Contos de Yõnu

O livro de hoje é Contos de Yõnu, de Raquel Almeida. Nele, destacamos o pioneirismo da autora ao retratar mulheres negras e periféricas.
Contos de Yõnu

“Menina, você não deu trabalho nenhum, tem noção do que já vi e vivi nessa vida? Não quero saber por que você entrou aqui, por que bebeu o que não sabe beber, não quero saber de nada, assim como você eu sou mulher, sou vivida, já fiz isso aí que você fez e já fiz coisa pior (…) a única coisa que estava no meu alcance foi feita, não se justifique! A vida não justifica todas as porradas que dá na gente.” 

Raquel Almeida – Contos de Yõnu

Apaixonada! Essa é com certeza a melhor palavra pra descrever o sentimento de reler Contos de Yõnu, de Raquel Almeida (Edições Elo da Corrente, 2019).

Pois é. Eu já tinha lido e relido, mas peguei de volta pra escrever esse café com muriçoca e quase que não paro de reler o dito cujo. Pra ser sincera com vocês, reli até terminar tudinho. 

É que a literatura periférica tem um jeito próprio de ser, de se colocar no mundo. Pra fazer direito, é preciso vivenciar o caos de nossas vidas, mapear as dores e alegrias dos nossos corações, dominar nossa gramática, a geometria das nossas quebradas, nossos atravessamentos econômicos, raciais, emocionais e de espírito. E Raquel domina tudo isso e muito mais: seu verbo é envolvente, ela transita com maestria entre o português brasileiro e o pretuguês de nossas esquinas.

Mas Contos de Yõnu vai além ainda. Arrisco a dizer que é o primeiro livro nosso exclusivamente centrado nas figuras femininas que habitam nosso território periférico. Por suas páginas desfilam doze diferentes mulheres que são praticamente arquétipos de todas nós: a “loira”, a menina bem comportada, os diferentes tipos de esposas, mães e avós, as que bebem, as que vão pro arrebento, as estudantes, as que encontram o caminho da paz e as que jamais o encontram. São mulheres negras e periféricas jovens, adultas, idosas – batizadas com nomes africanos cujas simbologias prenunciam seu destino.

Nesse sentido, o livro é um tipo de inventário inédito, pioneiro, lindo e esteticamente perfeito.

Raquel Almeida – Composição com foto de Larissa Rocha

Daí vocês se perguntam: Mas será que vou falar assim de todos os livros que trago aqui nesta coluna?

Não… prometo que não. 

Mas também… há tanto ouro entre nós que fica até difícil apontar livro ruim.

Além do que… não vou falar mal dos nossos, das nossas, porque o que mais tem nesse mundo é livro ruim de gente branca medíocre. As críticas aos amigos e amigas, prefiro fazer no privado – não vou dar o gostinho de nos verem frágeis – nós, o povo que sustenta esse país, mas não recebe um mínimo de reconhecimento.

Raquel, minha querida, não posso mais pegar seu livro, porque se leio um conto, parto pro próximo e só acaba quando termina. Mas agradeço pela coragem de nos representar e fazer isso tão bem. Agradeço por se inspirar nas nossas vidas pra fazer sua arte. Agradeço por capturar nossa beleza e diversidade, por ter parido esse livro e ser quem você é: como Amondi, Sela e Mafunda – uma pessoa que abre caminhos, se joga nele e bota os pingos nos is da sua própria vida. Você é como Maria Padilha:

(…) não mostra, mas tem asas, asas livres que batem ao encanto de outros mundos, e em todas as suas ações tem gotas exageradas de independência. É o corpo, a voz, a alma da mulher poderosa, da que tem o poder de fogo nas mãos. Ela sim tem o poder, ela sim gira na encruzilhada, ela sim dá gargalhadas e faz o mundo a seus pés se curvar. (ALMEIDA, 2019, p.109)

Por último, deixo mais um trechinho aqui do conto Sela, que conta um pouco da história dessa que se tornou a Dona da vila, nela impõe ordem e em nenhuma hipótese permite agressão às mulheres:

“O caminho ia sendo tingido de sangue, havia sangue em suas mãos, não só daquele cara, sangue de tantos outros que passaram pelo mesmo, sangue na sua cabeça que ela perdia quando se tratava de agressão, e como, na época, não existia lei que protegesse as mulheres, ela era a lei. Ainda deu pra ouvir alguns gemidos seguidos de dois disparos secos, e a vizinhança foi tomando o rumo das suas casas, ela desceu o morro com um baseado aceso, gritou do alto da sua lei cumprida: Mais alguém?! Ninguém mais estava na rua, se fez silêncio.” (ALMEIDA, 2019, p85)

Almeida, Raquel. Contos de Yõnu. São Paulo: Edições Elo da Corrente, 2019. Para falar com a autora ou comprar seus livros: Escreva para [email protected] NAS REDES: @rakaalmeida


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) Zero a zero: 15 poemas contra o genocídio da população negra (2015) e Horas, Minutas y Segundas (2022), entre outros. 

Nas redes: @dinhamarianilda

LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:

Denegrindo minha imagem

Manual para minhas filhas organizarem a luta

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

A poeta e o monstro

A poeta e o monstro

“A poeta e o monstro” é o primeiro texto de uma série de contos de terror em que o Café com Muriçoca te desafia a descobrir o que é memória e o que é autoficção nas histórias contadas pela autora. Te convidamos também a refletir sobre o que pode ser mais assustador na vida de uma criança: monstros comedores de cérebro ou o rondar da fome, lobisomens ou maus tratos a animais, fantasmas ou abusadores infantis?

110 anos de Carolina Maria de Jesus

O Café com Muriçoca de hoje celebra os 110 anos de nascimento da grande escritora Carolina Maria de Jesus e faz a seguinte pergunta: o que vocês diriam a ela?

Quem vê corpo não vê coração. Na crônica de hoje falamos sobre desigualdade social e doença mental na classe trabalhadora.

Desigualdade social e doença mental

Quem vê corpo não vê coração.
Na crônica de hoje falamos sobre desigualdade social e doença mental. Sobre como a população pobre brasileira vem sofrendo com a fome, a má distribuição de renda e os efeitos disso tudo em nossa saúde.

Cultura não é perfumaria

Cultura não é vagabundagem

No extinto Reino de Internetlândia, então dividido em castas, gente fazedora de arte e tratadas como vagabundas, decidem entrar em greve.

Macetando e nocegando no apocalipse

Macetando e nocegando

O Café com Muriçoca de hoje volta ao extinto Reino de Internetlândia e descobre que foi macetando e nocegando que boa parte do povo, afinal, sobreviveu ao apocalipse.