COVID-19: histórias beradeiras pelo Rio Amazonas

Por: Tainá Aragão

Fotos: Leonardo Milano

Comando do barco Catamarã Rondônia, que faz a travessia de Santarém-PA à Manaus-MA – Foto: Leonardo Milano

Estar em travessia pela parte brasileira do Rio Amazonas em uma época tão atipicamente pandêmica como essa, é experimentar as vísceras serpenteadas de uma nação feita de água, de um povo d’água, de ribeiros e de beradeiras que convivem com as distâncias geográficas e institucionais que, por via de regra, condicionam os povos amazônicos às péssimas condições de atendimento básico, agora, especialmente, o da saúde. De mortes e lamentos também são feitas essas largas travessias entre uma comunidade a outra, fruto de uma negligencia político-genocida vigente neste país continental, que não garante possibilidade de atendimento digno e igualitário a todes.

O Amazonas é um dos epicentros não somente de uma crise sanitária que cresce exponencialmente, mas ambiental, hídrica, identitária, socioeconômica e, principalmente, geopolítica. Um Brasil que nem mesmo o Brasil é capaz de reconhecer de forma integral. 

Essas histórias que seguem se tecem no caminho pelas beiradas  ̶  de porto a porto  ̶  e na correnteza central dessa grande bacia hidrográfica que transpõe fronteiras e nos recobra olhar para a América Latina: Rio Amazonas é sentido do (re)encontro em uma perspectiva pan-amazônica. É nesse encontro vertiginoso de águas e gentes que se vivem diversas contradições possíveis desses seres em movimento, habitantes dos interiores diversos do alto Amazonas. 

Embarque e desembarque de passageiros no Porto de Parintins-MA, primeira parada rumo a Manaus-MA – Foto: Leonardo Milano

De beiradas também são feitas essas palavras que navegam profundo, mas ainda pelejam para mirar com a mesma profundidade do rio-cobra, fora de exotizar o que há de comum por aqui, o que muda é somente a perspectiva: tomamos como partida o Norte. E se essa fosse a referência central dessa chagoza nação, qual Brasil teríamos?

Ver para compreender é preciso para medir o que há de fundura nessa úmida jornada. As pessoas daqui contam, em todas as esferas, as suas desembocadas que as ligam à Amazônia. Uma ligação nem sempre afetiva. 

Casa flutuante acompanha o subir e baixar das águas no rio Amazonas – Foto: Leonardo Milano

Os 1.700 km percorridos em barco do Oeste do Pará, Santarém, em direção a fronteira com a Colômbia e Peru, Tabatinga (AM), entre 19 a 28 de dezembro de 2020, têm o compromisso de mostrar, mesmo que em síntese, o que pulsa dentro do povo de cá nesses tempos de covid-19.

Nessas minicrônicas, os capítulos são os nomes das pessoas que em grande parte da vida vivem no anonimato e têm muito a contar sobre as grandes travessias que cruzam suas cidades, vidas, tradições e corações. Histórias beradeiras são verdadeiros fragmentos das gentes das beiradas do grande Rio Amazonas.

Catamarã Rondônia 

Santarém-PA a Manaus-AM

Catamarã significa “ligadura” de “pau”, uma designação dada a uma embarcação com dois cascos que se destacam por sua elevada estabilidade e velocidade em relação às embarcações menores. Foi no Caramatã Rondônia que começamos a jornada. Construído em 1981, em Niterói (ES), o grande barco, antigamente estatal, é capaz de deslocar mais 600 toneladas de carga e transportar 800 passageiros. Desta vez, transportava180 passageiros, que pela questão da pandemia teve que se adequar a uma nova regra de lotação das embarcações.

Nele, saímos deSantarém no dia 19 de dezembro e passamos por Óbidos (PA) e Juruti (PA), adentramos o Amazonas por Parintins, Itacoatiara e, logo, chegamos à capital: Manaus. A viagem durou em torno de dois dias e meio e começamos contar essa história pela proa, no comando.

Aglomeração de redes foi uma constante em todo o trajeto, principalmente no primeiro trecho, entre Santarém-PA e Manaus-AM. Poucas pessoas usando máscaras – Fotos: Leonardo Milano

Heige Pompeu 

De picolezeiro à comandante

O sonho do menino que vendia picolé no grande barco se tornou realidade depois de 18 anos. Heige Pompeu (37 anos) escolheu a vida na água pela teimosia iluminada de menino que vivia em Parintins e, do porto, via o grande Caramatã Rondônia passar. Nele entrou pela primeira vez com seus doces e picolés até ocupar a cadeira do espaçoso comando, em anos mais tarde.

