Copa do Mundo e festa de caboclos na Bahia

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na UFBA, com ilustração de Cau Gomez

Tolos são os que rejeitam a Copa do Mundo, reivindicando para si alguma austeridade, como se negar um evento que mobiliza milhões de pessoas pudesse servir como signo de distinção.

Como a tolice é democrática, os tolos estão por todos os lados, à esquerda e à direita, passando pelo centro.

Num país como o Brasil, onde o futebol é a coisa mais importante entre as coisas mais importantes, a Copa do Mundo representa uma possibilidade única de encontro.  É isso! No Brasil, Copa do Mundo é encontro.

Escrevo, hoje, a crônica de um encontro, crônica de Copa.

Aconteceu na Bahia, em Salvador, num bar do Pelourinho. Era segunda-feira, 2 de julho, dia de jogo da Seleção.

Tenho o hábito de assistir jogos de futebol em mesa de bar, sejam jogos do Flamengo ou da Seleção. Confesso, sem nenhum pudor, que gosto mais do Flamengo do que da Seleção. Gosto da Seleção também.

Gosto mesmo é de bar que tem cerveja gelada e samba. Se é quase certeza que todo bar tem cerveja gelada, pois do contrário não seria bar coisa nenhuma, o mesmo não pode ser dito para o samba.

Não é todo bar que tem samba. Acho criminoso o bar que não tem samba.

Fato é que o bar que escolhi pra assistir o jogo tinha cerveja gelada e samba. O samba começou forte e parou um pouco antes do apito inicial, quando os jogadores se perfilavam para cantarem seus respectivos hinos nacionais. Essa é a parte do jogo que menos gosto. Acho cafona, lembra quartel, escola. Passa rápido. Dá pra aguentar.

O bar tava cheio de gente vestindo o já tradicional verde e amarelo. Mas tinham muitos de vermelho também. Vermelho no jogo da seleção? Pra explicar, preciso falar um pouco sobre a Bahia.

Começo pelo 2 de Julho, feriado importante no calendário baiano.

É a “independência da Bahia”, que dizem os baianos ter acontecido antes da independência do Brasil. Tipo, primeiro ficou livre a Bahia e depois o restante da nação, que nem nação era ainda. Eu, que de bobo não tenho nada, não vou teimar com os baianos.

A Bahia ficou independente antes do Brasil e ponto final!

Feriado de 2 de julho é dia de festa religiosa. As imagens de um casal de caboclos são carregadas pela cidade.

As pessoas tocam nos caboclos, choram no pé da cabocla.

Já virou até gracejo aqui na Bahia. Quando o sujeito, ou a sujeita, reclamam muito da vida, o povo diz “Vai lá chorar no pé da cabocla”. Seria uma versão baiana pro “Não me encha a paciência com teus problemas”.

Eu não fazia a menor ideia por que um casal de caboclos é carregado num desfile cívico, de comemoração da independência. Mas como sou bom ouvinte, aprendi rápido: os tais caboclos representam os de baixo, os pobres que lutaram pela independência.

No cortejo dos caboclos tem de tudo: tem índio, milicos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, crente segurando a bíblia e querendo exorcizar os índios, manifestação política e por aí vai.

Por isso, no bar, o da cerveja gelada e do samba, tinha um monte de gente vestindo vermelho, com foto do Lula desenhada na camisa. A galera participou do cortejo dos caboclos e depois foi pro bar, assistir jogo e beber cerveja. Justo, coerente.

É que ser lulista na Bahia não é vergonha nenhuma. No Rio de Janeiro é diferente.

No Rio de Janeiro, Lula é rejeitado tanto por uma direita desavergonhada e decadente como por uma esquerda que se convenceu de que o Brasil se resume ao território compreendido entre o Leblon e a Tijuca.

Aqui na Bahia, não!

O povo veste vermelho, estampa a foto do Lula na camisa e vai assistir jogo da Seleção.

“Aqui tem um monte de gente do PT, né?”, disse pra mim, quase num sussurro, uma mulher que parecia beirar uns 60 anos. O tom foi meio cauteloso, como quem pisa leve em terreno desconhecido. Ela tava querendo saber qual era a minha, o que eu achava daquela vermelhada toda.

