Como as terras públicas de Alter do Chão estão sendo vendidas de forma escancarada

Parte significativa dos 1.267,75 hectares de Alter do Chão, que foram queimados em 2019, passou a ser loteada desde então
Foto: Maihara Marjorie / MídiaNINJA
Foto: Maihara Marjorie / MídiaNINJA

A Amazônia Real investigou que parte significativa dos 1.267,75 hectares de Alter do Chão que foram queimados em 2019 passou a ser loteada desde então. A venda de lotes ocorre de forma escancarada em redes sociais ou por meio de cartazes espalhados pela PA-457, estrada que liga Santarém à turística vila conhecida como o “Caribe Amazônico”. Esta história, dividida em duas reportagens, revela a existência de uma rede de grilagem de terras públicas que avança em ritmo acelerado sobre a mesma área incendiada que foi palco da criminalização de brigadistas que lutavam para preservar Alter do Chão.

Por Maria AlvesAmanda Lima e Mário Rodrigues, da Amazônia Real

Santarém (PA) – “Essa rua aqui, eu abri ela primeiro no manual. Toda ela. Contratei cinco caras e eles abriram na enxada”, revela, sem cerimônia, Alexandre Mendonça Silva, apontando para um ramal de 10 metros de largura que se estende por um quilômetro. A destruição ocorreu, em novembro de 2021, nas cercanias de uma via que liga a praia de Ponta de Pedras à estrada estadual PA-457. O jovem santareno tinha começado a trabalhar havia pouco como corretor informal, mas seus negócios já iam de vento em popa.

Em ambos os lados do ramal, placas numeradas marcavam a divisão de 82 lotes de 40 por 12 metros que Silva vendia por 4 mil reais cada – podendo ser pagos por meio de uma entrada de 300 reais e parcelas de 250 reais. Pela planta que o corretor mostrava, a maior parte do Loteamento Cajual já havia sido vendida. Em outro ramal aberto mais adiante na estrada para a praia, e recortado pela mesma quantidade de lotes, os valores eram mais elevados: entre 6 mil e 8 mil reais. 

“Eu estou atrás de comprar mais áreas, mas aqui não está tendo mais, está tudo vendido, o pessoal está tudo loteando. Aqui pra trás tem sete loteamentos, tudo vendido”, explica.

Para desvendar a grilagem de terras em Alter do Chão, a equipe da Amazônia Real simulou interesse na compra de algum lote, como um cliente qualquer. A área em questão, conhecida como Capadócia, fica dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) Alter do Chão e é composta por terras da União. A maioria delas faz parte do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Eixo Forte.

Muitos compradores vêm de longe. “Santa Catarina, Rio Grande do Sul, até para franceses, eu vendi”, conta o corretor Alexandre Mendonça Silva. De acordo com ele, os interessados dizem que vão construir casas de veraneio ou pousadas. No melhor estilo vendedor, o jovem santareno advertia que o preço dos lotes oferecido era “promocional”, e logo iria aumentar, uma vez que a demanda só crescia.

“Quando passar o asfalto, aqui vai valorizar. Também vão querer construir a orla de Ponta de Pedras. A energia elétrica já, já vai passar aqui na estrada, aí é só vocês juntarem com outros donos de lotes e pedir pra concessionária. Ela fica obrigada por lei a fornecer quando tiver quarenta pedidos de instalação”, ensina. 

A comercialização de terrenos em Alter do Chão é livre de burocracias, mas uma aposta no escuro. O vendedor passa apenas o recibo de compra e venda registrado no cartório. “No momento aqui não sai o título definitivo”, admite o corretor Silva. “O Incra tem o domínio dessa área aqui, ela é área da União. Mas vão passar em breve para o domínio do município. Vai conforme o tempo, essa é uma posse de mais de 20 anos, então vocês não têm o risco de perder, mas no momento, para documentar, é complicado.”

