Conclusão que não encerra

por Helena Palmquistconclusão da Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Antropologia, pelo Programa de PósGraduação em Antropologia, da Universidade Federal do Pará. 

A conclusão de um trabalho que traz no título a palavra persistência deve, por um mínimo de coerência, reconhecer, de início, a impossibilidade de encerrar as questões trazidas. Desse ponto parto para tentar, na impossibilidade de um encerramento, expor o que ficou mais evidente nas páginas anteriores como elementos do genocídio e do etnocídio contra os povos indígenas. Seria possível propor uma sistematização e até uma taxonomia, a partir do que constatei aqui, mas evito deliberadamente tais métodos, por considerar que reforçariam a busca por uma materialidade do genocídio e do etnocídio, que é tão característica dos documentos que analisei e, no entanto, como espero ter demonstrado, foi incapaz de impedir que o complexo do genocídio e do etnocídio continuasse ativo e fazendo incontáveis vítimas. Incontáveis mesmo: o maior esforço governamental de contabilizar as vítimas indígenas provocadas pela corrupção no SPI e pela política de integração da ditadura militar no Brasil, que foi o estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade em 2011, chegou em 2014 a um número de mais de 8 mil indígenas mortos que a própria CNV reputa parcial e arbitrário.

No lugar de uma sistematização que acredito estéril, levar a sério, analisar a fundo e torcer a ótica, para sair dos entendimentos que não-indígenas constroem sobre etnocídio e o genocídio e fazer a escuta sensível do que os indígenas entendem sobre essas violências persistentes, me parece que sejam as melhores estratégias para uma tentativa de introjetar no entendimento não-indígena os discursos indígenas sobre genocídio e etnocídio. Enquanto os povos indígenas permanecerem longe demais do Brasil, politicamente – na academia como nos poderes estatais constituídos – relegados a essa ideia de pertencerem ao Brasil profundo, tributária da construção imaginária de índios como humanos naturais, o complexo genocida e etnocida persistirá.

A ideia de um Brasil profundo, onde são colocados indígenas, ribeirinhos, camponeses, quilombolas, sertanejos, ribeirinhos, beiradeiros, pescadores, sem-terra, peconheiros, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros, castanheiros, cria a oposição com um Brasil raso, simples, luminoso, reto, puro, linear, portador da urbanidade, capitalista, consumidor, técnico, industrial, asséptico, acelerado. Cria uma oposição entre os rápidos, perfumados, vestidos de acordo com os códigos de vestimenta dominantes, aceitáveis em qualquer salão do mundo moderno, ágeis, assinando documentos, fora da natureza porque conectados com a modernidade; e os lentos, que observam o movimento das águas e vivem de acordo com o pulso de inundação das florestas, que não podem ter pressa porque pertencem ao território e às suas águas, porque se movem conforme o tempo das marés e da vida, sujos de terra, de folhas, de minhocas e cheirando a pitiú, conectados com a natureza. Quando os sujos de terra irrompem a modernidade com suas demandas, reivindicando direitos, pedindo o reconhecimento da lei não-indígena para suas demandas, o reconhecimento da brutalidade histórica da sociedade não-indígena, são tratados como menos indígenas, menos naturais, e ameaçados com critérios de indianidade e aculturação. O índio que toma coca-cola, usa calça jeans e tem celular é uma imagem que se ativa sempre para diminuir reivindicações sobre o direito à terra e ao território, que permite uma atualização permanente da “emancipação” proposta pela ditadura. Foi o indígena que Belo Monte e a Norte Energia enxergaram em Altamira, com base em 30 mil reais e muitas mercadorias por mês, um indígena modificável, pronto a se tornar um trabalhador, um pobre que precisa receber auxílio estatal.

