Em abril de 1972, um céu azul de uma manhã de outono abria as nuvens para a chegada do primeiro imperador brasileiro. Era o sesquicentenário da independência e os jornais estampavam o retorno do monarca depois de 141 anos. O então presidente militar, Emilio Médici, preparava uma enorme festa cívica, recebendo, com entusiasmo, os restos mortais de dom Pedro I. Em terras portuguesas, entretanto, ficou guardado um dos órgãos do imperador. Com 50 anos de distância, o Brasil agora comemora o bicentenário da independência. E eis que nesta segunda (22) chega ao Brasil o pedaço que faltava: o coração.
Foram quatro meses de negociações entre o governo português, a Câmara do Porto e a Irmandade da Lapa para que o coração do imperador pudesse chegar até nós. Com as despesas pagas pelo governo brasileiro, o órgão de Dom Pedro será transportado pela Força Aérea brasileira (FAB) nesse domingo (21) e chegará na segunda às 9h30 em solo nacional. Na terça-feira (23), o presidente da república, Jair Bolsonaro, recepcionará no palácio do planalto a relíquia portuguesa. Depois, ainda ocorrerá uma cerimônia no Palácio do Itamaraty. Para Alan Coelho de Séllos, chefe do cerimonial, o coração de dom Pedro deve ser tratado aqui como se fosse chefe de estado, como se o monarca estivesse vivo entre nós. George Prata, embaixador brasileiro, justifica o empréstimo pela importância atribuída à figura de Dom Pedro.
No sesquicentenário, a vinda do corpo do imperador significava o retorno do grande “herói da independência”. O regime militar usou o corpo do imperador para exaltar o próprio governo e se legitimar no poder. Para a historiadora Joana Monteleone, que produziu o documentário “O corpo do Imperador”, a ditadura buscou assimilar a imagem de Dom Pedro à casta militar. “Na cabeça dos militares a nobreza sempre foi uma classe guerreira”. Assim, ao comemorar dom Pedro e a nobreza no poder, ou seja, a formação do país de maneira monárquica, os militares estariam carregando a herança dessa nobreza. Eles seriam os formadores da pátria. Primeiro, em 1822, depois, em 1889, por último, 1964.
Na ditadura, a comemoração do sesquicentenário também se inseriu em um contexto de euforia vivenciado no país. Na década de 70, após vencer sua terceira copa do mundo, o Brasil passava pelo chamado “milagre econômico”. O governo militar, dessa forma, pretendia estender o clima de comemoração através de uma festa cívica que durou 5 meses. Foram feitos velórios, missas, passeatas e desfiles enquanto o corpo morto do imperador viajava o país.
Se, em 1972, a vinda do corpo de Dom Pedro I era parte de uma propaganda do governo militar para comemorar o sesquicentenário, qual o sentido do empréstimo do coração em 2022? Além do resgate das figuras da monarquia brasileira, há uma explícita intenção do governo Bolsonaro em recuperar alguns símbolos da ditadura militar. Segundo o jornalista Jamil Chade, “a iniciativa foi considerada por conselheiros do presidente como uma “tacada eleitoral”, atendendo à parcela da população com forte cunho patriótico. Não por acaso, o evento contará com uma ampla organização, festa e o convite a todo o corpo diplomático em Brasília”.
Para Monteleone, o atual governo é bastante ligado aos militares, mas muito diferente do governo militar em si. Ao mesmo tempo em que tenta recuperar ideais do governo de 64, Bolsonaro faz isso de forma tosca e “um pouco sem lugar na história”. O professor André Machado, que estuda o processo de independência na província do Grão-Pará, também vê dificuldade em enxergar um projeto articulado do governo sobre o bicentenário.