Uma vez que a área do loteamento se encontra em área da União e inserida no perímetro do PAE Eixo Forte, ela não pode ser vendida, como explica um servidor do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que preferiu não se identificar por temer represálias. À luz da lei, Cajual é um loteamento clandestino. 

Sem a regularização junto à Prefeitura e ao registro de imóveis, o que só ocorreria com a propriedade da terra, quem compra um lote tem de “torcer” para que a área seja transferida da União para o poder municipal, via Incra. A Prefeitura de Santarém costuma autorizar direitos de uso da terra em áreas federais para pequenos terrenos com documentos de posse, enquanto entra com o processo de registro da propriedade.

Nesses casos, os lotes são considerados irregulares, mas em processo de regularização. Porém, loteamentos em área da União não podem ter nada disso, são clandestinos, e a previsão legal é cana para a galera que promove esses loteamentos”, resume o servidor. 

Sem título de propriedade

Em 1976, o Incra arrecadou a maior parte da gleba Mojuí dos Campos, que envolve a região da Capadócia. Até hoje, são pouquíssimos os lotes na região que possuem o título de propriedade. O professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) Eneas Barbosa Guedes tem uma pesquisa sobre a privatização de terras dessa gleba. Guedes analisou a Certidão de Inteiro Teor da Mojuí dos Campos, uma espécie de linha do tempo da posse de cada matrícula de terra dentro da gleba, entre 1976 e 2019. 

A minoria da fração de terras foi destacada do patrimônio da União para os indivíduos. O restante continua sendo terra pública. Boa parte dela se tornou assentamento. Porém, toda essa área está ocupada em na maior parte dos casos, as pessoas só têm posse da terra, recibos de compra e venda sem nenhum valor jurídico, mas que criam expectativa de direito”, explica

Embora incertas, a ocupação e a urbanização da vila crescem a todo vapor por conta da clássica lei da oferta e procura. Como há muitos interessados, já existem aqueles que compram lotes para revender, o que é igualmente ilegal.

Embora os loteamentos clandestinos sejam comercializados às claras, não existe nenhuma fiscalização da região por parte do governo federal. Segundo o servidor do Incra, o Ministério Público Federal (MPF) chegou a entrar com uma ação contra o órgão em 2018 pedindo o georreferenciamento do PAE Eixo Forte e até hoje não se identificou, nem supervisionou quem são os assentados da região. 

O geógrafo Leandro Pansonato Cazula, também professor da Ufopa, pesquisa grilagem de terras públicas e explica que a prática é “comum em toda a Amazônia”: 

Essa intensa comercialização de terras na região da Capadócia é escancarada e o governo estadual, municipal e federal dá legitimidade a esses sujeitos que se dizem proprietários dessas terras. O Incra, se não está ciente, se ausenta de propósito para deixar tudo como está”, afirma Cazula. 

Durante a visita ao Loteamento Cajual, Alexandre Mendonça Silva afirma que detém o documento de compra e venda dos lotes, que diz ter comprado de um morador tradicional da comunidade de Ponta de Pedras, e também já realizou o georreferenciamento da área. “Tá tudo no meu nome, tirei os memoriais descritivos de todos os terrenos”. O vendedor se refere à inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), uma plataforma autodeclaratória criada pelo novo Código Florestal, instituído em 2012.

A fraude do CAR

Placa da GeoParadella s na estrada de Ponta das Pedras em Alter do Chão (Foto: Mário Rodrigues/Amazônia Real)

O geógrafo Leandro Pansonato Cazula pesquisa a estratégia de cadastro de terras em bases públicas como o CAR. Em sua tese de doutorado, ele identificou empresários da área de topografia que facilitam a grilagem de terras para fazendas e madeireiras em uma gleba localizada no município de Prainha, nas margens do Rio Amazonas, próximo a Santarém. 

