Como o Ministério Público precisa atuar para defender o interesse público?

Encontro Nacional do Ministério Público sobre Apoio Comunitário, Combate à Fome e à Pobreza no Palácio das Artes - Divulgação MPMG

Por frei Gilvander Moreira

O Artigo 127 da Constituição Federal de 1988 diz que a missão do Ministério Público (MP) é defender os interesses sociais, mas como o Ministério Público precisa atuar para, de fato e sem contradições, defender o interesse público? Com esta pergunta na mente, participamos no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, MG, nesse 26 de agosto, o dia inteiro, de um Encontro Nacional do Ministério Público sobre Apoio Comunitário, Combate à Fome e à Pobreza, no qual se deu o lançamento do Grupo Nacional de Apoio Comunitário, Inclusão e Participação Sociais, Combate à Fome e à Pobreza (GNA-Social). 

Participaram centenas de lideranças populares, promotores de Justiça, procuradores do MP, o ministro Wellington Dias, do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) do Governo Lula, um desembargador do TRF6, recentemente criado em Minas Gerais. Foi muito bom o Encontro, que teve a finalidade de celebrar os 15 anos do CAO-CIMOS e oferecer subsídios teóricos e práticos para a ampliação e aprofundamento do trabalho da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais (CIMOS), do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. 

Todas as comunidades não apenas atingidas, mas golpeadas, violentadas e brutalmente injustiçadas pelos grandes projetos do capital – mineração e agronegócio com as monoculturas -, reconhecem com gratidão o importante trabalho que o Ministério Público está fazendo através da CIMOS no Estado de Minas Gerais, contribuindo na organização de muitas Comunidades e viabilizando acesso ao sistema de Justiça. A desorganização social é um grande empecilho na luta por direitos e pelo bem comum. Promover a união e a organização de base nas comunidades é imprescindível para o êxito das lutas populares por direitos. Luta por direitos tocada apenas por lideranças populares só conquista migalhas. Promotores de Justiça atuando sem ouvir atentamente as comunidades não conquistam justiça, apenas migalhas, na melhor das hipóteses.

Urge combatermos o individualismo e o vírus da ideologia dominante que incutem em muita gente desejos artificiais de consumismo e a crença idolátrica de que lutar sozinho tentando à exaustão “subir em um pau de sebo” para adquirir dinheiro que o leve à ser mais um da pequena burguesia. Enquanto a maioria do povo acredita na ilusão de que sozinho, em luta individual, a pessoa superará as injustiças que sofre, o sistema capitalista segue como uma brutal máquina de moer vidas reproduzindo desigualdade, violência e concentrando poder, terra e renda nas garras de 1%, a elite que se banqueteia à custa do sangue do povo e da natureza, que é sagrada e tem direitos que precisam ser respeitados. O ministro Wellington diz disse que no Brasil, com população de 220 milhões de pessoas, há mais de 91 milhões de pessoas no Cadastro Único para Programas Sociais – CadÚnico. 

Ancorando-se no Princípio da Fraternidade da Revolução Francesa, mas esquecido, o desembargador Dr. Gregore Moura, do TRF6, teceu inúmeras críticas ao Poder Judiciário brasileiro e alertou que o direito, como está estruturado e sendo praticado, é para manter o status quo opressor, é a institucionalização da violência. Não podemos esperar que judicializando os conflitos se conquistará justiça. O Poder Judiciário está inchado com 80 milhões de processos em tramitação, sendo 39% dos processos de execuções fiscais. Este inchaço leva à lentidão das decisões judiciais e “decisão judicial lenta gera injustiça”. O Poder Judiciário no Brasil custa muito para o povo: em média cada pessoa paga R$ 437,47 por ano para sustentar o Judiciário. No Brasil há também uma inflação legislativa com milhares de leis passíveis de várias interpretações, que levam a discutas judiciais infindáveis, pois toda norma gera várias interpretações. Conclusão: esperar justiça do Judiciário é acreditar em ilusão. 