Fé, família e comando: Heige (de camiseta cinza), sua esposa e dois filhos, no comando do Catamarã Rondônia – Foto: Leonardo Milano

Quando eu era criança, eu vendia picolé e doces nesse navio aqui, eu morava em Parintins e entrava nesse barco, relata.

Em seus 19 anos dedicados à marinha, passou para marinheiro auxiliar e seguiu a escala até o comando. A trajetória foi marcada por saudades, pois, como um ser do rio-mar, ele passa somente 17-18 horas em casa, em Belém (PA), quando o navio atraca e todas as cargas já foram descarregadas. Nesse natal pandêmico, Pompeu viajou com a esposa e filhos para nessa data, que passará em travessia, esteja com a sua família, mesmo no apertado camarote, sua habitação aquática.

A responsabilidade no barco é grande, pois cuida de toda gestão logística de saída e chegada, alimentação e suprimento necessário de Belém, origem do barco, ao destino de Manaus. As cargas são diversas, mas em especial transporta alimentos, visto que as vias fluviais ainda são as principais formas de distribuição de insumos alimentícios na região amazônica.

É uma responsabilidade muito grande, porque além de lidar com as vidas, lidamos com a parte comercial. Os barcos levam os mantimentos alimentícios e o alvo principal é fazer a distribuição do alimento, explica Pompeu.

Com a maior facilidade de compra de passagem de avião, os passageiros não são mais o foco dos barcos. Contudo, ainda assim, há uma demanda considerável de passageiros que se deslocam por via fluvial, chegando a 800 pessoas. Nesse tempo de covid-19, o navio não parou e Pompeu contraiu covid-19 trabalhando, no meio do rio, e depois de 15 dias, continuou trabalhando. Quando contraiu o vírus, ficou acamado no barco e recebeu apoio de médicos de Parintins, que forneceram um kit para o tratamento do barco até chegar à cidade. 

A gente orienta os nossos passageiros visando à prevenção. O que não conseguimos são os folhetos maiores (com as orientações sobre covid-19), mas fazemos o máximo, porém as pessoas acham que estamos brincando, que já passou, que é bobagem. Às vezes a gente é até chacoteado, diz.

Os barcos são os principais responsáveis pelo aumento dos casos de covid-19 na região amazônica, como diz o estudo realizado pelo projeto Atlas ODS Amazonas do Centro de Ciências do Ambiente, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que ilustra bem como a covid-19 se disseminou, partindo dos grandes centros amazônicos para locais menores. Segundo estudo, a capital possui 45,1% dos casos confirmados e os municípios do interior 54,9%. Esse cenário é preocupante, pois os deslocamentos para acesso aos serviços de saúde demonstraram que o Amazonas possui 90,3% dos municípios com dependência direta do serviço de alta complexidade em Manaus.

A contaminação pela rota fluvial acontece porque não há uma barreira sanitária ativa e, tampouco, há uma fiscalização efetiva sobre a quantidade de passageiros por embarcação; se há o distanciamento necessário ou se os passageiros estão devidamente respeitando as regras sanitárias recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Frente a isso, os dados são alarmantes, pois 82% dos leitos dos hospitais no Amazonas estão ocupados e 60 dos 62 municípios já possuem casos confirmados. A tendência, com a flexibilização das regras sanitárias, é que os casos aumentem.

Apesar de Pompeu utilizar a máscara, recomendação básica de cuidado individual e proteção a covid-19, nenhum outro funcionário a utilizava e pouquíssimos\as passageiros\as utilizavam. Somente na hora do desembarque foi possível notar que todes possuíam máscaras. 

Nesses anos de embarcação, talvez, essa foi a primeira vez que o comandante Pompeu viu tantos outros dos seus companheiros morrerem em travessia e não por acidentes de água, mas por um vírus desconhecido vindo de longe que se alastrou de forma assustadora nas beiradas dos rios e, logo, dentro dos barcos. 

Começamos a transportar muitos caixões nesse período, muito mais que a que a média, enfatiza.

