Na manhã deste sábado (24), tive a oportunidade de presenciar um fato, no centro de Curitiba, que instigou minha reflexão. Um grupo de militantes petistas divulgava o comício de Lula na capital paranaense, onde o ex-presidente deve encerrar sua viagem pelos estados do sul do país na próxima quarta-feira, 28. Durante o tempo que lá estive, de um modo geral observei três tipos de reações. A dos envergonhados, que se esquivavam de pegar o panfleto, mas sem esboçar aprovação ou desaprovação; a dos generosos, que pegavam o panfleto independente de concordarem ou não; e a dos que vociferavam contra os militantes, preferindo, alguns deles, jogarem o panfleto no chão depois de pegá-lo. Desse último grupo, destaco três episódios. O primeiro foi o de um policial militar fardado que veio com ares de autoridade suprema exigir que a barraquinha do PT fosse desmontada sem qualquer fundamento legal. Questionado, preferiu se retirar sem não antes dizer que, caso não estivesse fardado, daria um tiro em alguém. Assim mesmo, audível para todos. O segundo episódio foi o de uma senhora que, aceitando o panfleto, deu um beijo no rosto da militante para, em seguida, amassar o papel e esbravejar: “Sua Judas!”. O terceiro foi outra senhora que, não satisfeita em negar o panfleto, segurou no braço de uma jovem militante para tentar convencê-la de que Lula era um criminoso e merecia a pena de morte. Somente depois a petista percebeu uma mancha em seu braço tamanha força com que seu braço foi apertado. Isto sem falar de uns e outros que se aproximavam com o puro intuito de provocação, dirigindo palavras de desaforo e condenação a Lula e ao PT. Tudo isso se passou no espaço de pouco mais de três horas. Nesse tempo, também aconteceram aproximações amigáveis e de apoio. Algo em torno de 1.500 panfletos foram distribuídos de mão em mão pelos militantes, que também investiam tempo em dialogar com as pessoas.

Claro que Curitiba e a região Sul não representam necessariamente o Brasil, mas cabe a pergunta: como a liberdade de expressão pode ser tão ameaçada dessa maneira? Quando um bando de homens e mulheres querem impedir pela força que a caravana de Lula não ingresse em algumas cidades gaúchas, fechando estradas com suas caminhonetes possantes e seus tratores modernos, estamos falando de que tipo de gente? As cenas estão disponíveis nas redes sociais. Duas militantes foram hospitalizadas e um outro foi chicoteado como no tempo da escravidão. Bandoleiros mostraram suas armas na frente da Brigada Militar, que não esboçou reação. Será que esta forma de demonstrar descontentamento com um adversário político representa uma contribuição à democracia ou estamos falando de atitudes que a colocam em risco? O curioso é que muitos desses autodenominados ruralistas se beneficiaram dos incentivos dados pelos governos Lula e Dilma à agricultura. Certamente alguns aproveitaram o crédito a juros baixos para adquirir seus veículos e tratores. Quem sabe até alguns de seus filhos podem estar cadastrados nos programas FIES e ProUni. Ou, então, estudando em universidades públicas.

Ruralista agride estudantes e jornalistas que acompanhavam a caravana de Lula no RS / Foto: Guilherme Santos/Sul21

Mas, parece que a essas pessoas pouco lhes importa a análise objetiva da realidade. São torcedores de um time que joga contra o país e, o que é pior, contra a democracia. Não à toa, alguns deles empunhavam propaganda de apoio ao deputado Jair Bolsonaro e à intervenção militar. Afinal, o que pensam esses que se denominam patriotas? É uma questão difícil de responder porque existe uma contaminação generalizada de circunstâncias antecedentes. A estabilidade institucional não fica incólume quando uma presidente eleita é apeada do governo por um movimento alimentado por quem perdeu o jogo, o que inclui a mídia tradicional. Dilma foi derrubada sem crime de responsabilidade, como determinaria a lei. Isto diz muito do processo que ali brotava mais claramente desde junho de 2013. A partir desse primeiro momento, uma série de atos passam a acontecer para justificar o início e assim sucessivamente.

Os estamentos estatais entram em cena com mais virulência porque se sentem liberados para fazê-lo desde as suas perspectivas morais e preferências políticas. A lei passa a ser interpretada na crueza do punitivismo exacerbado que a todos condena em nome de uma suposta salvação nacional. Sem estofo intelectual, representantes do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e do Judiciário, categorizados simbolicamente pela imprensa como heróis, se sentem avalentonados em uma missão que só a eles interessa. Nas condenações, não sobrevive outra hipótese que não seja a de levar os réus à condição de indignidade pessoal e à excrescência pública. As delações são premiadas desde que alcancem o objetivo maior de denegrir a política e colocar o país em um sem saída institucional. As delações servem ainda para sangrar e fazer desaparecer grandes empresas nacionais como se houvesse a necessidade de encarcerar a estrutura como um todo, e não somente aqueles que eventualmente delito cometeram. Infelizmente, em processos com essa característica, todos são condenados antes de qualquer julgamento.

Depois de todos esses sinais, reverberados incessantemente pelos meios de comunicação, não é de espantar que um simples soldado se sinta no direito de ameaçar a tiros um grupo de militantes que exercem o direito à manifestação. Ou que senhoras esbravejem quando abordadas por um petista. A hierarquia foi quebrada com o impeachment e, a partir disso, a conivência entre aqueles que advogam a força bruta como solução para o país está mais do que evidenciada. Corvos alimentam outros corvos e assemelhados para imputar a desestabilização a um suposto e falacioso “perigo vermelho”. Induzem ricos e pobres, gente de bem e gente do mal, a acreditar que os governos Lula e Dilma só fizeram estragos no Brasil. E, na cena mais recente, querem espalhar que a execução de Marielle Franco foi merecida e que não se dá o mesmo destaque para outras mortes de gente desconhecida. Os argumentos são pífios, embora sejam capazes de fazer estrago.

Na manhã deste sábado, pude ver a coragem de quem não se entrega ao fascismo nem ao derrotismo. Afinal, a pior luta é aquela que se abandona. Esse pequeno grupo de militantes petistas não se envergonha do que pensa e deu uma aula de dignidade cívica ao não aceitar as provocações. Afinal, os cães ladram e a caravana passa.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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