Cloroquina ou tubaína?

 

ARTIGO

Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade
Federal de Ouro Preto em Mariana*

Um perigoso processo de desmonte começou pela destruição da autoridade do professor, do historiador, do jornalista, e, agora, atinge a medicina e a saúde pública

 

Quarta-feira, 19, morreram mais de mil pessoas em decorrência da
covid-19. Uma verdadeira catástrofe! Indiferente, ou mesmo para ocultar aos fatos,
Bolsonaro atualizou a disputa entre coxinhas e mortadelas para cloroquinas e
tubaínas. A que ponto chegamos! Como entender o que está por trás dessa nova
agitação presidencial?  

“Você não é obrigado a tomar cloroquina”. E, em seguida, lançou a seguinte piada:
“Quem é de esquerda deveria tomar tubaína e não cloroquina”. Nos últimos dias, os
bolsonaristas têm divulgado diversos vídeos sobre o sucesso do uso da
hidroxicloroquina em um hospital na cidade de Floriano, no Piauí. A ministra
Damares, por exemplo, foi à cidade, no último dia 14, para ver de perto “o milagre
da cloroquina”.
Acreditamos que compreender a fórmula de “sucesso” da Fox News e da
Jovem Pan News pode nos ajudar a entender o chão de realidade no qual está
assentado esse suposto “milagre”, principalmente se considerarmos as últimas
declarações de Trump de que está fazendo uso do medicamento de forma
preventiva contra a Covid-19, bem como o movimento de Bolsonaro para mudar o
protocolo de uso da cloroquina.
Tudo isso tem como uma das consequências o aumento da pressão sobre os
médicos da rede pública para prescrever o remédio. Ao mesmo tempo, ocorre em
um momento em que mais pesquisas demonstram a ineficácia e os riscos da
cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19.
Mas, infelizmente, vivemos em um país em que, já faz algum tempo, as
“convicções” valem mais que as provas… Algumas mudanças no interior das mídias
nos ajudam a entender a questão: parte delas, das mídias conservadoras, vivem de
uma cortina de fumaça, do argumento de que tudo tem dois lados, de que basta
apresentar os dois lados para que não haja viés. Mas, ora, os lados podem ser
muito mais que dois e, além disso, nem todo lado tem razão.
É como um estúdio de TV discutir o uso da cloroquina e colocar de um lado
uma autoridade pública de saúde e, de outro, uma subcelebridade do Youtube. Não
é um cenário, digamos assim, que contribui para a formação de opinião, mas
apenas para que cada lado da polarização política reforce suas crenças e desejos.
É este tipo de lógica, cada vez mais hegemônica, que explica o fato, que tem
ficado cada vez mais claro, das autoridades de saúde estarem perdendo o debate
relativo ao uso da cloroquina, apesar de estarem com a razão.

O caso Fox News, com F de fake

A transformação da Fox News em uma máquina de propaganda conservadora, capaz de pautar inclusive o Partido Republicano, tem sido exaustivamente estudada nos Estados Unidos. David Brock, em livro publicado em 2012, já havia descrito com detalhes essa transformação, que na época ele chamou de efeito Fox. Brock estava à frente, na época, da Media Matters for America, instituição cujo objetivo é monitorar as notícias falsas promovidas pela imprensa conservadora. No dia 19, o site trazia uma matéria que constava que o programa predileto de Trump, o Fox & Friends, havia recebido 49 pessoas para discutir o coronavírus nos últimos quatro dias, e apenas um era especialista médico.