Apesar de todas as dificuldades que atravessam a vida de um ser da água, o menino picolezeiro, agora habitante do corpo adulto de Pompeu, ainda quer alcançar mais uma patente e vestir a roupa toda branca, como na sua visão clássica do grande navegante.

Ainda tem a parte final, capitão. Espero com fé em Deus alcançar essa patente. Eu gosto da natureza, desse ambiente e a gente tem o privilégio de estar aqui, finaliza.

Marvis Castro 

De volta à Venezuela

Através de uma tresloucada vontade de sobrevivência, a venezuelana Marvis (23 anos) e seu namorado Fernando Josué (35 anos) atravessaram a fronteira brasileira há três anos. Marvis é de El Tigre, uma cidade da Venezuela localizada no estado de Anzoátegui, e mãe de três filhas, de 9, 5 e 3 anos. Sua última filha tem o tempo de sua migração para o Brasil, uma vez que a deixou com poucos meses com a sua mãe quando decidiu migrar para garantir sua sobrevivência.Sua história de migração se une a tantas outras que cruzam a fronteira pelo norte do Brasil, por Roraima.

Marvis em sua rede – Foto: Leonardo Milano

Vi em uma página que dizia “No Brasil o dinheiro é bom”, vendi minha moto e vim de ônibus para o Brasil, diz Josué.

Marvis acompanhou o namorado, sem saber o que a esperava do outro lado da fronteira. Nesses três anos no Brasil chegaram a Mato Grosso, em um garimpo chamado “Novo Astro”. Em situação totalmente ilegal, o garimpo passou por uma apreensão da Polícia Federal e ela viu todas as suas coisas sendo queimadas. 

Sem muitas esperanças no “sonho brasileiro”, Marvis resolveu fazer o caminho de volta à Venezuela, reunindo o que tinha. Iniciada por via terrestre e depois fluvial, embarcou de volta a sua casa, atravessando o Rio Amazonas. 

Decidimos voltar porque queremos mandar dinheiro para família. Nossa! Pra mim é muito… três anos é muito, sem ver os meus filhos.

Há menos de um mês a jovem perdeu um filho e sua maior vontade é reencontrar os seus que deixou na Venezuela. Quer resgatar, nesse momento, o afeto materno.

Quero passar o ano novo com a minha família, lá a gente reúne toda a família. Aqui no Brasil as pessoas dormem cedo, e lá não, ficamos muito juntos. Isso que eu preciso, enfatiza a jovem.

Carlos Germano

Garantido de berço

“Já nasci Garantido”, diz Germano, jovem, estudante de matemática, cantor e membro da batucada do Boi Garantido. Ele embarcou no navio Caramatã Rondônia em Parintins, sua cidade Natal, rumo à Manaus. Parintins fica a 350 km de Manaus e, apesar de a distância da capital, é conhecida mundialmente pela arte. É um reduto de artistas amazônicos, fruto do grande Festival de Parintins que reúne milhares de pessoas anualmente para prestigiar a rivalidade entre os bois Garantido e Caprichoso.

Carlos, no Catamarã Rondônia – Foto: Leonardo Milano

Esse ano foi o primeiro, em toda a história do Festival de Parintins, que a festa não aconteceu, devido à pandemia. O Festival começa seu feitio em março, exatamente quando se iniciou as regras de isolamento social no Brasil. 

Esse ano sem festival foi muito chato, senti muita falta de participar, diz o entusiasta.

  Parintins foi o segundo município a apresentar casos da doença no estado, no dia 28 de março de 2020, onde foi decretada a transmissão comunitária da doença em Manaus. 

A Associação Folclórica Boi-Bumbá Garantido, conhecida como Boi-Garantido, foi fundada em 1920, ainda quando as ruas de Parintins eram caminhos de terra. Iniciou-se como uma espécie de carnaval de rua e somente em 1987, quando Amazonino Mendes, então governador do Amazonas, construiu o Bumbódromo, que começou a ganhar as proporções da festa de hoje.

É uma festa feita pelo povo. Mas, o Garantido é mais do povão, do lado da periferia, nem sempre ele ganha na organização, ele ganha na brincadeira. Já Caprichoso tem mais organização, é reconhecido por isso, Germano explica a diferença entre os bois.

Esse feitio popular parintinense, em 2019, recebeu o certificado de Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e, segundo Germano, “todo mundo (de Parintins) tem sua história no Boi”. Uma história movida pelo desejo de uma língua do boi por Catirina e ressureição do mesmo por meio da pajelança, que o torna encantado. É uma verdadeira cosmovisão luso-indígena, permanentemente viva e em constante transformação. 