Empresários nomeados por Cazula foram identificados pela reportagem como responsáveis pela topografia e pelo cadastro dos loteamentos ilegais na estrada de Ponta de Pedras no CAR. Os cadastros são registrados em sobreposição ao PAE Eixo Forte. Um dos topógrafos, Jefferson Alves de Souza, tem o logo de sua empresa “J Souza Engenharia e Topografia” impresso na planta apresentada pelo vendedor Alexandre Mendonça Silva. 

Souza chegou a realizar cadastros em nomes de laranjas para a madeireira Rancho da Cabocla. Em 2004, as invasões das terras foram alvo da Operação Faroeste da PF e de investigação do MPF. Em junho de 2020, o MPF sentenciou o empresário dono da madeireira a 8 anos e 4 meses de reclusão em regime fechado.

“Eles conhecem o meio, sabem as áreas que não estão no nome de ninguém, e têm essa facilidade, cadastros no Incra que possibilitam que eles identifiquem a condição dessas áreas e emitam cadastros em nome das pessoas”, explica Cazula. 

A reportagem entrou em contato com Jefferson Souza simulando interesse em outros lotes na Capadócia e em outras regiões da APA Alter do Chão. Em áudio encaminhado por Whatsapp, Jefferson Souza revela que tem conhecimento que está vendendo lotes dentro de um projeto de assentamento. Para tranquilizar os potenciais clientes, ele reitera que inúmeras pessoas fizeram “investimentos muito altos” na região:

ÁUDIO:  “O assentamento é imenso (…) imagine você que, se é uma aquisição preocupante, então tem inúmeras pessoas envolvidas na mesma preocupação. Só que, do mesmo jeito que existe essa preocupação, existem pessoas que já investiram e até hoje não tiveram problemas com isso aí, entendeu? É um assentamento que, como eu te falei, está dentro do Incra hoje em fase de certificação. O Incra já tem uma empresa contratada que está georreferenciando esse assentamento, justamente para excluir as pessoas que não têm o perfil da reforma agrária. Então com muita certeza existem inúmeras pessoas que têm investimentos muito altos também, que estão trabalhando e aguardando essa exclusão da área do assentamento”. 

O topógrafo Jefferson Souza foi procurado pelo telefone e pela rede social Whatsapp para falar sobre as acusações sobre o loteamento Ponta de Pedras, em Alter do Chão. Ele respondeu, por duas vezes por escrito, dizendo que não podia atender a reportagem. Uma hora disse que estava dirigindo o carro e outra que estava com um cliente. Souza também não atendeu as inúmeros ligações para o celular e não respondeu aos e-mails enviados pela reportagem.

A fraude da DLA

Loteamento em APA em Alter do Chão (Foto: Mário Rodrigues/Amazônia Real)

Os 8.300 metros quadrados da Rua Cajual, aberta na enxada por homens contratados por Alexandre Mendonça Silva, foram desmatados sem qualquer conhecimento público. Ele confessa ter entrado com pedido de Dispensa de Licenciamento Ambiental (DLA) na Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Santarém (Semma) apenas depois de ter desmatado a área. 

“Todo mundo faz assim, não é a forma correta, mas é a forma brasileira de se fazer.” 

Mendonça Silva continua: “Se você for atrás de buscar e fazer da forma legal, você não vai fazer porque sempre vai ter um empecilho. Então a gente faz assim, ó, essa rua aqui eu abri ela primeiro no manual, lá na frente demoraram mais porque era mata fechada. Eu comecei assim porque se eu metesse máquina de cara, a Semma ia chegar aqui e me embargar e eu não ia conseguir fazer”, afirma. 

Procurado diversas vezes pela reportagem, por meio do telefone disponível nas placas, Alexandre Mendonça Silva não atendeu às ligações.

