Documentário produzido por estudantes da PUC-SP mostra as falhas na cobertura midiática dos países latino americanos além dos clichês e interesses das grandes agências internacionais
Por Camilo Mota, Isabela Cagliari e Rafaele Rocha
Não é de hoje que a cobertura midiática passa por crises e, em grande parte das vezes, é alvo de críticas. Nos últimos anos, mesmo com a erupção de diversos conflitos na América Latina, é comum que essas desavenças não sejam divulgadas nos países vizinhos pelos veículos hegemônicos, chamados de grande imprensa. Sendo assim, não é raro notar que o noticiário segue uma cartilha internacional, cobrindo situações que nem sempre são relevantes quando colocadas na perspectiva latina. Isso deixa de escanteio movimentos que impactam direta ou indiretamente a região.
Outro ponto sensível da discussão é a questão da desigualdade. Sob um contexto neoliberal, a mídia tradicional segue a lógica do mercado e vai ao encontro de interesses privados, que não necessariamente estão alinhados aos interesses da população. A partir disso, países considerados de Terceiro Mundo – a exemplo daqueles que compõem a América Latina – acabam por cumprir com metas que beneficiam potências globais, e não necessidades internas, gerando ainda mais desigualdade, exploração e injustiça.
Um estudo realizado em 2021, pela doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) Camila Quesada, em parceria com a doutoranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) Marina Michelis, analisou 1.996 notícias sobre a América Latina na cobertura internacional de dois grandes portais de notícias brasileiros, publicadas entre abril e julho de 2018.
A análise quantitativa concluiu que a América Latina foi pautada em menos de 30% das notícias internacionais. Além disso, essas matérias estavam atreladas a fatos negativos e oficiais, estando pautadas geralmente por temas normativos, institucionais, político-partidários e diplomáticos. De acordo com os dados obtidos no estudo, “importantes acontecimentos da região são explorados quando estão em situações críticas, como corrupção e imigração ilegal, por exemplo”. Em resultado, cria-se um imaginário popular negativo em relação aos latino-americanos.
Em “De Costas para a América Latina”, especialistas discutem os conflitos e a importância da cultura latino-americana, que quase nunca é noticiada pelos veículos de comunicação. O documentário, produzido pelos alunos de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Camilo Mota, Isabela Cagliari e Rafaele Oliveira, questiona a relação dos latinos com sua história, bem como o “olhar tudo e nada ver”, que impera na relação dos brasileiros com seus vizinhos e é refletida pela mídia.
Dessa forma, em 33 minutos, a produção põe em xeque a cobertura midiática sobre a América Latina, ou a falta dela, principalmente no que diz respeito à sua cultura e ao seu passado histórico. Em contrapartida, o material veiculado é produzido por agências internacionais, que possuem interesses por vezes contrários aos dos latino-americanos.
Para os jornalistas José Arbex Jr. e Vinicius Souza, a mídia reproduz uma lógica de esquecimento e desconhecimento da própria origem latino-americana, que, segundo eles, partem dos interesses imperialistas estadunidenses. E é perpetrada com o fato de que os brasileiros sequer conhecem a fundo sua própria história.
A própria cultura latino-americana é encoberta pelos veículos internacionais e brasileiros, o que indica desinformação. O jornalista evidencia: “Não sabemos da vida em Buenos Aires, não sabemos o que acontece em termos de arte, literatura, ou em Santiago do Chile, mesmo na Bolívia, no Peru, não sabemos nada. Só ficamos sabendo quando há algum golpe militar ou quando há alguma notícia de inflação, desvalorização da moeda, ou de doença”.
Além do mais, o material produzido por uma agência internacional “é voltado ao público doméstico dessa agência internacional a princípio, depois para o público mundial”. E o professor acrescenta: “Nós estamos no Brasil, nós somos o público mundial da Reuters, então o maior interesse dela de fazer a cobertura da América Latina, são os interesses britânicos na América Latina, em seguida, os interesses globais, interesses capitalistas, dos sistemas. Dificilmente teremos uma informação para o público brasileiro”, pontua.
Como exemplo, Vinicius Souza enfatiza o caso da Bolívia, que sofreu um golpe de Estado em 2019, após acusação de que Evo Morales não poderia disputar a sua quarta eleição. De acordo com o professor, nenhum veículo jornalístico da mídia hegemônica tinha correspondentes no país e o material jornalístico veiculado foi majoritariamente por agências internacionais, principalmente a norte-americana Associated Press.
Diferentemente da mídia hegemônica, o Coletivo Jornalistas Livres cobriu as eleições com a enviada especial Martha Raquel diretamente da Bolívia. A jornalista fez entradas ao vivo das ruas durante a votação, nas mídias digitais, uma das maiores audiências do JL. O coletivo também divulgou uma carta publicada pelo Comitê Brasileiro de Solidariedade ao Povo Boliviano Contra o Golpe denunciando o jornal Folha de São Paulo pela manipulação de uma manifestação na Avenida Paulista. De acordo com o jornal, bolivianos teriam deixado seu país por perseguição do governo Evo Morales. A manifestação na Paulista, porém, foi convocada por coletivos de bolivianos e eram contrários ao Golpe que se instalava contra o presidente eleito, que obteve 70% dos votos dos bolivianos residentes no Brasil. A matéria foi veiculada também pelo portal GGN.
Marijane Vieira, doutora em ciências sociais, que recebeu asilo político no Chile, explica que a relação mal resolvida dos países e suas populações é um entrave para o seu desenvolvimento. Para ela, um país só consegue ir adiante democraticamente quando restaura a verdade dos fatos. Às vítimas, a verdade é um direito para poupar o mínimo do que de “monstruoso” ocorreu em grande parte dos países do sul americano.
Embalado ao som de El Pueblo Unido Jamás Será Vencido, eternizado na voz da banda Quilapayún, “De Costas para a América Latina” é um registro potente da luta contra a hegemonia midiática e surge como oportunidade de repensar uma cobertura mais democrática, justa e independente da seleção de agências. Como a última estrofe da canção chilena relembra: De pé, cantar, o povo vai triunfar. Milhões já impõem a verdade. De aço eles são ardente batalhão. As suas mãos vão levando a justiça e a razão.
Confira, na íntegra, o documentário “De Costas para a América Latina”: https://www.youtube.com/watch?v=IEPLMq9z3NM