COMO SERÁ O DIA SEGUINTE?

 

 

ARTIGO

Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes, do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense

 

            Em quase tudo que faço, preocupa-me como será o dia seguinte. Não adianta realizar grande feito sem avaliar as consequências. O futuro, feito de abstração, fica longe demais. Mais que isso, é rebelde e vadio, e estou farto de tentar arrancar dele qualquer previsibilidade. O dia seguinte, não. O dia seguinte é logo ali. Ainda que também seja inesperado, sobretudo em um país que é vocacionado a surpresas desagradáveis, é mais seguro especular a seu respeito do que fazer longas digressões sobre um porvir edênico, para os otimistas, ou apocalíptico, para os pessimistas. Perguntar como será o dia seguinte mantém nosso pé no chão. Ele é próximo demais para alimentar grandes (des)ilusões.

            Vamos imaginar que Bolsonaro caiu. Não sei como caiu. Há muitas formas de cair e todas elas me convêm. Sei que ele vai cair um dia, e torço para estar vivo quando isso acontecer. Torço para que caia logo, de qualquer maneira, porque Bolsonaro é sujeito ruim. Ele é mau. Ele não se importa com a vida. Ele desdenha os mortos. Ele se diz cristão e faz o contrário do que reza o cristianismo. É tanta maldade que consegue até enganar quem não é como ele. Os brasileiros outorgaram a uma pessoa cruel e sádica os poderes necessários para praticar a crueldade e sadismo. Mas tudo passa, e ele passará. Como será o dia seguinte?

            O dia seguinte pode ser de pura euforia. Com ou sem coronavírus, pessoas decidem ocupar as ruas comemorando a queda do fascista. A alegria pode ser tanta que, por decreto ou não, vai parecer feriado nacional. Naturalmente, muita gente vai se doer. Alguns vão chorar a derrocada do ídolo. Talvez decidam ir às ruas se o medo de represálias não for maior que o luto. Pode ser que façam o perfeito oposto do que fazem hoje e fiquem em casa. Pode ser que, simplesmente, nada aconteça. Pode ser que acordemos tarde e tomemos café sonolentos. Pode ser que respeitemos religiosamente a rotina, como se nada tivesse acontecido. Pode ser que faça sol, pode ser que o tempo feche. O dia seguinte pode ser excepcional ou banal.

            No dia seguinte, muitos vão querer saber o que se dará no governo. Pode ser que o vice-presidente assuma. Assumindo, pode optar por moderação, dissimulando o caráter que Bolsonaro, por absoluta falta de opção, não conseguiu dissimular. Pode ser que ele seja ainda mais austero, pois sabemos que o Brasil aprendeu a piorar o que já parece deveras ruim. Alguns podem olhar o novo presidente com desconfiança; outros podem nele depositar suas utopias mais belas. O dia seguinte pode ser dos realistas ou dos inocentes. No dia seguinte, podemos ter o ânimo altivo pela vitória conquistada ou o cansaço de perceber que a luta não termina nunca. No dia seguinte, caso cassada a chapa, pode assumir o presidente da Câmara dos Deputados, que não sabemos quem será. Pode-se começar a falar em eleições diretas ou pode-se deixar tudo como está, apenas esperando passar o tempo para que as pessoas votem novamente.

            No dia seguinte, pode ser que sejamos tomados pela conclusão que derrubamos um fascista sem derrubar o fascismo. Afinal, o fascismo não é só bravata e discursos autoritários, mas prática política. Foi o fascismo que emplacou essa cruel reforma da previdência. Foi o fascismo que jogou no lixo várias conquistas históricas dos trabalhadores. Foi o fascismo que nos colocou no abismo da Terra Plana e nos fez sentir vergonha do acaso de migrações que fez com que nossas mães nos parissem por aqui. Foi o fascismo que ignorou o racismo, que fechou os olhos para os Direitos Humanos, que nos privou da esperança, que nos fez desconfiar de quem é próximo, que rompeu amizades de longa data, que nos tornou objeto de descrédito internacional, que trouxe de volta à luz doenças outrora erradicadas, que tirou de nós parentes que não pudemos nem mesmo velar, que promoveu genocídios e ignorou os massacres cotidianos. No dia seguinte, muitos de nós vão querer que tudo isso seja passado a limpo; outros vão defender que viremos a página e sigamos adiante sem lavar com álcool em gel nosso déficit civilizatório.

            No dia seguinte, muitos do que ajudaram a derrubar Bolsonaro fecharão os olhos para seus malfeitos. Eles dirão que há um bem em todo mal, e que nem tudo deve ser desprezado. No dia seguinte, parte dos 70%, que alegam ser todos nós, falarão que não devemos nos apegar ao passado, como se o dia de ontem não fizesse mais qualquer diferença. Afinal, como se diz por aí, Hitler foi cruel, mas recuperou a economia de uma Alemanha falida, ainda que a nossa esteja cadavérica. Serão eles que, de modo oportunista e sorrateiro, após terem se apoiado em nossos ombros, nos olharão com desdém e farão o possível para mudar tudo sem alterar nada. E nós ainda ficaremos felizes, pois aparentemente conquistamos alguma vitória.

            Pudesse viver o eterno presente, gozando a derrota do fascista, o futuro seria perfeito. O problema é que sempre há o dia seguinte. E, para que o dia seguinte não siga me decepcionando, não posso acolher democratas de ocasião com as portas abertas, esses cínicos que falam de união em um país desunido, que defendem a Constituição por conveniência, que lavam suas mãos após terem ajudado a cimentar nossas tragédias cotidianas. Queria não me preocupar com o dia seguinte, mas não sou gado para comer, regurgitar, dormir e comer novamente, como se o tempo fosse escravo de minhas necessidades ordinárias. É por causa do dia seguinte que não me vergo diante de discursos baratos que apostam na febril necessidade de expurgar o mal sem se livrar da maldade. Não é com eles que quero estar no dia seguinte. É só por isso que, hoje, convivo apenas com quem pode qualificar minha biografia. Não divido a mesa com porcos porque tenho apreço pelo futuro, e o futuro está logo ali. O futuro é o dia seguinte.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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