“A impressão que eu tenho é que não existe uma cabeça pensando isso, uma cabeça que pense isso assim: ‘olha, vamos fazer essa associação’. A impressão que eu tenho é que parte do governo ou algumas pessoas do governo gostariam de se aproximar da ideia do que foi feito em 72, mas não souberam como fazer”. (André Machado)
São poucos, ainda, os que sabem da chegada do coração de Dom Pedro na segunda (21). E são poucos também aqueles que veem alguma lógica na vinda do coração do imperador. Naquele distante 1972, a tarefa já era complexa. Agora, para Monteleone, é, sobretudo, anacrônica: “Ele [Bolsonaro] obviamente recuperou essa ideia do governo militar para tentar dar algum lastro de legitimidade ou nacionalismo a seu governo”, claramente entreguista em termos de soberania nacional.
Trazer o coração do imperador morto ao Brasil não deixa, entretanto, de ser um ato simbólico. Em tempos de necropolítica, na ditadura e agora, comemorar os mortos, afinal, faz todo o sentido. Enquanto o governo militar perseguia, matava e desaparecia com os dissidentes políticos do regime, o país celebrava os restos mortais de Dom Pedro. Já, em 2022, o coração, para Monteleone, vem para mascarar o horror que foram os 600 mil mortos na pandemia, o desprezo e o descaso do presidente.
“Qual o sentido de tentar trazer pedaços do corpo [do Dom Pedro] enquanto a gente tá preocupado com outros corpos, né? A gente está preocupado com o desaparecimento do Amarildo. A gente está preocupado com o assassinato da Marielle. A gente tá preocupado com esse ataque absurdo aos povos indígenas, né? A gente está preocupado com a destruição da Amazônia. A gente está preocupado com os assassinatos dos camponeses dentro do do MST.” (Joana Monteleone)
Dom Pedro I, o herói nacional
Ao trazer, para a comemoração do bicentenário, o coração de Dom Pedro, o governo Bolsonaro não apenas copia antigas ideias, como também acentua qual a sua visão da história. Dessa maneira, restaria a dom Pedro I o papel de salvador da pátria e fundador da nação. Assim, teria bastado que, às margens do rio do Ipiranga, o homem lançasse a sentença: “independência ou morte”. E o país nascia. No site oficial do governo, há uma página especial para a comemoração do bicentenário. Nela, há uma subcategoria “História”, onde encontramos os principais atores de 1822. Vemos Dom Pedro I sendo, de fato, colocado como fundador do Brasil, dividindo espaço com outros grandes nomes como Carlota Joaquina, José Bonifácio e Maria Quitéria. Não existe povo.
“E se tem essa ideia de que a Independência foi por causa dele [Dom Pedro], que deu tudo certo que eles foram lá e viraram dois povos amigos [Brasil e Portugal] e não teve nenhum conflito nenhum não teve nada. (…) Ao mesmo tempo, muitos historiadores tomaram para si a tarefa de compreender a Independência. Ou seja, ‘nós vamos falar da Independência, vamos pensar as guerras pela independência, vamos pensar a independência de perspectiva global. Vamos pensar a participação indígena'”. (Joana Monteleone)
A professora Elizabeth Abrantes pesquisa os independentistas na província do Maranhão. Para ela, destacar as participações populares no processo de independência é “romper com o silenciamento da história oficial”, que tentou apagar o registro das lutas de vários povos. Já, para a historiadora Ynâe dos Santos, resumir 1822 ao grito de dom Pedro é contar a história do Brasil a partir da perspectiva da passividade do brasileiro, um povo formado pelo encontro harmonioso das três raças. Assim, resumindo o bicentenário a imagem de Dom Pedro, o governo Bolsonaro demonstra a visão que tem da sociedade brasileira.
“Essa reivindicação dessa história mais tradicional, de você trazer símbolos como o coração de Dom Pedro, é na verdade dar ênfase à história do “herói”, à história que é feita pelos grandes homens e que não tem povo, que não tem indígena, que não tem homens negros, que não tem mulheres, né? Então assim quem faz a independência são os grandes homens, o Dom Pedro, José Bonifácio. Na cabeça do bolsonaro eles são os condutores.” (André Machado)
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