por Pádua Fernandes, edição original da Publicação Oficial da Associação Juízes para a Democracia / Ano 17 – nº 74 – Fev – Abril 2017
Este breve artigo estrutura-se a partir de três questões: a primeira diz respeito ao relacionamento do direito com as ciências sociais; a segunda, à relação entre o direito internacional e o nacional; a terceira, enfim, à justiça de transição e às continuidades da ditadura.
1. A ignorância antropológica pode gerar bom direito? Certamente não: como os direitos dos povos indígenas são informados pelo conteúdo das práticas e tradições dos povos indígenas, somente uma decisão antropologicamente informada pode ser juridicamente consistente.
Não foi o caso da tese fantasiosa do Ministro Gilmar Mendes de que “podemos resgatar esses apartamentos de Copacabana, sem dúvida nenhuma, porque certamente, em algum momento, vai ter-se a posse indígena […] Terra tradicional é Copacabana, terra tradicional é Guarulhos”.
Tratava-se da Terra Indígena (TI) Guyraroka, do povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, em discussão no recurso ordinário em mandado de segurança 29.087-DF. A situação fática da TI não tinha relação nenhuma com Copacabana. A maioria da 2a Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), porém, decidiu pela nulidade da demarcação em 2014.
Decisões como essa fundamentam-se em uma concepção etnocêntrica de propriedade que, em seu défice antropológico, é incompatível com o artigo 231 da Constituição da República e com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que interpreta o direito de propriedade de forma a proteger as posses coletivas dos povos originários. Trata-se da única interpretação consistente com a diversidade cultural no continente americano. A arrogância epistemológica de uma hermenêutica jurídica que não dialoga com outras ciências não é capaz de inspirar decisões que se coadunem com os direitos humanos.
2. Ilícitos internacionais são um exemplo de bom direito? Cremos que não. No entanto, esses ilícitos são fomentados ou garantidos pela postura metodológica do STF que, apesar da abertura da Constituição brasileira ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, insiste no que Antoine Garapon chamou de provincianismo constitucional.
Entre os diversos ilícitos internacionais no tocante ao dever de proteção aos direitos dos povos indígenas, está a sistemá- tica violação pelo Estado brasileiro da Convenção no 169 da OIT, com suas medidas de autonomia dos povos indígenas. A Petição 3.388-RR (o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol), julgada pelo plenário do STF em 2009, foi um exemplo notável daquele provincianismo: a construção jurisprudencial das condicionantes à demarcação da TI foi realizada em desprezo pelo Direito Internacional.
A arrogância epistemológica de uma hermenêutica jurídica que não dialoga com outras ciências não é capaz de inspirar decisões que se coadunem com os direitos humanos
No julgamento dos embargos de declaração, em 2013, a Convenção 169 foi mencionada apenas em orientação hermenêutica oposta à do Sistema Interamericano, ou seja, não para aplicá-la, e sim para limitá-la. O método da ponderação serviu para a ineficácia de direitos humanos.
A relatora especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, esteve no Brasil em março de 2016 e publicou nota de preocupação com “a interpretação equivocada dos artigos 231 e 232 da Constituição na decisão judicial sobre o caso Raposa Serra do Sol”.
Se o provincianismo não é o método juridicamente mais adequado para o diálogo com os sistemas internacionais de direitos humanos, deve-se reconhecer que ele é o mais conveniente para reproduzir uma cultura jurídica nacional que discrimina os povos indígenas.
3. A violação da justiça de transição na legitimação judicial de genocídios e etnocídios pelo STF constitui um bom direito?
Lembremos da tese do marco temporal, instituída pelo STF na Pet. 3.388, que exige que, na data da promulgação da Constituição, os índios estivessem presentes em suas terras, sob pena de nulidade de demarcações ou de ampliações realizadas posteriormente. Além de fazer tábula rasa da proteção constitucional anterior, ela viola o Direito Internacional. A jurisprudência da Corte Interamericana segue a linha de que a remoção forçada de um povo indígena não o impede de reivindicar seu território (caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, de 2006).
Na ditadura militar, a espoliação das terras indígenas ocorreu com a prática de remoções forçadas e genocídio. Com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, o Estado assumiu em 2014 a prática dessas graves violações de direitos humanos, o que, segundo os parâmetros internacionais de justiça de transição, deveria levar à reparação das vítimas com a demarcação, a desintrusão e recuperação ambiental de suas terras.
A ausência das medidas reparatórias corresponde a uma das continuidades da ditadura e está ligada ao ressurgimento da doutrina de segurança nacional que, por meio de suas duas facetas, a da defesa e a do desenvolvimentismo, vê os povos indígenas e seus modos de vida como inimigos e obstáculos ao “progresso”. Ouve-se hoje nos três Poderes a retórica de que os índios seriam perigosos e atrasados.
As três questões conjugam-se, enfim: a ignorância antropológica, o ilícito internacional e a injustiça de transição são aspectos do mesmo colapso ético do Judiciário brasileiro ao tratar das questões indígenas.