A estrada de Ponta de Pedras é repleta de placas indicando que obtiveram a dispensa de licenciamento ambiental – a DLA -, algumas referentes à Semma e outras à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas). A reportagem entrou em contato com um servidor da Semas, que também preferiu não se identificar. Ele afirma que os servidores do órgão têm constatado com frequência a existência de placas fraudulentas de DLA.

Criada para reduzir a burocracia para o caso de empreendimentos de menor potencial de dano ambiental, a DLA se tornou outro documento, como o CAR, que confere uma camada de “legalidade” à venda de lotes em áreas públicas. “É possível tirar uma DLA para loteamento? Eu acredito que não, porque você tem que passar pelo processo de licenciamento junto ao município para loteamentos de até três hectares. Então para dar uma transparência de legalidade, tiram uma DLA de uma atividade que não compete com aquela área”, explica o funcionário público. 

A resolução do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Santarém, que define os critérios para enquadramento de empreendimentos passíveis de DLA, considera que loteamento de imóveis próprios só podem se enquadrar na dispensa quando se encontram em perímetro urbano e já dotados de infraestrutura. 

lista de documentação obrigatória para obtenção da dispensa no site da Semma é ampla e envolve, além da descrição da atividade, a certificação de órgãos como o Corpo de Bombeiros. Já a lista necessária para Licença Prévia de loteamentos pela Semma, envolve documentações fundiárias como a Certidão de Uso e Ocupação do Solo emitida pela prefeitura e a comprovação da regularidade fundiária via matrícula do imóvel. Ou seja, para desmatar, é preciso ter imóvel regularizado.

Franjas da negligência

Pousada na estrada da Ponta de Pedras (Foto: Mário Rodrigues/Amazônia Real)

A reportagem da Amazônia Real visitou outro lote, guiada por um casal mato-grossense que há alguns meses havia comprado uma terra também na beira da estrada para Ponta de Pedras, onde construiu uma pousada. Os dois trabalham ilegalmente como corretores informais para vendas de lotes para a empresa Ribeiro Serviços de Corretagem de Imóveis. Nessa visita, eles deixaram claro que operam nas franjas da negligência do poder público. 

“Aqui está tudo liberado pra construir, tem até uma placa da Semma ali na frente, ó: ‘área liberada para construção’. Não precisa pedir licença para ninguém, faz teu projetinho particular e a Prefeitura não incomoda ninguém, ninguém vem, pode ficar tranquilo”, afirmou o dono da pousada, Ivo Tormes.

Para o casal, quanto mais gente na região, melhor. “A região está em desenvolvimento, todo lugar que está crescendo tem uma contribuição da própria Prefeitura para deixar ocupar a vontade, né? Igual no Mato Grosso, a gente chegava lá, se conseguia roçar e limpar era dono daquele espaço, e hoje todo mundo tem uma escritura por lá”. 

Para o professor Leandro Cazula, existe um interesse dos órgãos fiscalizadores em privatizar as terras públicas. “Parece que eles assumem que o poder público não tem que ter responsabilidades sobre essas terras”, acrescenta.

Já para o professor Eneas Guedes, os cartórios são os principais responsáveis pelas fraudes na comercialização de terras públicas. “Eles registram um monte de imóveis que não têm procedência legal. É uma máfia de cartórios e imobiliárias”, afirma.

A reportagem visitou um dos principais Cartórios de Registros de Imóveis em Santarém, o Nogueira Sirotheau 1º Ofício, e questionou funcionários sobre o procedimento para registrar um imóvel comprado na região da Capadócia. Uma funcionária informou que com apenas um contrato de compra e venda seria possível fazer uma “escritura pública declaratória de posse” e levar a documentação na Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária (Sehab) de Santarém, gerando uma documentação de  “venda” do lote. “Se o imóvel não tem registro, é a única maneira”, afirma a funcionária.