Apesar de a marujada do Caprichoso e da batucada do Garantido terem se silenciado esse ano, o jovem “Garantido” não deixou de imaginar a festa dentro de si, compôs músicas, gravou vídeos para as suas redes sociais, sendo o principal tema a sua paixão: o vermelho do Garantido.

Por fim, já distante de Parintins, Germano cantarolou uma das canções que sussura, em alto e lamento, no seu coração:

O curupira fugiu
Jurupari desistiu
Surucucu se escondeu
Cobra-grande, cobra-grande
Na enchente encolheu.

 Diz um dos hinos que mais emociona Germano, o Caprichoso “filho do Garantido”. 

Débora Souza 

De barco em barco 

Pela primeira vez, a manauara Débora Souza (27 anos), mãe de três filhos, pôde viajar sozinha. Saiu de Manaus rumo a Santarém e estava voltando de Santarém a Manaus para buscar uma das filhas, a fim de passar o natal com ela, e sua viagem é feita de barco em barco. Foi para Santarém a convite de uma amiga, gostou tanto que resolveu ficar lá no final do ano. 


Débora redescobriu a vida, após deixar um relacionamento abusivo – Foto: Leonardo Milano

No seu pescoço havia marcas de unhas, um enforcamento que quase a levou à morte, provocada por uma das crises de ciúme do ex-marido, o qual ela carrega o nome tatuado na perna. Com apenas quatro meses de separação, é a primeira vez que se viu livre de um amor tóxico. Foi somente agora que conseguiu olhar e reconhecer a imensidão do rio que sempre esteve à sua espera.

Não se prendam por uma paixão, não vale a pena sofrer tanto tempo como eu sofri. Temos que aprender a seguir a vida, recomenda Débora.

No bar do barco, onde brindava e compartilhava de mesa em mesa, ela contava entre uma cerveja e outra sua história de rompimento que poderia a ter colocado entre as estatísticas de feminicídio do Brasil. Segundo dados do levantamento inédito sobre a violência doméstica realizada por mídias independentes no Brasil (Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo), entre os meses de março e abril de 2020, durante a pandemia do novo coronavírus, os casos de feminicídio no país aumentaram em 5% em relação a igual período de 2019.

Débora ainda carrega, na pele, o nome do ex-namorado – Foto: Leonardo Milano

Sofri no começo porque eu gostava dele. Foram nove anos, nove anos, quatro deles que vivi calada, sofri muito, mas depois eu fiquei feliz. Eu acho que a pessoa não deve se prender agora. Eu quero trabalhar, porque ele não deixava, quero cuidar dos meus filhos. A Débora antiga era triste, agora estou liberta.

Perguntei: Agora, o que é o amor ideal pra você?

Debora: O amor próprio, finalizou.

A descoberta do amor próprio – Foto: Leonardo Milano

No lugar do nome que ainda está gravado no seu corpo, Débora diz que tatuará a personagem da Disney “Sininho”, uma forma de lembrar que ela, por si, é capaz de viver os seus próprios sonhos e fantasias.

(Manaus a Tabatinga)

Vitória Régia 

Foi no barco Vitória Régia, nome de uma planta aquática, característica da Amazônia, que embarcamos dia 22 de dezembro do antigo porto fluvial de Manaus, capital do Amazonas, rumo a Tabatinga, último município amazônico antes de chegar a Colômbia, localizado no Alto do Rio Amazonas.Juntes, a outras 150 pessoas, com menos de 20% da capacidade total do barco, percorremos sete dias de viagem subindo o maior rio do mundo, uma experiência caudalosa e longa.

O Vitória foi o barco que navegou durante o Natal, levando as pessoas ao encontro de seus familiares após a data festiva. Em comparação com o Catamarã Rondônia, as normas sanitárias eram mais respeitadas pelos funcionários do barco e, muitos ali, utilizavam máscaras. Contudo, foi inevitável a aglomeração nos momentos da refeição. Quantos dali não estariam levando o vírus às suas comunidades? É uma pergunta que fica latente. 

Com as redes atadas, percorremos, saindo de Manaus, as cidades amazônicas: Fonte Boa, Jutaí, Tonantins, Santo Antônio de Iça, Amaturá, São Paulo de Olivença, Benjamin Constant e, por fim, chegamos a Tabatinga, tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.