Em seu livro, Brock narra a participação de um dos grandes gerentes da Fox
em Washington, Bill Sammon, em seminário organizado em um cruzeiro seis estrelas
da Luxury Liner. Cada casal teria pago entre 50 e 150 mil reais, em valores de hoje,
para participar do evento com influenciadores da direita estadunidense, muitos deles
jornalistas. Em sua fala, o funcionário da Fox revelava como no contexto da eleição
de Barack Obama ele havia conscientemente distorcido um episódio da campanha
para promover a narrativa de que Obama seria um simpatizante do socialismo. Para
uma audiência conservadora, o jornalista admitia que a manipulação dos fatos era
uma atividade regular de seu trabalho na Fox News.
O que torna a questão ainda mais grave é o fato de que não se tratava de um
episódio isolado, mas uma ação coordenada por Roger Ailes, presidente e chefe do
canal Fox desde 1996. Ailes, falecido em 2017, foi uma personalidade do mundo da
comunicação que desde a polêmica eleição de Nixon, em 1968, trabalhou para
diversos presidentes e candidatos do partido republicano. Já nos anos 70 Ailes tinha
como estratégia a criação de falsas notícias ou de formatos de TV que simulavam
programas noticiosos como estratégia de marketing político.
Na última semana da eleição de 2008, Roger Ailes produziu um roteiro a
partir da leitura de uma autobiografia de Obama publicada em 1995. Usando
informações que já eram de conhecimento público, mas que descontextualizadas e
vendidas como furos jornalísticos, funcionavam como propaganda negativa para
atingir a campanha do candidato democrata. Que esse tipo de procedimento seja
feito por publicitários contratados por partidos é algo “normal”, que isso seja
produzido pelo chefe de jornalismo de um canal de TV especializado em jornalismo
indicava uma transformação substantiva nas fronteiras entre a produção da notícia e
a guerra política.
Quando questionada acerca da parcialidade de sua programação, a Fox
afirma que manteria separado o jornalismo dos programas de opinião e comentário.
Naturalmente essa separação não existe quando o próprio diretor geral do canal
coordena uma ação política direta a ser operada por sua equipe de jornalismo. A
vitória de Obama em 2008 foi recebida como um verdadeiro apocalipse por figuras
como Ailes, que a partir de então vão trabalhar para inviabilizar a agenda do
presidente democrata. Entre 2009 e 2011, a quantidade de notícias falsas cuja
origem poderia ser atribuída à Fox News passou de 33% para 54%.
Mesmo alguns republicanos moderados começaram a perceber, antes da
eleição de Trump, que o excesso de polarização que a Fox News produzia nos
eleitores dificultava a negociação no Congresso com os democratas, e se
perguntavam, então, se a Fox News trabalhava para o partido ou se era o partido
que trabalhava para ela. De algum modo, o autor não poderia antecipar a ascensão
de Trump, mas certamente essa autonomização da máquina de propaganda foi
fundamental para quebrar o establishment do partido republicano. No Brasil, o
mesmo poderia ser dito com relação ao PSDB e a direita tradicional com a eleição
de Bolsonaro.

