DAQUELES QUE PARTEM NA LUA VERMELHA.

A ordem das árvores altera os passarinhos? questiona canção na rádio durante a noite da grande lua. Ropndo, velho velho Suyá, Kĩsêdjê, morreu na lua de sangue, partiu durante o mais longo eclipse lunar do século. Mesmo com o sol entre seus beiços preferiu uma noite de lua inédita para marcar sua morte.

Antiga aldeia Ngoinwere, dos Suyá.

Ropndo era o distante instante delirante em nossos sangues, iguais, difusos, fugidio. Enigma em solidão de origem, a grande boca sorrindo entre o passado e o presente, um olho cego que envolvia tudo num futuro fundo, um passo distante, o contra baixo na batida nacional. Seus brincos brancos, seu lábio amplo, seus movimentos tradicionais, puro rock.

Recordo-me o dia em que o conheci, terreiro seco, sede na glote, pairava poeira. Queria um copo d’água, tive um rio. Senhor de fina cortesia, Ropndo foi uns dos últimos homens a portar estética botocuda, própria dos homens Jê.

 

Não me esquecerei de sua calma em arrancar as plumas do mutum para fazer um cocar e a carne separar para o caldo tenro. Seu silêncio astuto em ouvir as conversas longas em debates indigenistas e seus passos firmes em danças étnicas, persistente a levantar poeira entre o canto dos homens.

“A sociedade Kĩsêdjê tomou forma através da apropriação de traços específicos de animais e inimigos indígenas. Assim, o fogo (e a prática de cozinhar) foi obtido do Jaguar; o milho (e a prática de plantar) foi obtido do camundongo; e o sistema de nomeação (básico para a identidade social e para todas as cerimônias) foi obtido de um povo inimigo que vivia debaixo da terra. Os Kĩsêdjê dizem que mais tarde encontraram um grupo muito parecido com eles mesmos, que usavam discos labiais e que escarificavam seus corpos, mas que eram canibais, de quem incorporaram tais costumes. Já as canções foram aprendidas de inimigos míticos e índios Kĩsêdjê em vias de metamorfose em veado ou queixada. Conseqüentemente, a visão que os Kĩsêdjê têm de si mesmos é de uma sociedade formada através da apropriação seletiva do que era bom e bonito de outros seres.” https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kis%C3%AAdj%C3%AA

 

 

Ropndo morreu, com ele finda também um ciclo. Mesmo que doa, revelado universo de seu povo, estrela nova no cosmos, ele agora está mais firme, foi pescar. Não esquecerei seu rosto. Morre-se, e é tudo.

*imagens por Helio Carlos Mello – acervo Projeto Xingu/UNIFESP.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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