Jorge

Um Corazón Rompido

Jorge transcrevendo suas dores – Foto: Leonardo Milano

Tomei a decisão de não confiar mais nas mulheres, principalmente, as brasileiras. Valeu a pena porque eu aprendi em não confiar mais nas mulheres, só pretendo chegar e compartir com meus papais, diz o colombiano Jorge, nascido em Belén de Umbría, em Risaralda.

Há4 anos, mais especificamente dia 17 de setembro de 2016, ingressou ao Brasil e foi direto a Macapá, onde conheceu uma brasileira que se apaixonou. Desceu até o Nordeste e chegou a Maceió, local onde montara seu próprio restaurante. 

Trabalhei a maior parte do meu tempo como padeiro e no último tempo consegui independizarme, diz. 

O sonho da família e mulher perfeita foi por água abaixo quando o jovem descobriu a traição de sua namorada com outro colombiano. Seu coração ficou tão dolorido que resolveu abandonar tudo, às vésperas do Natal e voltar à Belén, como o Menino Jesus, pois voltar para casa, para Jorge, significava re(nascer).

Ela estragou a minha vida, era independente e fiquei sem nada. Agora só quero chegar em casa, abraçar os meus papais e recomeçar, diz.

Eu: Você não perdeu tudo, você tem tanta coisa, tem até um hilo (linha que estava na sua mão). 

Jorge: Mais pra que serve um hilo sem agulha?!

Raimunda Borges 

 A ceia em travessia 

Aos 56 anos, é o 6º ano que a cozinheira do Vitória Régia, Raimunda, passa o Natal no barco a caminho de Tabatinga. Ela é responsável, com os outros cozinheiros, pela ceia natalina, que não é nenhuma obrigação do seu itinerário, mas ela faz questão de fazer, após o expediente.

Raimunda – Foto: Leonardo Milano

Hoje estou feliz porque estou trabalhando pra fazer o melhor pra gente. Olha, eu trabalhei 20 anos em uma casa de família, 20 anos em uma cozinha trancada, aí eu decidi vir por barco porque eu teria mais oportunidade de conhecer, diz cortando as macaxeiras que irá fritar pra acompanhar os 17 perus que já estavam sendo assados na cozinha.

Apesar de se sentir bem em travessia, almeja chegar prontamente a Benjamin Constant, onde passará o ano novo com a mãe de 86 anos.

Quando decidiu “morar na água”, viajando de forma interrupta, estava viúva e com quatro filhos já crescidos, nunca tinha saído de Benjamin e não conhecia nem mesmo a capital amazonense. 

A primeira vez viajando foi a sensação que eu estava numa prisão e eu me libertei. Nesses anos conheci muita gente legal e muita gente chata… que eu conheci “dobrar”, eu nasci rindo, as pessoas gostam de mim, diz sorrindo.

Para 2021, deseja somente vida.

Meu sonho é que Deus me dê saúde pra eu trabalhar,finaliza.

Na ceia de natal, Raimunda estava com os cabelos soltos, olhos brilhantes e sorriso aberto vendo os passageiros servirem alegres seus pratos.

A equipe responsável pela alimentação do Vitória Régia – Foto: Leonardo Milano

Elivania Ferreira Pires

Um Natal vazio

Foto: Leonardo Milano

O primeiro Natal de Evilania no grande Rio Amazonas estará vazio. A cozinheira de 50 anos, que fazia com esmero os afazeres da cozinha, carregava um olhar triste, pois sua mãe havia falecido há poucos dias e ela descobrira em travessia.

Vai fazer oito dias que minha mãe faleceu de covid-19 e eu não estava lá, estava viajando. Esse natal está difícil, muito difícil mesmo.

O dia festivo de Evilania perdeu o sentido, como de tantos outros brasileiros neste ano que tiveram pessoas queridas entre os 200 mil mortos de covid-19 no Brasil. A pessoa que morre sempre é o amor de alguém.

Elivania – Foto: Leonardo Milano

Logo no início da pandemia eu peguei, quase morri também, mas eu estive com ela (sua mãe) no dia 16 de dezembro, agora, minha filha também está, diz entristecida.

Wilian

O reencontro no Porto

A mamãe… ixi, é uma história… porque eu passei um tempão para cá, eu tava doente… achava que ela tinha morrido… o barco que ela viajava afundou e eu passei anos sem vê-la.

