Foto Lucca Mezzacappa

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

 

 

Escrevo este texto sob os impactos dos movimentos que construíram a greve geral da educação, em 15 de maio. Ações foram organizadas nas principais cidades brasileiras. Participei do ato realizado na região central de Salvador e acompanhei com cuidado o que aconteceu nas outras cidades através de relatos de amigos e da imprensa.

Novamente, há guerra entre narrativas. A oposição de esquerda diz que a greve geral da educação é o início do fim do governo de Bolsonaro. O outro lado diminui a importância do evento. O presidente Jair Bolsonaro disse que os que estavam nas ruas eram “idiotas úteis manipulados por uma minoria”.

Como acontece quase sempre, a sobriedade analítica nos convida a tomar o caminho do meio, o que não significa neutralidade. Há uma distância enorme separando a sobriedade da falácia da neutralidade.

O 15 de maio de 2019 diz muito sobre o atual estágio da crise brasileira. Antes, uma breve contextualização com informações que são óbvias para o leitor do presente. Não serão óbvias para o leitor do futuro. A disputa pela memória já começou. A obviedade sempre é uma questão de localização histórica.

No início de maio, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, determinou corte de cerca de 30% do orçamento da educação federal. Em um primeiro momento, o argumento era de natureza ideológica: as universidades foram acusadas de serem ineficientes (quando todos os índices dizem o contrário) e de servirem como palco para “balbúrdias” (leia-se, manifestações políticas de oposição ao governo).

Como não poderia deixar de ser, a comunidade acadêmica reagiu. As mídias digitais foram acionados e as diversas entidades que representam interesses de professores, alunos e funcionários das instituições de ensino federais convocaram a greve geral para o dia 15 de maio.

As ruas estavam cheias, bastante cheias. Naturalmente, os organizadores apresentam números ambiciosos, talvez inflacionados. De todo modo, foi o principal ato de mobilização desde o “Ele não”, que aconteceu ainda durante as eleições. Pela primeira vez o governo de Bolsonaro foi confrontado nas ruas.

Dentro das possibilidades e considerando a gravidade da conjuntura, os ventos parecem ser favoráveis aos que estiveram nas ruas. Nem todos os grupos que formam o governo apoiam o ataque de Weintraub ao sistema de ensino federal.

É que desta vez não se trata da simples redução de recursos, algo que todo o governo, cedo ou tarde, acaba fazendo. Já sabemos bem que em momentos de cobertor curto na economia, a educação é o primeiro setor a ter os pés descobertos.

O PSDB, com o odiado ministro Paulo Renato (talvez não mais tão odiado assim), impôs dificuldades orçamentárias às universidades federais durante grande parte da década de 1990. Até mesmo Dilma cortou recursos da educação. Alguém aqui não lembra do ajuste fiscal de Joaquim Levy?

Agora é diferente, muito diferente. O ataque é ideológico, puramente ideológico.

O ministro está agindo assim porque faz parte de um grupo que se lançou numa guerra cultural contra as universidades. Olavo de Carvalho é o mentor intelectual dessa guerra. Desde os anos 1990, Olavo de Carvalho afirma que as universidades públicas brasileiras estavam tomadas pelo “marxismo cultural”. Agora, o guru da Virgínia acredita que chegou o momento de combater a tal doutrinação marxista.

Para dinâmica política da crise, pouco importa se esse “marxismo cultural” existe ou não. Importa mesmo o que as pessoas acreditam, suas convicções.

O núcleo ideológico, contudo, é tão somente um entre os diversos grupos que hoje disputam o governo por dentro. A tendência olavista é hegemônica, sem dúvida, mas não é única, tampouco está voando em céu de brigadeiro. Há adversários internos que não estão apoiando a guerra cultural.

Nos últimos dias, percebendo a falta da apoio dentro do próprio governo, o ministro Weintraub mudou o discurso e passou a justificar o corte orçamentário com argumentos de natureza técnica: como a crise econômica não arrefeceu, o orçamento definido pelo governo anterior não pode ser cumprido. Se a reforma da previdência for aprovada e a economia apresentar sinais de recuperação, segundo o ministro, a verba contingenciada será liberada.

A mudança na narrativa é, sim, sinal de recuo, e sugere que o ministro está reconhecendo que a guerra cultural olavista não tem eco em todos os grupos que sustentam o governo.

O Congresso Nacional demonstrou isso com clareza.

No dia 14 de maio, na véspera da greve geral, mais de 300 deputados aprovavam a convocação de Weintraub para sessão especial destinada, exatamente, a explicar os cortes na educação. Foi um constrangimento ao ministro e ao governo. Apenas as bancadas do PSL e do Novo tentaram preservar Weintraub.

PMDB, DEM, PSDB, que são aliados do governo em outras agendas, como, por exemplo, a Reforma da Previdência, não saíram em defesa do ministro da Educação. Se quisessem, poderiam ter evitado a convocação. Não fizeram. Não fizeram porque não quiseram. Tá aí um indício de que a guerra cultural olavista é projeto forte dentro do governo, mas sua força se explica mais pelas convicções ideológicas do presidente do que pela real correlação de forças em Brasília.

Politicamente, a insistência nessa jornada neomarcartista não é uma boa estratégia para Bolsonaro, isso se ele quiser, de fato, governar. Nada sugere que o presidente irá amenizar o discurso.

As ruas também não são nada homogêneas. É possível sentir uma tensão no ar, algo que envolve a figura do ex-presidente Lula.

Parece que se formou o consenso de que a pauta “Lula livre” e o protagonismo do PT agiriam como forças desmobilizadoras. Ora ou outra, alguém gritava um “Lula Livre”, mas a agenda oficial do movimento esteve claramente delimitada: defesa da educação e protesto contra a reforma da previdência.

Talvez seja mesmo mais prudente agir assim. De fato, Lula e o PT poderiam funcionar como fatores de desmobilização da sociedade civil organizada. O problema é que existe também uma sociedade civil desorganizada formada por uma massa de trabalhadores ultraprecarizados e famintos. Pra essa gente, “aposentadoria”, “desenvolvimento científico” e “inovação tecnológica” não dizem muita coisa. Essas pessoas já não aposentam, pois morrem antes. Essas pessoas não estudam na universidade. São semiletradas.

Essa é a base social do lulismo.

Foram essas pessoas que lotaram Monteiro, no interior da Paraíba, em março de 2017, quando Lula inaugurou a obra de transposição do Rio São Francisco. Se tirar Lula da agenda significa não desmobilizar a sociedade civil organizada, significa também não mobilizar a sociedade civil desorganizada. É uma escolha difícil.

Por enquanto, não dá pra saber o impacto político direto deste 15 de maio. Foi apenas o primeiro ato de um calendário de mobilizações que têm o objetivo de construir a greve geral dos trabalhadores, que está agendada para o dia 14 de junho.

Mas foi bom participar, muito bom. Serviu, no mínimo, para melhorar o estado de espírito.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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