A atualização da Jovem Pan

No contexto norte-americano, a ascensão da Fox News como principal canal de TV a cabo noticioso dos Estados Unidos é um bom exemplo de como um canal de notícias se tornou um partido político.
Como a Jovem Pan atualiza o projeto Fox no Brasil? Isto é, de ser o principal canal por onde as distorções e as mentiras conservadoras fluem para outras mídias? Ainda nos faltam pesquisas para responder ou mesmo dimensionar essa hipótese, mas temos alguns fortes indícios.
A revolução Fox News, que hoje ameaça destruir o jornalismo corporativo, omeçou com um conceito muito simples: o de construir uma rede, com base no sucesso de programas de rádio, com comentaristas conservadores sem nenhum escrúpulo em recorrer à violência e à mentira para atender aos seus objetivos políticos e comerciais. Assim, em primeiro lugar, podemos dizer que a Jovem Pan usou e abusou desse modelo, em especial, no contexto das eleições de 2014 e durante o golpe de 2016.
Em outras palavras, como todos estamos imersos no ambiente noticioso em fluxo, muito daquilo em que acreditamos depende de como esse ambiente tem sido constituído. Assim, se nos Estados Unidos a Fox News se constrói enquanto força política, reagindo ao governo de Barack Obama, no Brasil o fenômeno análogo pode ser identificado na ascensão da Jovem Pan a partir do governo Dilma.
Isso significa que a Jovem Pan transformou o noticiário em entretenimento,
incorporando à sua grade programas como o Pânico, cuja agenda conservadora é
disfarçada em elementos anti-sistêmicos. Compreender a ascensão da Jovem Pan
e o papel que ela tem hoje na produção do universo paralelo do bolsonarismo é
fundamental, ainda mais se considerarmos que ela é a rede de rádio mais ouvida no
Brasil, com maior capilaridade em diversas capitais e no interior, que acabou
promovendo e colocando em sua folha de pagamento jovens e não tão jovens
articulistas da reação conservadora brasileira. Hoje, talvez, seja na Jovem Pan que
os protagonistas do governo bolsonaro, inclusive a facção olavista, encontram a sua
maior válvula de comunicação, sem grande enfrentamento crítico ou qualquer
vestígio de boas práticas jornalísticas.
Em entrevista no portal Brazil Journal, de setembro de 2019, o Tutinha,
Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, que herdou a empresa (Jovem Pan) de
seu pai, declarava: “Jornalismo é commodity. O que viraliza e gera audiência é
opinião,” “E a gente adora um pauzinho, gente se pegando de porrada”. A matéria
afirma, ainda, que, naquele momento, a rádio era líder de audiência no segmento
matutino, com cerca de 200 mil ouvintes por minuto.
A virada do negócio começou quando introduziram as transmissões das gravações dos programas de rádio para o Youtube, prática que começou com o programa Pânico, em 2002, e depois se expandiu para o show de horrores que são os seus programas, verdadeiros simulacros do ambiente jornalístico com toques de machismo, homofobia e combate ao “politicamente correto”. Uma mistura de
entretenimento e propaganda em que o produto vendido pode ser tanto um
refrigerante quanto as ideias de um charlatão como Olavo de Carvalho.
Na folha de pagamento da Jovem Pan – seguindo o modelo Fox News – se
misturam políticos fantasiados de comentaristas e jornalistas fantasiados de
ideólogos. É considerando esse modelo que já trabalharam para a rádio Reinaldo Azevedo, Marco Antônio Villa, Joice Hasselmann, Rodrigo Constantino, Augusto Nunes, Samy Dana, Caio Coppola, Felipe Moura, dentre outros. Este último foi diretor de jornalismo e apresentador entre 2017 e 2020. O que todos têm em comum é serem ou terem sido ícones da virada conservadora que ajudou a destruir a hegemonia petista na política nacional.
Além disso, os seus programas se tornaram salas de estar para agitadores de direita, como Olavo de Carvalho e a juventude do MBL. Outro dado que os estudos têm mostrado é que a maioria dos “intelectuais de direita” atua muito nas redes sociais, especialmente no Twitter. No entanto, os que possuem mais seguidores são aqueles que também atuam em programas de rádio e/ou TV e, sem dúvida alguma, a Jovem Pan é uma das suas principais vitrines.
Naturalmente, a empresa mantém alguns comentaristas à esquerda do espectro político, como Thaís Oyama, para manter a retórica da imparcialidade e do “dois ladismo”, como se todo e qualquer fato pudesse ser reduzido a isso. Como
argumentamos acima, o “dois ladismo” é uma cortina de fumaça fundamental para
sustentar a credibilidade do universo simulado que ajudam a construir.
Ao apostar na retórica do confronto e da violência, a Jovem Pan segue a
mesma cartilha da Fox News. Claro que o cenário brasileiro de mídia é um pouco
mais pulverizado que o estadunidense, afinal temos a Globo, a Bandeirantes, a
Record e, agora, a CNN Brasil, todos canais com forte presença no noticiário
televisivo e que surfam na segmentação do mercado das notícias que produzem,
mercado esse que é produzido pela polarização política.

 A Jovem Pan lançou, no dia 1º de maio, a plataforma de streaming Panflix, que oferece conteúdo novo e ao vivo todos os dias e que está disponível para download em diversas agregadoras de conteúdo. No último mês (provavelmente devido à pandemia), a audiência aumentou nas plataformas de vídeo: 57 milhões. Recentemente, o grupo fez uma parceria com a Google para veicular, diariamente, notícias sobre o novo coronavírus.
Embora a plataforma só tenha estreado em maio, em 27 de janeiro o
programa Pânico ressurgiu, já no estúdio novo da Jovem Pan, preparado para a
Panflix. O convidado especial não foi ninguém mais ninguém menos que o então
ministro da Justiça, Sérgio Moro. Inclusive, como era de se esperar, a possibilidade
de Moro ser eleito em 2022 foi comentada no programa, ao que Moro respondeu
que apoiaria Bolsonaro, pois, esse sim, tem pretensões à reeleição. Já ele, Moro, é
só um ministro do atual governo e que apoia o seu presidente. Um dos
apresentadores diz que há boatos de que há muitos atritos entre Moro e Bolsonaro, ao
que Moro diz que não, mas ninguém acredita – e, ao fim, Emílio Surita diz que,
independentemente do que cada um quer, “a voz do povo é a voz de Deus”.

O que a trajetória da Fox e da Jovem Pan pode ensinar ao campo progressista?
O que estamos assistindo é a criação de um novo tipo de “jornalismo”, que se alimenta de um discurso “antissistema”, ao denunciar o suposto viés progressista da grande imprensa, e se coloca, assim, como um contrapeso conservador. Mas o problema não é a existência em si de um viés, de certo modo inevitável, nas questões humanas, mas, sim, a licença que a ideia da compensação acaba dando para todo o tipo de falsificação e manipulação das notícias para que se encaixem no universo da polarização política.