Quando a reportagem da Amazônia Real reiterou que a área em questão estava sob responsabilidade do Incra, a funcionária do cartório acrescentou que a regularização teria que ser feita junto ao órgão. “É mais complicado pra regularizar, não é um negócio seguro”, completou. Questionada se ela queria dizer “ilegal”, a funcionária respondeu que é apenas “inseguro”, porque os compradores em questão não poderiam revender a área. Mas afirma que há muitos terrenos não regularizados na região.

Em uma troca de mensagens por Whatsapp, um corretor imobiliário e advogado identificado como Deivison explicou como dá entrada na Sehab no processo de titulação de terrenos em terras da União. “A senhora entra com requerimento no Sehab, depois eles fazem uma visita e passa por comissões, aí passa pela Câmara, pela aprovação do Prefeito e pagamento de boleto. Mas a gente tem meios de acelerar isso aí”, explica. Segundo o corretor, o serviço custa 5 mil reais.

A reportagem entrou em contato com a Sehab por e-mail e por telefone, questionando os procedimentos necessários para regularizar terras públicas, mas não obteve respostas. 

Empreendimentos imobiliários

Laudelino Sardinha, conhecido como Laudeco (Foto: Mário Rodrigues/ Amazônia Real)

O Sirotheau é de propriedade de uma família de Santarém, de mesmo sobrenome, que também atua com Direito imobiliário. Na entrada do cartório, sobre um balcão, há uma série de cartões de visita para serem retirados pelos clientes, entre eles, o cartão da empresa J Souza Topografia. 

Em outubro de 2021, a 7ª e a 13ª Promotorias de Justiça de Santarém expediram uma recomendação para que o prefeito de Santarém e a Semma não concedam licenças a loteamentos que não atendam às exigências legais. A recomendação traz informações da Sehab que apontam que entre 2017 e 2021 foi registrada apenas uma solicitação de loteamento na APA Alter do Chão e que, no mesmo período, a secretaria emitiu 21 Certidões de Uso e Ocupação do Solo para empreendimentos imobiliários. 

Na vila de Alter do Chão, a ocupação fundiária é ainda mais caótica. Uma simples análise sobre imagens de satélite entre 2016 e 2020 mostra o avanço do desmatamento e loteamento em toda a APA Alter do Chão. Áreas de floresta nativa foram transformadas em terrenos abertos.

“Alter do Chão é um produto vendável”, comenta o artesão e liderança indígena Laudelino Sardinha, conhecido como Laudeco. Ele vive nas margens do rio Tapajós, onde sua família Borari foi criada. É uma das últimas famílias indígenas que ainda mora na orla, resistindo à gentrificação da vila. 

“A especulação imobiliária é muito antiga aqui. A partir da década de 1970, com a chegada do turismo, a vila começou a sofrer. Até então, Alter não tinha 500 habitantes”, lembra Laudeco. Hoje, a Prefeitura estima que a vila tenha cerca de 6 mil moradores. “Com a especulação começou a ter uma expulsão dos nativos do centro da vila. As pessoas foram convencidas a vender suas casas e migrar cada vez mais para dentro”, explica. “Parece que é uma vontade própria, mas não é.” 

A filha de Laudeco, Leila Borari,  é coordenadora do Coletivo de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós. Ela lembra como a luta pela terra é a principal bandeira dos povos indígenas e detalha como o próprio poder público foi responsável por tirar os nativos de seu território em Alter do Chão. Boa parte da APA é sobreposta à Terra Indígena Borari, em processo de demarcação na Fundação Nacional do Índio (Funai).

“Minha mãe conta que na casa aqui do lado ninguém tinha documento, ninguém precisava. Aí chegou o pessoal da Prefeitura dizendo que precisávamos ter documento se não íamos perder os terrenos. Aí uma autoridade, acho que vereador, pediu um pedaço do terreno pro meu avô não perder o terreno. Com quantas pessoas já aconteceu isso? Eu falo que o movimento indígena fez essa retomada em Alter do Chão justamente por conta da grilagem de terra e a questão territorial”. 