É louvável a atuação de uma minoria de promotores e procuradores do Ministério Público, os que têm compromisso com a defesa dos direitos humanos, sociais e ambientais fundamentais. Entretanto, não é justo o Ministério Público com braço de ferro denunciar e empurrar para detrás das grades uma massa de pessoas negras e periféricas. Por que não se segue a criminologia defendida por Eugenio Raúl Zaffaroni, jurista e magistrado argentino, que propõe imputar ao Estado parte da pena de um criminoso pelos direitos que foram negados a ele antes de ele cometer um crime, sendo que na maioria das vezes o jovem é empurrado para o crime pelas violações de direitos que sofre desde o ventre materno? Cumprir a missão de “defender o interesse social”, missão do Ministério Público, é contraditório com promover o encarceramento de massa, cerca de 800 mil presos nas prisões brasileiros, modernos campos de concentração, onde se viola a dignidade humana e se tortura de muitas formas. Uma pesquisa de criminologia negra apontou que, salvo exceções, os presos são quase todos negros de periferia e apenas 60 presos têm pelo menos um curso universitário. 

Neste contexto, é evidente que quem espera justiça via Judiciário pode esperar sentado para não se cansar. As reflexões do Encontro apontaram para a pertinência de se priorizar a conciliação em processo de negociação com auxílio de Assistências Técnicas ‘Independentes’. Entretanto, conciliar negociando, sim, mas como? Abrindo mão de direitos? Limitando direitos para pôr fim a demandas judiciais sem fim?

A experiência das Comunidades submetidas a atroz violência está demonstrando que negociação sem processo de lutas populares concretas e cada vez mais massivas não levam a decisões justas. Ao contrário, tem levado à conquista apenas de migalhas e à amputação de direitos, como foi o caso do Acordão sobre o crime-desastre causado pela mineradora Vale no caso do rompimento da barragem em Córrego do Feijão em Brumadinho, MG. Acordão celebrado à portas fechadas entre a mineradora Vale S/A, o Governo de Minas Gerais, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, os Ministérios Público estadual e federal e Defensoria Pública de Minas, com aval da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Diante das insistentes reclamações dos/as atingidos/as de que estavam excluídos do processo de negociação, a Defensoria Pública da União (DPU) se negou a assinar o Acordão. Postura ética e justa esta da DPU. Resultado do Acordão: as comunidades atingidas, melhor dizendo, golpeadas e violentadas pelo crime brutal da Vale S/A em Brumadinho ganharam poucos recursos, o governador Zema e dezenas de deputados/as da Assembleia Legislativa viabilizaram suas reeleições, pois distribuíram muito dinheiro para todos os/as prefeitos/as de Minas Gerais para fazerem obras eleitoreiras e com isso conquistarem reeleição também.

Grande parte do valor do Acordão foi aplicada em obras em várias regiões de Minas Gerais, fora das comunidades atingidas. E a mineradora Vale S/A limpou sua imagem ensanguentada diante dos acionistas e poucos meses depois estava lucrando um valor várias vezes maior do que o que ela pagou no Acordão. Pior! O governador Zema, com dinheiro sujo de sangue do crime da Vale, está impondo com uma série de ilegalidades o projeto de se construir um “rodoanel” na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), que será de fato um Rodominério, infraestrutura para a própria mineradora Vale continuar ampliando mineração em BH e RMBH, o que é insuportável socioambientalmente diante do crescimento da população de BH e RMBH que está quase chegando aos seis milhões de habitantes, da emergência climática e da gravíssima crise hídrica que cresce a cada dia. 

