Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com ilustração de Mariano
No último domingo, 8, vimos acontecer um evento que simboliza com perfeição a crise brasileira contemporânea.
Tratou-se de um evento síntese.
Relembrando pra quem não está tão atento à crônica política cotidiana, se é que alguém nesse país conseguiu ficar indiferente ao domingo de crise. Ainda não era nem meio-dia quando explodiu na imprensa a notícia de que Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região, havia aceitado o habeas corpus apresentado por deputados petistas em favor do presidente Lula.
As manchetes eram bombásticas: “Lula será solto ainda hoje”.
Os militantes se agitaram nos dois lados do conflito que divide a sociedade brasileira.
Os anti-lulistas babaram de ódio, xingaram o desembargador Favreto, acusando-o de ser um petista infiltrado no tribunal da 4° região, que até aqui vem sendo território de suplício para o presidente Lula.
Por sua vez, os lulistas vibraram, como se um habeas corpus emitido por um desembargador, em regime de plantão, já fosse a própria vitória nas eleições que, ao que tudo indica, acontecerão em outubro.
Meu esforço neste ensaio é tentar pensar o domingo de crise fora de qualquer histeria, explorando o seu “sentido profundo”.
Chamo de “sentido profundo” a relação do evento com algo maior que ele, com o processo no qual está inserido. Todos os principais aspectos que caracterizam a crise brasileira contemporânea podem ser percebidos neste evento síntese.
1 – O completo colapso do Sistema de Justiça.
Temos certa tendência de fetichizar o Sistema de Justiça, como se as leis fossem produzidas e operadas num espaço de austeridade, tendo como critério apenas o “interesse público”.
É claro que não é assim. Desde sempre, existe uma relação íntima entre os interesses políticos e a criação e a interpretação das leis.
Não é lei quem condiciona o poder. É o poder quem condiciona a lei. Até aqui nenhuma novidade. Sempre foi assim. Sempre será assim, em qualquer lugar do mundo onde existam seres humanos vivendo em sociedade.
Porém, a crise brasileira está levando a politização do Sistema de Justiça para além dos limites tolerados pelo marco civilizatório, pelo Estado de direito.
Primeiro, o caso do Triplex do Guarujá (localizado em São Paulo), sem nenhum vínculo direto com as investigações da Operação Lava Jato, foi capturado por Sérgio Moro, cuja jurisdição se restringe a Curitiba.
Sérgio Moro não seria o juiz natural do caso. A escolha não foi nada aleatória.
Que Sérgio Moro tem vínculos claros com o PSDB é algo óbvio para qualquer observador minimamente honesto. É óbvio porque jamais houve interesse das duas partes em esconder esses vínculos.
Bastar uma simples consulta no Google que o leitor e a leitora tropeçam com inúmeras fotografias que mostram Sérgio Moro confraternizando com lideranças tucanas, em um comportamento inadequado para um juiz.
Políticos confraternizam entre si, negociam, se deixam fotografar juntos. Um juiz não pode fazer isso, pois o juiz não é político, não pode ser político.
Alexandre de Moraes foi filiado ao PSDB, foi ministro de Temer e hoje tem cadeira na Suprema Corte. Nunca é demais lembrar que Moraes assumiu o cargo depois da morte de Teori Zavascki, uma morte que jamais foi plenamente esclarecida e que parece ter sido esquecida.
Para não dizerem que estou sendo exageradamente parcial, também podemos lembrar de Dias Toffoli, que tem sua trajetória vinculada ao Partido dos Trabalhadores. Toda a esperança petista de que o caso do presidente Lula tenha alguma solução legal está baseada na ascensão de Toffoli à presidência do STF, o que acontecerá em setembro.
A ação de Rogério Favreto em acatar o habeas corpus faz parte desse jogo. É óbvio que o desembargador estava em contato com as lideranças petistas e que a cronologia das ações foi cuidadosamente calculada: domingo, recesso do Judiciário, férias de Sérgio Moro.
Mas como as instituições estão derretidas, Moro, de férias, talvez vestindo cueca samba canção e usando chinelos de dedo, assinou um documento oficial dizendo que não cumpriria a ordem de soltura. Não cabia a ele cumprir ou não, já que uma vez promulgada a sentença, o juiz de primeira instância perde qualquer controle sobre o processo.
Além disso, num Estado de direito com instituições minimamente saudáveis, não existe a possibilidade de descumprimento de ordem judicial.
Se o desembargador era incompetente para a matéria, se a decisão foi equivocada, o habeas corpus deveria ser questionado em sessão colegiada, seja no próprio TRF4 ou nas instâncias superiores. Decisão da Justiça pode ser questionada e depois anulada. Jamais pode ser desobedecida.
E a Polícia Federal, como fica? Deve obedecer a quem? Ao desembargador ou ao juiz de primeira instância?
E se um grupo de policiais, por questões ideológicas, quiser obedecer ao juiz de primeira instância e outro grupo, pelos mesmos motivos, escolher o desembargador?