Urbanização da APA

O poder público de Santarém já protagonizou algumas tentativas para flexibilizar a urbanização da APA Alter do Chão. A principal delas foi em 2017, com um projeto de lei que ficou conhecido como PL dos Prédios e previa facilitar a construção de prédios na APA. 

Segundo Laudeco, o mesmo processo está começando a acontecer na região vizinha, a Capadócia. “A comunidade de Ponta de Pedras primeiro se reuniu e demarcou a área, expulsou os invasores. Mas aí algumas famílias começaram a vender”, explica. A liderança conta que muitos moradores visitam a APA Alter do Chão como turistas e acabam ficando. “Compram pousada, casa, terreno. A maioria do pessoal com comércio hoje é de fora. E as pessoas vêm e trazem a cultura junto.”

Laudeco explica que a maior parte dos loteamentos são abertos próximos a igarapés ou às principais estradas. “Quando a estrada se define, de fato, ninguém embarga, e aí começam a vender tudo, da frente para o fundo, para valorizar os últimos.” A forma como os loteamentos são abertos, principalmente nas áreas de mata mais densa, segundo a liderança, é por meio do fogo.

A fagulha para a grilagem

Mancha de queimada ocorrida no dia 4 de março na Capadócia (Foto: Mário Rodrigues / Amazonia Real)

Mesmo sendo uma área de savana amazônica e, portanto, com vegetação menos densa, os sitiantes da região da Capadócia também utilizam o fogo para limpar seus lotes. Em 6 de março de 2022, a reportagem sobrevoou a área e encontrou cicatrizes recentes de queimada em uma área próxima ao loteamento Cajual. 

O incêndio havia ocorrido dois dias antes e demorou quase duas horas para ser controlado pelo 4º Grupamento de Bombeiros Militares (GBM) do Pará. Na ocasião, o bombeiro Júlio César Galúcio afirmou em entrevista para O Liberal que o incêndio pode ter sido provocado pelos moradores que estavam limpando as áreas nas redondezas para vendê-las. “Provavelmente perderam o controle”, afirmou. Galúcio também atuou no combate da queimada de 2019 e foi um dos depoentes contrários aos brigadistas. (Leia a reportagem “A caçada aos brigadistas”)

Amazônia Real cruzou os dados de focos de queimadas na APA Alter do Chão entre 2015 e 2021 com o avanço do loteamento da APA. Fica evidente que a incidência de queimadas não foi  incomum no período, mas chama atenção o aumento de loteamentos ilegais estabelecidos após as queimadas de 2019.

Ou seja, os incêndios na Amazônia acabam fazendo parte da lógica do roubo de terras públicas. A grilagem no “Caribe Amazônico” envolve uma extensa rede de atores: grileiros, cartórios, órgãos públicos, empresas de georreferenciamento, advogados e empresários do ramo imobiliário. Eles podem agir à revelia de qualquer fiscalização, com ou sem fogo.

“O principal problema não é o fogo, ele acontece recorrentemente, de dois em dois anos. Uma área que pegou fogo, ela vai pegar em média após dois a três anos depois, o problema está sendo o parcelamento irregular do solo”.

Essa afirmação é de Rodrigo Fadini, biólogo e professor da Ufopa, que pesquisa desde 2005 as savanas amazônicas em áreas de Alter do Chão. Mas a fala se baseia em registros anteriores: nos mais de 20 anos de pesquisas realizadas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) que integram os estudos ecológicos da biodiversidade. 

Ordenamento territorial

O desenvolvimento de pesquisas na região contribuiu para a criação da Área de Proteção Ambiental (APA) de Alter do Chão em 2003, que contou com a participação da sociedade civil local. Porém, por falta de um plano de manejo, não foi possível fazer o ordenamento territorial para empreendimentos imobiliários na região.