A busca pela audiência (ou pelo aumento no númerode seguidores), agora, se sobrepõe à checagem dos fatos, às boas práticas jornalísticas e mesmo à responsabilidade que esses agentes deveriam ter ao propagar informações cujos efeitos massivos são sabidamente nocivos à coletividade. Em síntese, o que queremos dizer é que esse tipo de “jornalismo” abre portas perigosas, como as que estamos assistindo e pela qual passou a ideia de
que basta tomar cloroquina que a pandemia estaria resolvida.
Ao ceder à lógica do entretenimento, dos likes, e da polarização, os canais de
notícias 24 horas se tornaram um dos focos da grande bolha de ignorância
orgulhosa que não para de crescer. Você pode agora simplesmente escolher qual
noticiário, qual jornalista, qual jornal se enquadra no seu gosto pessoal e em suas
crenças, as empresas de jornalismo cedem cada vez mais ao seu desejo, afinal,
você quem as financia, direta ou indiretamente. São essas certezas, estimuladas
por esses noticiários, que alimentam as convicções que fazem com que até os
médicos sejam obrigados, como estão sendo, a receitar remédios sem eficácia para
as pessoas que chegam aos seus consultórios cheias de convicções e de achismos.
Um processo que começou pelo questionamento da autoridade do professor, do
historiador, do jornalista, e que, agora, atinge a medicina e a saúde pública. Talvez
agora a sociedade desperte para os riscos da ignorância e do achismo como
bandeiras políticas.

