Como fazer arte numa cidade em que o embrutecimento é a palavra de ordem do poder?

Por Filipe Brancalião*, especial para os Jornalistas Livres

⁠⁠⁠⁠⁠A Cidade de São Paulo vem atravessando dias sombrios no que tange às políticas públicas na área da cultura. Construídos ao longos dos anos, com a participação da classe artística e da sociedade civil, diversos programas e leis estão sendo desmontados pela atual gestão.

O ataque desmancha os editais de fomento à pesquisa, criação e circulação artística e hoje, mais especificamente, minou também os projetos de formação.

Nesta hora de tristeza, recorro ao filósofo francês Jacquès Rancière e me lembro de suas formulações no espaço entre política, arte, filosofia e educação. Me lembro do binômio por ele proposto: emancipação e embrutecimento e me pergunto: Como fazer arte em uma cidade em que o embrutecimento é a palavra de ordem do poder instituído? Como conduzir processos formativos quando somos calados sob o argumento de que foi vontade das urnas?

A política emerge quando aqueles que se vêem lesados em seu direito de fala e participação nos rumos do convívio público proclamam sua igualdade e reivindicam para si o espaço que lhes é devido.

Igualdade aqui entendida como atribuição básica de todo ser humano, capaz de falar, argumentar e, em conjunto, determinar os caminhos da convivência pública.

Fala aqui entendida como possibilidade de expressão das divergências, dos pontos de vista, das visões de mundo. Divergências essas não necessariamente mediadas pelo cronômetro de uma casa legislativa ou de uma instituição do poder executivo, mas presentes na Ágora, no espaço público da visibilidade, que coloca aquele que fala como agente na teia das relações humanas.

Há dias venho assistindo as ações de governo de João Dória, o prefeito de São Paulo, e seu séquito na área da cultura – como o secretário André Sturm, a diretora da Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA)  Luciana Schwinden e a nova assessora de dança Lara Pinheiro -, propagarem que escutam, que trabalham e que o resto é mimimi.

Ora, não percebem a contradição em seus discursos?

O diálogo político se faz na igualdade de fala e portanto, acusar ao seu diferente de mimimi é justamente colocá-lo no lugar de um animal ambulante, incapaz de articular o pensamento e expressar visão de mundo, relegado aos mugidos de dor e gemidos de prazer.

Acusar àqueles que divergem de fazerem mimimi mina a possibilidade de qualquer diálogo pois reduz os interlocutores a qualquer coisa diferente do humano.

Pois bem, essa ação também têm resultados.

O secretário de cultura André Sturm já postou vídeos acusando a classe artística de ações violentas na obstrução da saída da Secretaria Municipal de Cultura.

Ora, não percebe ele que a possibilidade de diálogo já havia sido recusada por ele horas antes, quando informou as medidas jurídicas que impediriam a recontratação de 336 artistas da cidade em um programa público? Quando inviabilizou a continuidade de processos artísticos e pedagógicos por toda a cidade? Quando cancelou e propôs a redução da verba destinada ao cumprimento de uma lei que prevê a pesquisa e criação em dança? Quando feriu a gestão democrática da Escola de Iniciação Artística e colocou lá uma interventora que quer implementar o “seu” projeto, sem reconhecer que entra em uma escola que já carrega consigo 30 anos de história?

Onde estava o direito a igualdade de fala e participação na construção das políticas públicas de interesse da cidade e de seus cidadãos? Onde estava o diálogo quando os anos de luta e construção conjunta entre poder público e sociedade civil foram ignorados?

Juridiquês nunca foi nem nunca será política. A judicialização do espaço público não vê pessoas, apenas papéis e documentos, não lê história, apenas autos em um processo que determina as normas a serem cumpridas e exclui o debate, o confronto de visões de mundo e pluralidade como marca do humano.

Ao nos calarem e garantirem apenas para si o direito à determinação das políticas públicas, a prefeitura e a secretaria de cultura nos coloca na condição de animais que apenas emitem grunhidos. Ao colocar nós, artistas, na condição de meros ouvintes, seres não dotados do direito à fala, Sturm e seu séquito condicionam o mugido de dor, já que nos tiram o espaço de expressão e trabalho, o urro de raiva, já que nos impedem de exercer o ofício, nos convocam eles próprios à desobediência civil!

Afinal, se só podemos ouvir e não falar, não somos mesmo capazes de entender. Assim, se não somos civilizados o suficiente a ponto de podermos participar das determinações do espaço público, o que nos resta???

*Filipe Brancalião é ator e diretor do Teatro do Abandono e pedagogo do teatro. Atuou no Programa Vocacional como artista orientador e coordenador artístico-pedagógico de 2004 a 2014.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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