Criada pela avó e pela mãe, Celinna não tem medo de general

Da Agência Saiba Mais
Texto: Rafael Duarte
Foto: Amanda Lisboa

Foi dona Augusta quem deu a primeira lição de feminismo à neta mais velha. Mulher tem que estudar para ter autonomia, pagar as contas e o absorvente, dizia. Celinna ouvia calada e entendia o recado ainda que só muitos anos depois tenha feito a relação do que a avó materna falava com o movimento de luta pela emancipação das mulheres.

Celinna tinha apenas 6 anos de idade quando os pais se separaram. A família morava no município de Marcelino Vieira, no interior do Rio Grande do Norte e distante 400 quilômetros de Natal. O pai foi embora de casa, fez algum contato durante um tempo e depois sumiu. Ficaram debaixo do mesmo teto a mãe grávida, dona Augusta, Celinna e um irmão mais novo.

Criada pela avó e pela mãe, Celinna cresceu, estudou, hoje paga as próprias contas e o absorvente. Como ensinava a cartilha de dona Augusta, que morreu em 2008 e não pôde ver a neta entrar na universidade e sair de lá com os diplomas de História, Jornalismo e especialização em Literatura.

Segundo dados do censo de 2015 divulgados pelo IBGE, 26,8% das famílias brasileiras são compostas por mães que criam sozinhas seus filhos e filhas. Uma realidade semelhante a de Celinna e bem distante da declaração, carregada de preconceito, do general da reserva Hamilton Mourão, para quem famílias em áreas pobres sem pai e avô são “fábricas de desajustados”.

Ao tomar conhecimento da frase do candidato à vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro (PSL), Celinna fez um desabafo pessoal nas redes sociais:

– Fui criada por mãe e avó e não sou criminosa. Sou professora e Jornalista e luto diariamente contra a marginalização da nossa juventude. #elenão #elenunca #elejamais.

Em entrevista à agência Saiba Mais, a jornalista que faz parte do coletivo Arretadas, mídia independente produzida só por mulheres, se sentiu atingida pela declaração de Mourão:

– Me senti humilhada, foi como se ele (Mourão) jogasse no lixo toda a luta da minha avó e mãe. Não é fácil ser mulher em uma sociedade que oprime e mata mulher todo dia, mas vovó (Dona Augusta) e mainha (Dona Neide) educaram a mim e aos meus irmãos com muito cuidado, sempre preocupadas com a nossa formação. Aí chega esse senhor e com uma frase tenta diminuir grande parte da luta das mulheres brasileiras.

A jornalista não acredita que o general seja desinformado. A polêmica declaração sobre famílias desajustadas criadas só por mulheres é fruto, segundo ela, do ódio que Mourão carrega e dissemina:

– O que mais me dói é saber que ele influencia muita gente e esse discurso pode (e vai) trazer muito preconceito. Infelizmente o discurso dele é carregado de misoginia e machismo, ele desvaloriza a luta diária das mulheres. No caso dele, não acredito que seja desinformação, mas sim desrespeito e ódio.

Ao redor de Celinna Carvalho, hoje com 27 anos de idade, histórias como a dela são regra. Os amigos mais próximos da jornalista não contaram com a presença paterna em casa.

– Por incrível que pareça, os meus amigos mais próximos não tiveram o pai em casa, alguns não tem nenhum contato com eles, isso só mostra o abandono paterno e como as mulheres tiveram que tomar as rédeas da casa para criar seus filhos. Essa é a realidade do Brasil que vivemos!

Política de expansão da Educação abriu as portas da universidade para Celinna

Quando a irmã mais nova de Celinna nasceu, dona Neide decidiu ir embora com a família para Natal. A melhor opção foi conseguir uma casa próximo de parentes na Zona Norte, a região mais populosa da capital. Neide trabalhava os três turnos como professora do ensino básico e dona Augusta ajudava a pagar as contas com a aposentadoria.

A ficha de que os pais haviam se separada caiu no primeiro Natal que a família passou junta sem o pai. Celinna ganhou um boneca e ficou esperando os demais presentes que não vieram.

– Ganhei uma bonequinha bem pequena e fiquei esperando os outros presentes. Voinha disse que era só aquele, fiquei triste, mas hoje acho que eu entendi que tudo havia mudado. Minha mãe nos criou com muito sacrifício, trabalhando em escolinhas da rede privada aqui mesmo em Natal, ganhava muito pouco, mas tínhamos a ajuda de vovó, ela sempre morou conosco. Ela era um pilar de resistência.

Neide e Augusta provaram para os filhos e netos que era possível sobreviver de forma digna mesmo com as dificuldades inerentes a uma família formada por mulheres, pobres e negras. Celinna e os irmãos foram estimulados a crescer e a resistir. E quando tiveram oportunidades fora de casa também agarraram.

As políticas sociais na Educação implementadas a partir do governo Lula foram fundamentais para que Celinna e os irmãos mudassem de patamar:

– Oportunidades dadas para pessoas como eu (mulher, preta, pobre) também me ajudaram bastante. Sem isso, não sei se chegaria aqui. Sou cria do PROUNI, das Cotas, do REUNI, da expansão universitária.

Não é preciso ter bola de cristal para saber quem inspira a trajetória de Celinna. Dona Augusta e dona Neide tiveram um papel fundamental na vida dos filhos:

– A luta delas me mostrou que sou capaz de enfrentar o mundo, sou forte para isso. Embora eu tenha divergências políticas com a minha mãe, sei de sua luta, ela educou três filhos praticamente sozinha, cuidou da mãe já idosa, nunca nos abandonou, resistiu e até hoje me apoia.

Mulher, feminista, preta, nordestina, autônoma, independente, criada pela avó e pela mãe, Celinna resiste e luta.

Sem medo de general.

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Eu e meus 6 irmãos tambem fomos criados por uma mulher analfabeta, mas sábia como poucos. E não somos desajustados, como o tal Sr. Mourão afirmou.

POSTS RELACIONADOS