O que fazer?
Como temos destacado nos últimos artigos, é necessário combater a indústria da desinformação nos seus vários níveis e mídias. Sem dúvida, um dos caminhos passa por apoiar a PL 1429/2020, que pretende Instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Isso é urgente, pois do presidente aos nossos amigos, sabemos que muitos têm se formado pela internet e pelo show de “notícias” de canais como Fox e Jovem Pan e suas relações espúrias com plataformas e milícias digitais.
Enquanto isso, as redes sociais nos lembram uma fala de Bolsonaro de 2017.
O presidente teria dito a frase enquanto defendia o uso de uma possível “pílula do
câncer”, para a qual ainda não haviam estudos científicos que comprovassem sua
eficácia: “Estive à frente para aprovar a fosfoetanolamina. Cura ou não cura, não
sei. Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar, não é curar
ninguém. Mas apresentei, junto com mais alguns colegas, e aprovamos.”.
Perguntamos ao nosso amigo bolsonarista se ele tomará a cloroquina.
Resposta: “Eu não entendo vocês não, seus malucos comunistas. No início do ano eles
já tinham mandado retirar todas as cloroquinas da farmácia. Eu não sei quantos
artigos existem falando que a cloroquina não dá resultado. Mas, o que eu tenho
visto aqui é que tem mais artigos falando que funciona do que não funciona. Se eu
tivesse doente eu tomaria. Com a maior certeza. Eu não entendo é se pode usar e
em alguns casos funcionaram, por que esses deputados não deixam? Porque a
cloroquina custa 9 reais. Você acha que as grandes empresas farmacêuticas que
estão ganhando com a covid só vão perder. Um remédio de 9 reais para curar uma
pandemia e vocês não querem! Vocês, todo mundo, é manipulado pelas grandes
empresas. Tem gente que sarou com isso. Não funciona para quem não toma. Se
seu filho precisasse você não usaria? Ainda mais que tem um artigo que mostra que
pode funcionar. Vai ficar esperando cair do céu uma coisa que não existe? Fica
esperto. Contra o quê vocês estão lutando?”
Ele mandou também um vídeo contra a indústria farmacêutica, estrelado por
uma ativista norte-americana anti-vacina, Judy Mikovitz. Ele ainda afirmou: “Você
sabe quantas pessoas estão morrendo de outras coisas e os hospitais falam que é
para ganhar dinheiro?”
Enfim, por que a cloroquina é tão importante para Trump e Bolsonaro?
Para começar, é preciso deixar registrado que eles são os líderes de dois dos
três países mais infectados do mundo. Parte da resposta passa por entender a
penetração de canais como Fox News e a Jovem Pan. Nestes dois grandes países
seus líderes divergiram da OMS e de suas próprias autoridades de saúde, ainda
assim continuam no poder de forma mais ou menos estável e, se não estáveis,
apoiados por pelo menos um terço de sua população.
É um escândalo, mas é a realidade. E sabemos, não podemos confundir o
desejo com o diagnóstico. Há interesses comerciais na questão da cloroquina, bem
como perversidade em fazer pessoas voltarem a trabalhar, seguras de que há uma
cura, e morrerem em casa para demorarem a entrar nas estatísticas (se entrarem).
O “milagre da cloroquina” é, antes de tudo, uma fake news, uma simulação eficaz da
realidade, mais do que uma simples mentira. Essas simulações atendem a diversas
demandas e desejos, afinal, quem não quer uma cura milagrosa? Mas sua
exploração política tem como objetivo manter o auditório agitado e ativo, isto é,
garantir que a “pequena maioria” que dá suporte a esses genocidas permaneça
entretida e consumindo. O filho mais novo de Bolsonaro aguarda a sua boquinha na
próxima eleição.
A cloroquina é, assim, uma triste metáfora de como o regime de verdade, que sustentava as democracias liberais, está profundamente comprometido em países como o Brasil e os Estados Unidos. E, certamente, a trajetória da Fox News e da Jovem Pan são parte desse processo de erosão, que é bem mais complexo, como temos explorado aqui neste espaço.
A produção incessante de notícias tornou-se a mais importante fonte de poder político, mais relevante que partidos e outros sujeitos tradicionais. E o universo paralelo da simulação da notícia, o que se tem chamado de modo um tanto simplista de fake news, como arma política, com seus agentes e estruturas, é o fato mais relevante para compreendermos esse momento de pandemia que vivemos. Bolsonaro e Trump são os parasitas que em simbiose se alimentam e são alimentados por esses universos paralelos.
Ao reforçar a sensação de urgência, a pandemia acaba por aprofundar certos aspectos do atualismo, a pressa e a desconfiança com tudo e todos. Assim, por que confiar em seu médico ou nas autoridades de saúde? A verdade, como parece sugerir nosso amigo bolsonarista, agora só pode ser medida pela quantidade de atualização do artigos.
Ontem, dia 20, pela manhã, nos deparamos com uma grande reportagem do
The New York Times com o título “Como o filme Plandemic e suas falsificações se
espalharam on line amplamente”. Trata-se de uma bela investigação de como as
redes sociais e setores da mídia promoveram mais uma vez um ataque orquestrado
à verdade. A matéria registra o esforço de algumas plataformas para banir o vídeo
e de diversos grupos para produzir contra-vídeos refutando as mentiras exploradas
no falso documentário.
Mas como podemos constatar pelos comentários de ontem de nosso amigo
bolsonarista, Plandemic já está sendo tratado como a mais real das verdades nas
suas bolhas e sendo acoplado a novas narrativas que dão sentido aos multiversos
conspiracionais. Em uma pesquisa ontem cedo no Youtube, apesar de haver
realmente diversos vídeos refutando Plandemic, e de ele não estar mais disponível,
o primeiro vídeo que o Youtube nos mostrou foi a live de um youtuber inglês que
estava a caminho de uma entrevista com a controversa médica do documentário,
prometendo refutar todos os argumentos da mídia tradicional. Ou seja, hoje você
pode escolher viver no universo paralelo, agitado e divertido da cloroquina, ou
enfrentar a realidade dura e assustadora da tubaína. Qual pílula vai tomar? A
pergunta, inspirada no universo do filme Matrix, também já foi corroída pela
guerrilha digital. A Matrix é sempre a realidade do outro. Assim, na noite da selva
digital, todas as pílulas são cinzas.

Fonte: The New York Times
(*) Autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o
século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando
Bolsonaro, com Bruna Klem.

Esse artigo contou com a colaboração de Mayra Marques, doutoranda em
História pela UFOP

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

3 respostas

  1. Vai uma tanba ai? ….ela quis dar o furo ..entendeu o trocadinho …a bala de prata do desgoverno séria a ficha azul de casino nunha tentativa futura de salva uma punição pelo qual conduziu toda a crise sanitária no pais ..por puro egoísmo. Custou a vida de centenas de vidas ….tenta como sempre vez criar uma narativa uma disputa semânticas pos governos de direita precisam pra existirem necessariamente de um inimigo pra existirem. …

  2. Tubaina é um apelido dado a uma forma de tortura com água, já o refrigerante chama-se Itubaina.

  3. Excelente explanação, seria muito bom se mais pessoas tivessem acesso as informações e conhecimento de como desvendar as muitas fake news.

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