Ao ouvir as palestras durante o Encontro, fiquei me perguntando: se o Poder Judiciário via de regra contribui para a reprodução das injustiças e violências, decisão judicial injusta deve ser cumprida? Aprendi em quatro anos do curso de Teologia e em quatro anos de mestrado em Exegese e Hermenêutica Bíblica que Jesus Cristo, mestre inspirador das pessoas cristãs, não respeitava leis e normas injustas. Curava no sábado, o que era proibido (Lc 14,1-6). Tocava em doentes e os curava (Lc 4,40), o que era proibido pela lei da pureza. Com os discípulos comeu em uma lavoura alheia para matar a fome em dia de sábado, o que era proibido pela Lei Judaica (Lc 6,1-5) etc.. 

É óbvio que para se conquistar direitos socioambientais em um país como o Brasil, o 7º mais desigual do mundo, com um judiciário organizado para reproduzir as violências e as desigualdades e majoritariamente composto por homens brancos da classe dominante, desrespeitar decisões judiciais injustas se tornou um direito como caminho para se conquistar justiça. O povo violentado não pode baixar a cabeça diante de decisões injustas, mas manter a cabeça erguida e seguir lutando coletivamente por direitos recorrendo no sistema judiciário até ao Supremo Tribunal Federal e, se necessário, às Cortes Internacionais e, em último caso resistir na luta até a vitória. Tomás de Aquino e outros filósofos nos ensinam que diante de tirania a resistência é justa e necessária.

O Ministério Público precisa ampliar a CIMOS e priorizar atuar preventivamente diante do anúncio de grandes projetos do capital, em vez de correr atrás do leite derramado ou ficar remendando o estrago brutal que os grandes projetos fazem nas comunidades e a todos os seres vivos da biodiversidade. Agir de forma PREVENTIVA, exigindo respeito às Comunidades e aos Territórios, é medida necessária. Exigir, inclusive judicialmente se for necessário, que se faça Consulta Prévia, Livre, Informada, Consentida e de Boa-fé às Comunidades Tradicionais.

O estado de Minas Gerais não pode continuar sendo arrasado como uma Faixa de Gaza por governos que governam como vassalos das mineradoras e dos empresários do agronegócio com suas monoculturas violentamente devastadoras do meio ambiente e do modo de vida camponês. A emergência climática com os eventos extremos, as queimadas, seca na Amazônia… são gritos ensurdecedores da mãe Terra sendo sacrificada no altar da idolatria do mercado capitalista. Feliz quem se compromete com a preservação do que ainda existe de natureza e se empenha em reflorestar como os/as agroecologistas estão tentando nos ensinar! Os indígenas e os Povos Tradicionais são guardiões das florestas, das matas, dos cerrados… Que o Deus da vida, invocado sob muitos nomes, nos guie na missão de impedir a “queda do céu” – como nos alerta o xamã Davi Kopenawa -, que será a extinção da humanidade por destruição das condições objetivas de vida na nossa única casa comum, o planeta Terra. 

27/8/2024

 1 Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese e Hermenêutica Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Lutas Populares. E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –     Facebook: Gilvander Moreira III

2 Tribunal Regional Federal da 6ª Região, sediado em Belo Horizonte, MG.

Obs.: As videorreportagens no link, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – Urgente! NASA mostra a mãe Terra sendo sufocada pelo capitalismo e agonizando. Ecologia e Marxismo

2 – Capitã Pedrina: “Acordão é desgoverno, é desrespeitos aos atingidos/as. Reverenciamos a natureza.”

3 – Acordão é excelente para a Vale S/A, ótimo para o Governo de MG e péssimo para os atingidos/as em MG

4 – Sem-Terra/Acampamento Nova Esperança 2, Córrego Danta, MG, produzindo alimentos saudáveis. Vídeo 1

5 – Ezequiel: “Quem não denuncia o injusto, cúmplice é!” – Frei Gilvander – Mês da Bíblia/2024 -Vídeo 4

6 – Frei Gilvander: “Trem da Vale S/A lotado de minério, trem da morte. Veias abertas de MG arrasada!”

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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