Abner Fco Sótenos*
O núcleo duro da família Bolsonaro tem uma tradição de fazer pequenos recuos estratégicos para fugir de potenciais punições por parte das instituições. A “declaração à nação” do presidente no último dia 9 de setembro não foge à regra. É uma tática clara para evitar abertura de processo de impeachment diante de uma possível articulação entre o Parlamento e a Suprema Corte de Justiça (STF). Mesmo porque não é nem um pouco convincente chamar Michel Temer para escrever uma carta onde Bolsonaro se compromete em respeitar a lei. Logo o Temer, o que vazou a carta do “vice decorativo” e tramou para derrubar uma presidente. Logo Bolsonaro, um infrator contumaz de regimentos internos, estatutos e da Constituição federal.
A sobrevida dos Bolsonaros passa mais pela leniência de instituições que deveriam puni-lo, num evidente ato de ausência de responsabilização ou accountability horizontal aos Bolsonaros do que o famoso “o povo não sabe votar”. Isto não isenta a responsabilidade do eleitorado que desde 1988 vem elegendo Bolsonaro, seus filhos e seus apadrinhados políticos.
A primeira tentativa de forjar recuo por parte de Bolsonaro foi em 1987, quando o próprio admitiu numa entrevista à revista Veja que tinha plano de fazer atentados terroristas a fim de constranger o alto oficialato, o ministro do Exército e o presidente da República. A “Operação beco sem saída”, planejada pelos capitães Jair Messias Bolsonaro e Fábio Passos da Silva visava “explodir bombas em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras (…) e em vários quartéis”.
Curiosamente, no Exército foi a única instituição que Bolsonaro não se criou. Depois de ser identificado como o principal conspirador, Bolsonaro escreveu uma carta de próprio punho jurando que não havia participado de tentativa de ação terrorista. Com a carta, Bolsonaro enganou no primeiro momento o general Leônidas Pires Gonçalves, que aceitou o pedido de “desculpas”, mas Bolsonaro foi traído pela vaidade.
Na referida entrevista à Veja, Bolsonaro não somente vangloriou-se de ter transgredido o regimento militar no que se referia a participação de militares da ativa em “reivindicação (ções) coletiva (s) ou de crítica a autoridades constituídas”, como apresentou o croqui dos atos terrorista que iria praticar. Um inquérito policial militar (IPM) foi instaurado e acabou confirmando a participação de Bolsonaro e o julgamento no Superior Tribunal Militar (STM), realizado em junho de 1988 decidiu pela expulsão do Messias. Manobras internas no Exército e a pressão de mulheres de militares, praças e da baixa oficialidade, além de um ou outro militar do alto oficialato, acabou beneficiando o Jair, que foi reformado (aposentado).
Depois de eleito deputado nas eleições de 1991, o Messias cometeu uma série de irregularidades e crimes, mas foi sempre afagado pelos seus pares no Parlamento e pelo STF. Quase sempre, Bolsonaro saía com um pedido de desculpas ou como um “cão arrependido.” O pedido de desculpas atual é precedido por um de 2020. Neste último, o presidente postou em suas redes sociais vídeo ofensivo aos órgãos de imprensa, movimentos sociais progressistas, partidos políticos e ao STF. No vídeo compartilhado por Bolsonaro, ele era representado como um leão acuado por hienas e salvo ao final por um outro leão representado no vídeo como o “conservador patriota” que o tirava do cerco das hienas. Se o tal vídeo não configurou incitação do presidente contras as instituições democráticas e não guarda relação direta com os atos de 7 de setembro, nada mais configuraria.
Posteriormente, a uma nota assinada pelo então decano Celso de Mello, onde ele assinalou que “torna (va)-se evidente que o atrevimento presidencial parece não encontrar limites” e que o presidente “falsamente identifica (va) a Suprema Corte como um de seus opositores,” o Jair fez o seu habitual pedido de desculpas. Com as escusas, Bolsonaro contou como sempre tem contado na sua trajetória pública com a complacência das instituições que deveria fiscalizá-lo. Afinal, são mais de cem pedidos de impeachment na Câmara dos Deputados sendo escondidos. Diante de um longo histórico de falsos recuos, dos quais os filhos aprenderam muito bem, Bolsonaro volta com a velha estratégia de arrependimento depois da frustrada tentativa de golpe de estado no 7 de setembro. E, dessa vez, ele trouxe um “arrependido” de peso para auxiliá-lo, o Michel, logo o Michel.
O que vale para um agente público de uma repartição ou uma cidadã que cometeu crimes e infrações graves e depois tenta dissimular arrependimento, deveria valer para Bolsonaro e seu clã. Não é pedindo desculpas depois de atiçar setores ultraconservadores da população a fechar o STF ou aparecer em vídeo insuflando a fechar o STF com um soldado e um cabo que se deveria esquecer o atentado as instituições democráticas. Assim como não é chorando forçosamente e secando-se com bandeira nacional fingindo arrependimento ou publicando carta do Michel que se deveria aceitar escusas e sobrevida ao clã Bolsonaro.
Agentes públicos no exercício de suas funções administrativas não podem ser “isentados” de seus crimes administrativos depois de disfarçarem desculpas ou dissimular recuos, assim com está posto no artigo 21 do Código Penal, “o desconhecimento da lei é inescusável”. Essa premissa é princípio basilar do Direito. Quando em 2016 o então juiz Sergio Moro pediu escusas ao STF por grampear ilegalmente a presidente da República e vazar a conversa dela com Lula, Moro não deixou de praticar outros crimes antidemocráticos, como mais tarde revelou a Vaza Jato. Criminosos compulsivos são assim, eles têm seus objetivos e farão de tudo para consegui-los. Neste plano criminoso cabem recuos estratégicos e pedidos de desculpas. Muitos de nós já vimos criminosos comuns clamarem por perdão e arrependimento em tribunais ou em câmeras de TV e nem por isso serem absorvidos do escrutínio da lei. Por isso, não devem ser absolvidos os criminosos que tramam contra o estado democrático de direito.
(*) Abner Fco Sótenos é doutorando em História da América Latina no Departamento de História da University of California – San Diego (UCSD). É coautor do livro “História Escrita, História Vivida: movimentos sociais, memória e repressão política durante a ditadura militar no Brasil,” (Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2019).