Rodrigo Fadini destaca que a queimada de 2019 em Alter do Chão não foi uma exceção. “Não sei por que o fogo em 2019 teve tanta atenção assim. Menos de cinco anos antes houve um padrão semelhante de fogo. Mas acho que tem uma combinação de outras coisas: além do fogo, nós temos uma invasão maciça das áreas de savana para loteamentos”, arrisca. Diante da invasão da savana, o pesquisador deixou de fazer trabalhos em campo, temendo ser abordado por grileiros.

O inquérito da Polícia Federal, concluído em 18 de agosto de 2020, não conseguiu apontar se a queimada de 2019 foi criminosa, mas descobriu que haviam iniciado em dois pontos, a leste da estrada de Ponta de Pedras (ponto A) e a oeste da estrada de Ponta de Pedras (ponto B). Esses dois pontos, segundo o inquérito, se situam distantes da hipotética área de origem do fogo apontada pela Polícia Civil, por meio dos depoimentos do Corpo de Bombeiros e Semas.

Mesmo com os peritos da PF tendo confirmado que “não havia quaisquer indícios de loteamentos, grilagem ou quaisquer intenções de venda” nos pontos onde o incêndio começou, dos quatro entrevistados pela perícia, apenas um morador afirmou ter posse da terra. O restante não tinha documentos que comprovasse a legalidade da ocupação.

A pesquisadora Susan Aragón Carrasco, da Universidade do Oeste do Pará (UFOPA), afirma que os pontos de origem do fogo indicados pela PF, por serem próximos à estrada, indicam possível ação antrópica. 

Os dados analisados pela Amazônia Real corroboram a afirmação da pesquisadora, especialista em ecologia. A partir da base BDQueimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que permite visualizar via satélite os focos de calor em diferentes regiões do continente, foi possível identificar que os focos de calor na APA de Alter do Chão, de 2015 a 2021, não se destoam da quantidade do fogo ocorrida em 2019. Em 2017, por exemplo, foram 194 focos de calor no total, 110 a mais que em 2019.

Apesar de ser possível que o fogo ocorra de forma natural na savana amazônica, os dados coletados mostram que a maior parte dos focos são causados por ação humana e 2019 não foi um caso isolado.

Em 2015, do balcão do seu restaurante Caranazal, que fica próximo à “Capadócia”, Luiz Borari presenciou a chegada das primeiras grandes queimadas na região, localizada entre os igarapés Areia Branca e Camarão, às margens do Lago Verde. Ao se aproximar das queimadas, Luiz se deparou com loteamentos.

“Começou tudo com esse policial Silas. Por que eu digo isso? Ele já veio na minha casa e conversou comigo. Disse que tinha essas terras aí, uma conversa mole, eu disse que sou filho de Alter do Chão, tenho 62 anos e nunca tinha ouvido dizer que isso aqui era dele”, afirma Luiz.

Silas da Silva Soares, empresário do ramo da construção civil e ex-policial, citado por  Luiz Borari, chegou a ser preso por grilagem de terra. Desde 2020, encontra-se foragido e seus loteamentos seguem ocupados por terceiros.

A reportagem visitou quatro pontos que tiveram mais incidência de queimadas entre 2015 e 2021, incluindo a terra invadida por Silas. Todos os locais já estão loteados ou viraram pastagem, com estacas, cercas e bandeiras verde e amarelas marcando o território. No total são 202 lotes registrados no CAR que estão sobrepostos à APA de Alter do Chão. 

Os dados comprovam que o mercado imobiliário e grileiros se beneficiam do solo “limpo” a partir das queimadas, inclusive a de 2019, mas também das anteriores, para seguir aumentando suas terras. Porém, mesmo nos anos de poucos focos de calor, os loteamentos (ou pastagens) seguiram se expandindo.

Segundo análises do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), desde o início do atual governo de Jair Bolsonaro até setembro de 2021, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) haviam executado apenas 22% do montante disponível para ações contra o desmatamento e incêndios florestais.

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