Wilian – Foto: Leonardo Milano

O menino Wilian, do interior de Santo Antônio de Iça (AM), passou anos da sua vida pensando que sua mãe estava morta no Rio Amazonas. Sua mãe foi vítima de um acidente na embarcação que trabalhava, sobreviveu, mas ao invés de voltar pra casa, resolveu sumir, largar tudo na pequena cidade e buscar uma nova vida na grande Manaus.

Ela veio para cá, para Manaus, trabalhar no rio né, naquelas dragas (garimpo), tirando ‘pedra’ do fundo (xisto)… trabalhava de cozinheira… acho que foi em 2006, 2007… eu tinha uns 7 ou 8 anos… foi ali pelo rio Juruá… soubemos a notícia lá que ela tinha morrido…, explica.

Não se sabe o que passou no corpo e na vontade daquela mulher que viu em um acidente de barco a possibilidade de recomeçar, definitivamente, a sua vida. Mas ela deixou um grande vazio nos anos que ficou distante, pois seus filhos perderam o sentido materno, vivendo na pele a morte de uma mãe. Até que um dia, o cunhado de Wilian a encontrou no porto e reconheceu.

O meu cunhado, ex-cunhado, encontrou ela no porto… aí ele perguntou se era ela, e ela disse que era. Daí ele tomou um susto. Na hora em que ela chego lá, ela desceu lá na esquina, eu fiquei olhando para aquela mulher de longe, eu achei que era a mamãe… daí eu corri para abraçar ela… daí foi a maior choradeira, finaliza com o reencontro visceral que o fez renascer.

Naigel 

Em busca do Ouro

Presença frequente de garimpeiros na viagem – Foto: Leonardo Milano

Na travessia entre uma cidade e outra do Amazonas, é possível notar muitos trabalhadores que estão no vai e vem, entre a cidade e os interiores. Com a crise de desemprego recorde que o Brasil sofre nos últimos anos, que contabiliza 14,1 milhões de desempregados, cerca de 14,6% da população, conforme dados de setembro de 2020 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), muitos trabalhadores recorrem a atividades ilícitas para sobreviver, o que inegavelmente são atividades criminosas e em grande medida causam problemas socioambientais irreversíveis. O garimpo é uma delas, que estámuito presente na região Amazônica.

Naigel Guimarães, com apenas 21 anos e pai de uma filha, tem o sonho de estudar robótica, pois é apaixonado pela tecnologia que faz com que robôs construam casas.“Quando vi um robô que construía uma casa, eu me apaixonei”, diz. Filho de Jutaí, região amazônica de grande exploração garimpeira ilegal, ainda não conseguiu realizar o seu sonho, que resolveu ir morar em Manaus há 6 anos para se aproximar dele. Contudo, por falta de oportunidade, na grande cidade, chegou somente na linha de produção de computadores.

Em Manaus eu trabalhava como auxiliar de produção no Positivo, disse.

Cansado de acordar todos os dias às 4:30 da manhã para ganhar apenas um salário mínimo, quantia insuficiente para pagar uma mensalidade na faculdade, o jovem resolveu ir para o garimpo. Essa viagem de Natal é para começar sua nova atividade.

Em Jutaí, ou você trabalha na prefeitura, ou você trabalha em uma loja ou no garimpo; ou você nasce em uma família que tá na política ou você vive ligado ao garimpo. 67 anos de Jutaí é assim. O garimpo é um pouco trabalhoso, mas é recompensador porque é um bom dinheiro, explica o jovem. 

Na grande cidade, Naigel percebeu que nem sempre é possível realizar sonhos, principalmente quando se é pobre e vem de uma família sem posses.

Eu quero comprar uma casa pra minha mãe, quero que ela saia do aluguel. 10 anos que ela vive de aluguel, no ano dá 7.600, somando os 10 anos, ela já teria uma casa. Minha mãe tem um bar agora, mas sempre trabalhou na casa dos outros e nunca conseguiu comprar uma casa pra ela. Quando eu conseguir isso, eu sairei do garimpo e tento estudar.

Pergunta:Você acha que o garimpo é a única maneira de conquistar as coisas?

Naigel: Não, mas é a única solução que eu tenho agora. A outra maneira seria ir pra Manaus, trabalhar e estudar pra cursar uma faculdade, se o dinheiro desse, e para depois… ser contratado, juntar dinheiro e comprar uma casa. É impossível, eu já tentei.

