os três partidos assinam o Memorando da Troika [Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia]. “Durante o período de vigência da Troika passamos a ser uma colônia financeira da Alemanha”, comparou.

O que se seguiu foi deterioração do patrimônio público, privatizações para fazer caixa de forma imediata, sem que se pensasse nas consequências, compra do setor público de seguros com os próprios recursos desse setor, entre outras mazelas, que a deputada enumerou, e que conformavam o cenário do país nas eleições de 2015. A narrativa de que não havia outro caminho, que não as medidas de austeridade, para sair da crise foi acatado pela população, e o partido de direita volta a vencer as eleições.

Os partidos de esquerda fizeram as contas e verificaram que caso se juntassem poderiam fazer frente a esse processo. “Essa foi a única razão de haver a união. Não se tratou de uma ligação estrutural. Os programas dos partidos de esquerda são tão diferentes que não poderia ter havido uma unidade pré-eleitoral. Mas a aritmética deu-nos a possibilidade de fazer esse caminho no momento em que ocorria a destruição do estado social sem retorno”, explicou Joana. A coalizão, liderada pelo primeiro-ministro Antônio Costa, do Partido Socialista, e integrada, ainda, pelo Partido Comunista Português, o Bloco de Esquerda e o Partido Ecologista Os Verdes, definiu medidas, quase todas elas de reversão das que haviam sido pautadas pela austeridade: aumentar o salário mínimo, fixar tarifa social de energia, reverter o aumento de impostos, os cortes salariais o aumento do número de alunos por turma nas escolas, a reforma curricular.

“A Geringonça foi muito eficaz em rebater políticas de austeridade e travar o ciclo de pobreza que se instalou, conseguindo impor políticas contracíclicas”. O salário mínimo teve aumentos, em 2016 e em 2017, o valor das aposentadorias e dos subsídios familiares também, foram reforçadas as leis trabalhistas, registrada queda nos impostos sobre os salários mais baixos, suspensas as privatizações e as contas públicas foram equilibradas.

No processo de reversão das medidas de austeridade, a coalizão contou com o apoio de manifestações populares, que chegaram a reunir 200 mil pessoas em Lisboa, e com o Tribunal Constitucional. “A Constituição foi uma das grandes travas das políticas de austeridade”.

A Geringonça foi muito eficaz em rebater políticas de austeridade e travar o ciclo de pobreza que se instalou, conseguindo impor políticas contracíclicas

Reportagem da revista britânica The Economist mostrou que Portugal conseguiu reduzir seu déficit orçamentário à metade em 2016, chegando a 2,1% do Produto Interno Bruto, o melhor resultado registrado desde a transição para a democracia, em 1974. A experiência da Geringonça foi apresentada em Bruxelas, durante conferência internacional, como prova de que uma política alternativa à austeridade econômica é possível.

Para 2019, quando novas eleições se realizam, a coalizão, no entanto, deverá se desfazer. “Há grandes limites na Geringonça. Não estamos de acordo em um conjunto de coisas essenciais para garantir um governo de esquerda”, considerou Joana. “Não há como repetir em 2019 o que fizemos em 2015. O contexto é diferente. O programa mínimo já está cumprido”, finalizou Joana.

Fonte: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (ELIANE BARDANACHVILI)

Fotos: Fernando Taylor e Mario Cesar/Asfoc-SN

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