Respondi de bate-pronto, como se estivesse chutando uma bola: “Graças a Deus!”.

A mulher sorriu com ar de cumplicidade e respondeu mais ou menos assim: 

“Vou te contar uma coisa: eu também sou PT. Votei no Lula, votei na Dilma e vou votar no Lula de novo. Ele roubou, mas melhorou nossa vida. Antes do Lula davam leite pra gente, uma farinha pra misturar na comida dos meninos. Agora, com o Bolsa Família, a gente pode comprar um gás, um danone.”

Tem tanto sentido nessas palavras, tantas possibilidades de interpretação do Brasil, que pra não me perder nas ideias, organizo a reflexão em partes:

1º) A histeria anticorrupção que até aqui foi o fundamento semântico da crise parece não ecoar tanto na base da sociedade. O povo pobre, que vive de salário mínimo, está preocupado com a própria sobrevivência e disposto a votar em quem se mostrar mais favorável à garantia dessa sobrevivência. Nesse aspecto, Lula é imbatível. O povo tem inteligência prática, tem boa memória.

Na hora, até tentei dizer para a companheira que Lula não tinha roubado, que não existiam provas. Ela deu de ombros e continuou dizendo que não queria saber, que votaria nele assim mesmo. A moral é mais frouxa quando o estômago está vazio. Justo, coerente.

2°) O Bolsa Família foi a maior revolução social que este país já viu. Não que o Bolsa Família tenha inaugurado a assistência social aos mais pobres. Não mesmo!

Assistência social para os pobres existe desde que existe a pobreza.

A Igreja, o Coronel, o Estado, sempre tem alguém dando uma “ajudinha” aos mais pobres, seja por caridade cristã, penitência ou cálculo político.

Com o Bolsa Família é diferente e a minha amiga entendeu isso perfeitamente.

O Bolsa Família não é a farinha nutritiva, muito usada para combater a mortalidade infantil. O Bolsa Família é o dinheiro na mão do pobre, auxílio que chega pelo banco, através de política pública. Com o Bolsa Família, o pobre está empoderado, nem que seja um pouquinho, para escolher, para “comprar um gás, um danone”.

Com o Bolsa Família, pobre não depende da generosidade de pessoa física.

Por isso que parte das elites brasileiras, em sua maioria pessoas cristãs, caridosas, rejeita tanto o Bolsa Família. O Bolsa Família dispensa a caridade e gente tão ruim precisa, desesperadamente, do exercício da caridade para ingressar no paraíso cristão. Que queimem no inferno!

3°) Em nenhum momento minha amiga cogitou a possibilidade de não votar em Lula. O tempo inteiro, ela dizia: “Se Deus quiser, Lula vai voltar e ajudar a gente de novo”, numa espécie de sebastianismo preventivo, que se dá antes mesmo do desaparecimento total do salvador.

É claro que eu, pragmático por natureza, insisti, dizendo “talvez não dê pra votar nele, precisamos ficar atentos em quem ele vai indicar”. Outra vez, ela não deu muita bola, e continuou o mantra “Deus vai ajudar o Lula e ele vai voltar”.

É bonito, me emocionou. Com alguma ajuda das cervejas que já se acumulavam na minha corrente sanguínea, cheguei a marejar os olhos. Quando bebo fico mais sensível.

Confesso que também fiquei preocupado. Todos nós que acompanhamos a crônica política nacional, sabemos que a homologação da candidatura de Lula pelo TSE é quase impossível. A resistência da minha amiga em discutir uma alternativa, em pensar em outro nome, ainda que seja um nome chancelado por Lula, me deixou muito apreensivo.

A preocupação passou num instante, foi-se embora no mesmo pé em que tinha vindo. Eu tava ocupado demais pra pensar nos problemas.

Era início de tarde e os caboclos estavam animados, em festa.

Na Rússia, os caboclos chutavam bola com perícia de artista, dando uma aula de futebol. Nas ruas do Pelourinho, o casal de Caboclos passava, semeando a esperança no coração de gente tão sofrida. E no bar, ao meu lado, bem pertinho, a cabocla, com sua inteligência política prática, me ensinava a acreditar no improvável.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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