Pergunta: Então, qual é a sua meta pra 2021?

Naigel: Não morrer.

Pergunta: O que você sente falta?

Naigel: Sinto falta da liberdade. 

Val

Enfermeira da água

De uma vida na terra para a vida na água, quatro anos como enfermeira da água, Valdenora de Assis, conhecida como Val, conta que para embarcar teve que deixar um casamento de 20 anos para trás, o que mudou totalmente a sua vida.

Val – Foto: Leonardo Milano

O salário na terra é muito pouco, não tem como sobreviver e se eu tivesse um marido com certeza não estaria aqui, diz.

No barco, e em tempos de covid-19, ela diz ter lidado apenas com dois pacientes que tiveram sintomas e que conseguiu controlar até chegar ao destino final. Apesar da pouca quantidade diagnosticada na travessia, não se sabe quantos assintomáticos desembarcaram em todos os portos.

Temos os medicamentos básicos e também fazemos curativos para os meninos que trabalham no porão, que de vez em quando se machucam. Só atendi dois com covid-19, que quando chegaram à cidade foram enviados diretamente para o hospital, afirma.

Filha de Benjamin Constam, de uma comunidade chamada Capacete, ela diz que apesar de ter se mudado para Manaus e estar em constante travessia há quatro anos, conhece pouco do que a rodeia.

Só conheço os portos, não conheço as cidades. A gente não tem vida social, só com as pessoas que estão aqui. Eu fico oito dias na minha casa em Manaus e uma noite em Tabatinga, com a minha mãe, relata a enfermeira sobre a sua pequena estadia na terra.

Quando criança, Val, que sempre foi beradeira, se deslumbrava com as grandes embarcações que passavam sobre os seus olhos.

A gente via os barcos passarem de noite, e de dia eu dava tchau para as pessoas. Não sabia como era, agora eu sei o que é ser a pessoa de lá e a pessoa daqui, diz.

Agora, de dentro do barco, ela atravessa um descobrimento próprio, experimentando pela primeira vez o que é viver para si. Liberdade, total liberdade, classifica.

Mulher e mãe liberta, admirada pelos filhos: Val e um de seus filhos no camarote da enfermeira – Foto: Leonardo Milano

Rômulo Chota Pereira

As cicatrizes

Esse ano foi um ano que deixou profundas cicatriz em todos os brasileiros\as. Vivemos uma morte intermitente, um luto visceral e um descaso governamental que faz chacota com a atual crise mundial. 

Foto: Leonardo Milano

Rômulo, jovem nascido na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no auge dos 22 anos, trabalhava no porão do barco Vitória Regia como diarista, e ele sabe muito sobre as cicatrizes. Coleciona algumas quantas, que ele mesmo fez em seu corpo.

Cada cicatriz significa uma coisa. Eu estava desgostoso da vida, eu fumava muita droga, eu sentia muita dor sentimental e eu ficava com muita raiva. Eu pensava que era incapaz de sair dessa vida, expõe.

Qual é a pior dor? A do coração, ou a física? Foto: Leonardo Milano

A dor visceral que carrega advém dos anos que foi usuário de drogas, realidade constante que aflige os jovens no interior do Amazonas, e por influência dos mais velhos acabam tendo contato com álcool e drogas precocemente.

Foto: Leonardo Milano

Comecei a usar aos 13 anos e comecei a largar aos 18 anos, faz três anos.

Na luta constante contra o sentimento de vazio, o jovem carrega sonhos, agora, com esperanças. Pensa em estudar, construir uma carreira, viajar, conhecer outros lugares e pessoas.

Tudo muda, as cicatrizes podem sumir. Agora, eu quero voltar a estudar, viajar.

Pergunta: O que você diria para um jovem como você?

Rômulo: O que é um jovem como eu?

Rômulo me relembra que somos infindas singularidades e as particularidades que compõe a gente nunca caberá em uma resposta genérica. Expertise vem do verbo experimentar. 

No dia 31, em plena virada do ano, Rômulo completa 23 anos e seu único desejo pra esse dia especial, em meio a essa crise pandêmica que o mundo atravessa, é apenas ter direito à vida.

O meu objetivo é viver, finaliza.

Esperança… Foto: Leonardo Milano

Galeria beradeira

Fotos: Leonardo Milano

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