Demarcar terras indígenas é proteger o Brasil

Por Sonia Guajajara

Querem nos tirar do zoológico e nos mandar para a quitanda. Primeiro, o presidente eleito fala dos povos indígenas como se não fôssemos racionais, não tivéssemos a capacidade – e nem o direito – de cuidar sozinhos de nossas vidas; depois, revela a intenção de transferir a Funai do Ministério da Justiça para o da Agricultura. É como se repetisse a História do Brasil como farsa: nos anos 1500, primeiro nos viram como animais e depois, como mercadoria. Fomos tutelados pelo Estado por muitos anos; só que em 1988 conquistamos direitos e – é sempre bom frisar – deveres iguais aos de qualquer cidadão brasileiro. O senhor Jair Bolsonaro é legislador desde 1991; ainda assim, parece ainda não conhecer muito bem as leis e a Constituição que regem o país a que serve. Sugiro, respeitosamente, um intensivo até o dia da posse.

Nunca morei numa jaula. O indígena é livre para viver onde quiser; pode sair de sua aldeia para tentar a vida na grande cidade, e assimilar novos hábitos e conhecimentos como qualquer um. Eu me formei em Letras na Universidade Estadual do Maranhão e rodei o mundo como coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e representante brasileira do movimento internacional Guardiões da Floresta. Fui candidata à Vice-Presidência da República. Moro na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, onde nasci, por escolha. E por dever. Porque nós, povos indígenas, não temos só o direito constitucional de viver em nossas terras, mas também o dever de protegê-las. É uma responsabilidade que nos cabe, enquanto cidadãos brasileiros e do mundo. Sabemos que a sobrevivência da espécie humana depende da preservação das florestas.

 

Em seu discurso feito tão logo foi declarado vencedor da eleição, o futuro presidente assegurou ao povo brasileiro que respeitaria a Constituição. Seu governo herda de cara 54 Terras Indígenas para demarcar. São processos já concluídos, que datam de 2007 a 2018. No momento, há 129 processos em andamento. Cerca de 120 mil pessoas vivem nesses territórios. A Constituição de 1988 dava um prazo de cinco anos para demarcação de todas as Terras Indígenas do país; ou seja, estamos com 25 anos de atraso. Que ele se esforce para cumprir esta tarefa.

As 436 Terras Indígenas demarcadas e regularizadas representam aproximadamente 12,5% do território nacional, segundo o IBGE. De acordo com o Censo Agropecuário 2017 do mesmo instituto, o agronegócio ocupa 41% da área do Brasil. Então não há necessidade de crescerem os olhos para nossas terras, cujos recursos naturais podem ser usufruídos, desde que de forma sustentável. Não somos contra o desenvolvimento do país, mas acreditamos que o modelo adotado – e ao que tudo indica continuará sendo – está ultrapassado.

O presidente eleito também deu a entender que poderia nos conceder o direito de vender nossas terras. Agradecemos, mas declinamos. A Constituição garante que as Terras Indígenas são bens da União inalienáveis e indisponíveis justamente para não pôr em risco a integridade territorial do país. Assim como o povo judeu é definido por sua herança cultural, e por causa dela reivindicou o seu território de origem, nós o somos por causa de nossos costumes ancestrais e pela terra onde nascemos. Eles são a razão de nossa existência. Só que um judeu nascido no Brasil não é israelense, assim como eu sou Guajajara, mas sou brasileira. Nós, povos indígenas, temos orgulho de ser parte deste país tão grande, belo e diverso.

*Sonia Bone Guajajara é coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e foi candidata à Vice-Presidência do Brasil.

 

*imagens por Helio Carlos Mello©

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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