Temos então que os povos indígenas podem ser agredidos por toda sorte de violência etnocida e genocida mas, enquanto suas demandas forem consideradas exóticas e distantes, pertencentes ao Brasil profundo, ninguém sofrerá as consequências. O que não quer dizer que os povos da terra não possam e devam irromper na modernidade com suas demandas, pelo contrário, é a força da resistência indígena que vem obrigando examinar tais questões. É aqui que deve entrar a crítica sobre como temos feito esse exame. Provocados pela resistência indígena, acadêmicos que estudam genocídio estão questionando a aplicação das bases legais desse crime que, mesmo previsto na Convenção, nunca teve aplicação concreta sobre a vivência dos povos indígenas. A comparação entre números de vítimas de processos genocidas e a separação entre agressões biológicas e físicas e agressões cosmológicas e ontológicas é particularmente danosa para os casos que tem como grupos oprimidos – na definição canônica de Lemkin – povos e comunidades indígenas e tradicionais, para os quais tais separações e comparações fazem pouco ou nenhum sentido e até mesmo constituem uma forma de violência em si.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ultrapassar a separação entre etnocídio, genocídio e ecocídio, encará-los como partes de processos de destruição híbridos de violências físicas, biológicas e culturais. Assim como as epidemias e a fome se combinam, o esbulho territorial e os projetos de desenvolvimento também. Assim como a propaganda governamental e o racismo institucional se combinam como motivadores de processos genocidas e etnocidas, também a fraude e a corrupção de agentes estatais e privados. Assim como epidemias e violências se combinam, esbulho territorial e desenvolvimento também. Os planejamentos de desenvolvimento nacional, pensados para territórios de ocupação indígena vem provocando genocídio e etnocídio quase sem exceção ao longo do século XX, persistindo no século XXI. O reconhecimento de responsabilidades não existe, porque a invisibilidade de tais povos e de suas ontologias próprias – uma forma eficaz em si de etnocídio – permite que sejam considerados, em processos de licenciamento, como atingidos que estão sendo beneficiados pela mudança de vida, mesmo ela tendo sido imposta sem consulta de qualquer espécie, muito menos as formas de consulta previstas na legislação internacional.

Ao longo das páginas desse trabalho pude enumerar como vários componentes se combinam em todos os casos expostos, para promover agressões genocidas e etnocidas: epidemias e grandes mortandades, provocadas pela deterioração de condições sanitárias, escasso acesso a saúde, desastres e danos às condições ambientais do território, mudanças ou escassez alimentar, limitação a práticas médicas locais; exploração do trabalho indígena como consequência de esbulho territorial e remoções forçadas; proibição ou limitação do uso da língua e costumes, interferência em práticas religiosas, violação de locais sagrados; sequestros de crianças, torturas, sevícias, estupros; assassinatos e desaparecimentos forçados de lideranças indígenas, repressão, cooptação e criminalização do movimento indígena.

Pode-se apontar a necessidade de que os estudos sobre genocídio indígena procurem se debruçar mais detidamente sobre os pontos de vista dos próprios povos indígenas a respeito desses processos que viveram. Muito se fala na necessidade de produção de memórias como essencial para a superação de situações de violação sistemática de direitos humanos, mas é necessário que a perspectiva indígena e as consequências cosmológicas dessas violações sejam tratadas com mais detalhe, para que seja compreendida a total extensão dos danos de políticas etnocidas. Os massacres do desenvolvimento, no Putumayo, nos territórios Guarani e Kaiowá, nos territórios Ava Guarani, Xetá, Parakanã, Cinta Larga, Yanomami ocorreram, sem exceção, em um contexto de políticas etnocidas. A capacidade de negociação, mediação, resistência e denúncia dos povos indígenas atingidos por tais políticas muitas vezes encontra como resposta a indiferença do Brasil não-indígena, mas outras vezes encontra mais violência; a força desses povos revela toda a pobreza ontológica das políticas de desenvolvimento.

 

 

 

 

 

 

 

 

A separação operada pelos interpretadores do direito internacional, entre genocídio físico e cultural, é, em si, uma violação ontológica aos povos indígenas, porque a separação entre as violências cometidas contra a cultura, contra o meio ambiente e contra as pessoas não são separáveis para esses povos. A separação não faz sentido e os recentes avanços no debate dos direitos da natureza, reconhecidos em processos judiciais – fora do Brasil – e até na Constituição do Equador, representam uma forma de dar reconhecimento jurídico às demandas dos povos indígenas. Mas no que toca a legislação sobre genocídio, principalmente em território brasileiro, os debates são ainda recentes. Espero ter contribuído um pouco no presente trabalho.

Dissertação Helena.pdf :

 

http://ppga.propesp.ufpa.br/ARQUIVOS/Disserta%C3%A7%C3%B5es%202018/Dissertacao%20Helena.pdf

 

*edição por helio carlos mello – Jornalista Livre.

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