Era uma rua longa e um comprido muro, sem fim de se ver no deserto em dilúculo. O que trazia aquelas pessoas ali altas horas, perto da madrugada? A morada. Da morada se diz que é reunião das coisas da vida, em uma única palavra, do que se tem apreço. Pai, mãe, filhos, as cunhadas e toda rede de vínculos que se chama família, e seus pertences. É casa sobre a terra que se quer aqui, o que se pede é uma porta sem aluguéis e uma chave como direito.

 

Há um cheiro forte de abandono nesse chão. Aqui e agora todos se misturam em um sonho absurdo, tal buraco de tatu aberto no céu com a cidade ao longe, em muro longo de inútil defesa. Deveras que aqui reside o descaso com o uso social da terra e os homens pulam o muro em direito de morada no solo renegado e seus impostos devidos.

 

O poder provisório dos homens ressalta na cara humilde de todos. Vejo velhos  chapéus na cabeça de homens idosos, senhoras avós de vestidos estampados, jovens casais em duro penar e suas crianças a entrar pelo buraco no muro na passagem única, como em casa de índio no Xingu, onde todos passam pela mesma entrada e saída, cada um à sua vez, em grande casa coletiva como morada, transparente prazer cidadão, tudo tão simples.

 

Ergue-se um acampamento em poucas horas, as panelas se ajeitam no fogão, as crianças são logo abrigadas, põe-se o café no fogo enquanto a tropa não chega.

 

Há uma angústia no céu que amanhece, em todo horizonte a luz vai moldando o firmamento e sei que a repressão também amanhece. A paz presente nesse momento de ocupação se reluz em posse, não será equilíbrio em seu desfecho, todos sabem, mas a necessidade move os homens e suas mulheres e desistir é verbo que não cabe entre casais, aqui. Ao contrário, em canto afirmam: quem tem medo de formiga não atiça o formigueiro.

 

A pele da gente se acostuma ao ferrão, de dores e toda a privação se fortalece o destino. Punhos cerrados apenas demonstram que a vontade é motriz e que luta não é doce. Antigamente, aqui muitos se lembram, senhor de engenho vendia açúcar e muitos cortavam a cana. Entre tantos um velho senhor me pronuncia, erguendo a frágil tenda de plástico preto: quando se prepara a terra se a gente plantar espinho colhe espinho. Quando se planta milho a gente come bolo.Quem mexe com ventos atiça tempestade. Quando pessoas choram, tristes ou felizes, algo germina, esperança é o nome que damos. O que é do homem o bicho não come, conclui.

 

Reconheço na área um solo sagrado escuso, terreno de orixás, pequenos cântaros jogados no mato, assentamentos de exu e os ebós entre o pequeno bosque. Terra preguiçosa da cidade voltada à rituais e oferendas, onde alguns choram de amor ou dor, há carcaças de carros, entulhos nas calçadas, antigas construções em ruínas.

 

Na manhã de sábado a polícia faz sua parte, expulsa todos. Tudo volta a monotonia da fuga e desabrigo. Ficam os santos, suas oferendas e todos suplícios. Não haverá crianças olhando a paisagem, apenas um muro sujo.

Cântaros são usados para levar água fresca da fonte à sede dos homens, e conduzir oferenda aos orixás das águas.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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