Entendem, leitor e leitora, onde isso pode chegar?
2 – A disputa pelo Estado
Em muitos aspectos, a crise brasileira é a crise mundial. Talvez o Brasil seja o laboratório dessa crise, o principal palco de sua manifestação. Mas crise, de forma alguma, é uma jabuticaba. Não é privilégio nosso. Não mesmo.
Guardadas as devidas particularidades que variam de país para país, a crise internacional pode ser explicada pelo acirramento das disputas pelo Estado. A conciliação que viabilizou o experimento do Estado de Bem-Estar Social não se sustenta mais e a consequência lógica do fim da conciliação é a radicalização dos conflitos.
Os que falam em “Estado mínimo” querem se apropriar do Estado, fazer com que o Estado atenda aos seus próprios interesses. Não existe “Estado mínimo” em sociedades complexas. O que existe é a disputa pelo Estado. Cada grupo sempre quer Estado máximo para si e, como o cobertor é curto, isso significa impor Estado mínimo aos outros.
Por outro lado, os grupos sociais que conquistaram direitos no experimento do Estado de Bem-Estar Social, naturalmente querem manter essas conquistas, protegê-las da ofensiva neoliberal em curso, repito, no Brasil e no mundo.
No Brasil, com todos os seus defeitos, o Partido dos Trabalhadores, sob a liderança de Lula, representa aquilo que de mais próximo tivemos de uma experiência de Bem-Estar Social. Por isso, Lula não foi solto. Por isso, uma decisão judicial foi descumprida.
Há muito tempo, Lula deixou de ser um homem e se tornou uma instituição, um símbolo que representa a função social e provedora do Estado. É natural que Lula tenha se transformado no principal alvo do golpe neoliberal em curso no Brasil. Sem a destruição de Lula, o projeto do golpe não se consolida.
3 – A derrota nas instituições X vitória no imaginário popular
No final do dia aconteceu o que já era previsto por todos, até mesmo pelos parlamentares que tentaram o habeas corpus: as autoridades que antes tinham bancado a prisão de Lula (Carmen Lúcia, Raquel Dodge, Thompson Flores) sufocaram a rebelião de Favreto e mantiveram a decisão inicial.
Uma derrota para o PT? Depende da perspectiva.
A crise institucional é tão grave, abriu-se um fosso tão grande entre as instituições e a opinião pública, que as derrotas institucionais, geralmente, significam vitórias no imaginário popular.
Dilma foi deposta por um golpe parlamentar. Temer assumiu a Presidência da República. A população rejeita Michel Temer como nunca antes rejeitou um presidente na história desse país. Todas as lideranças que se aproximaram de Temer viram seu capital eleitoral desidratar.
Rodrigo Maia, Henrique Meirelles, Geraldo Alckmin. Pelo que sugerem as pesquisas, todos teriam um desempenho vergonhoso se as eleições fossem hoje. Nada no horizonte sugere que esse cenário irá mudar em três meses.
E Lula?
Lula lidera com folga e o PT continua sendo o partido político mais popular entre os eleitores.
Os golpistas venceram na disputa institucional, sem dúvida: tomaram o poder de assalto e reorientaram os fundamentos conceituais do Estado brasileiro com a Emenda Constitucional 95 (decretada pela famigerada “PEC dos Gastos”), que entregou a agenda desenvolvimentista do poder público ao controle do mercado. Nem os militares, nem os governos tucanos, ousaram ir tão longe.
Mas na opinião pública, no imaginário popular, os golpistas perdem, e perdem de goleada.
Foi exatamente essa percepção que orientou a ação dos parlamentares petistas que apresentaram o pedido de habeas corpus no plantão do desembargador Favreto.
Na real, como comentei há pouco, todos eles sabiam que o golpe não deixaria Lula ser solto. O próprio Lula sabia disso. Ele nem deve ter feito as malas.
Mas mesmo assim, a ação foi importante. Talvez tenha sido o lance mais astuto da Partido dos Trabalhadores nessa conjuntura de crise.
Moro, colocando os pés pelas mãos, mordeu a isca lançada pelas lideranças petistas. Ao assinar documento oficial, em férias, interferindo em um processo que não mais lhe dizia respeito, Moro escancarou o que já era óbvio: Lula não é um preso comum. É um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.
O Sistema de Justiça foi exposto nas suas entranhas corrompidas: um juiz petista mandou soltar e um juiz tucano mandou deixar preso.
A militância petista, quase acostumada com a prisão de Lula, foi reanimada. Lula passou o dia sob os holofotes da mídia, encenando publicamente um episódio de martírio.
Foi um ato de guerrilha, rápido, pequeno, com saldo positivo para as trincheiras petistas.
Isso tudo em um domingo. Não era segunda-feira, não era quinta-feira. Era um domingo, um domingo de ressaca, de luto por mais uma eliminação em Copa do Mundo. Tinha tudo pra ser um domingo preguiçoso, lento, como costumam ser os domingos.
Não foi. Foi um domingo de crise.