Cinema e povo brasileiros resistem nas ruas e quadras

É hora da política, da cultura, da empatia e dos valores democráticos tomarem o protagonismo além das telas e mudarmos a realidade que vivemos em frente e atrás das câmeras
Exibição do fime Marighella para estudantes em Embu das Artes na falsa data do Golpe de 1964

Texto e fotos por Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá da MediaQuatro especial para os Jornalistas Livres

Há pouco mais de 30 anos, a indústria cinematográfica brasileira sofreu um dos seus maiores golpes com o fim da estatal Embrafilme decretado pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello. O primeiro presidente eleito pelo voto popular, contra Luiz Inácio Lula da Silva, contou com o apoio explícito e atuante das elites, da classe média e da Grande Mídia, com a Globo inclusive preparando cenário de pastas com papeis em branco que “teriam denúncias graves” contra o petista e editando o debate final no Jornal Nacional para favorecer o candidato que prometia privatizar as estatais, acabar com a corrupção e lutar contra o comunismo e em favor de Deus e da família. A indústria só vai começar a se reerguer depois do impeachment de Collor e com a promulgação da Lei do Audiovisual e da Lei Roaunet. O marco da chamada Retomada é o longa Carlota Joaquina: Princesa do Brazil, de Carla Camurati, de 1996. No entanto, só iríamos alcançar ao número médio de 80 lançamentos por ano que tínhamos na década de 1980 nos anos de governo do Partido dos Trabalhadores, com o pico de 127 longas lançados em 2013. De lá pra cá, o setor só caiu, assim como a democracia.

Lula participa da pré-estreia de Marighella, de Wagner Moura, no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em dezembro de 2021

De qualquer modo, com a competição feroz do cinema estadunidense, se você tem menos de 50 anos é bem possível que jamais tenha assistido a um filme nacional no cinema. Se assistiu é porque foi pelo menos classe média nos anos PT e foi ao cinema antes do golpe contra a Dilma. Ainda assim, existe uma grande probabilidade de ter visto algum filme de comédia produzido pela Globo Filmes como Minha Mãe é uma Peça, com Paulo Gustavo, ou as exceções de praxe como o excelente Central do Brasil, dirigido pelo Walter Salles (da família de banqueiros do Itaú), Cidade de Deus, do Fernando Meirelles e Kátia Lund, e os violentos Tropa de Elite, de José Padilha. Não citamos aqui os filmes produzidos pela Igreja Universal porque os números de bilheteria simplesmente não são confiáveis, como, de resto, a pregação da teologia da prosperidade.

Em pé, da esquerda para a direita, Arthur Pizzo, Denis Feijão, Eduardo Suplicy, Anderson Sabotinha, Ivan 13P, Cidálio Santos, Cynthia Alario e o povo da Craco entusiasmado em 2015

Se mora na periferia de São Paulo, outra possibilidade é que tenha sido um dos mais de 80 mil espectadores a ter assistido a uma das mais de 600 sessões do Projeto CineB (https://projetocineb.com.br/ ) nos últimos 15 anos. Nós tivemos o privilégio de cobrir aquela que talvez tenha sido a mais intensa de todas: a exibição em 2015, em pleno Fluxo da Cracolândia, do documentário Sabotage – O Maestro do Canão, de Ivan 13P. O esquema foi o mesmo da maioria das sessões do projeto até hoje: a montagem de uma sala de cinema ao ar livre com cadeiras padronizadas, pipoca de graça feita Seu Antônio e projeção em tela grande com alta qualidade de som e imagem. O público majoritário, no entanto, não era composto pelos usuais estudantes de escola pública, ativistas por moradia, movimentos sociais, etc. E junto aos produtores do longa e Sabotinha, filho do rapper assassinado em 2003, estava também o então Secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Eduardo Suplicy, para quase desespero do prefeito Fernando Haddad. Ele se preocupou desnecessariamente com a segurança do ex-senador que recebeu apenas carinho dos moradores da Craco. Nossa reportagem sobre isso para os Jornalistas Livres está disponível aqui: https://medium.com/jornalistas-livres/um-bom-lugar-c45f5df44b4.

Ex-Senador Suplicy, então Secretário de Direitos Humanos da cidade de São Paulo, recebe o carinho dos moradores em situação de rua

Povo da Craco atento à história do rapper Sabotage, tão próxima de sua própria realidade

Depois de 2015, com nossa mudança para Uberlândia e depois Cuiabá, para trabalhos em universidades federais e junto aos movimentos sociais de Minas Gerais e Mato Grosso, tivemos menos contato com a Brazucah, produtora do agora CineB Solar. Mas no final do ano passado, de volta a São Paulo para um período de pós-doutorado na USP, fomos procurados pelo diretor da produtora para acompanhar algumas sessões de novos filmes nacionais no momento em que o projeto completa 15 anos e o país voltou aos níveis de inflação, corrupção e fome de 30 anos atrás. A primeira sessão com nossa presença ativou o mesmo sentimento da projeção de Sabotage no Fluxo, mas também algo de Cinema Paradiso. Novamente as cadeiras da plateia estavam dispostas sobre o asfalto do centro de São Paulo e o público era formado majoritariamente por homens adultos, alguns já idosos, e que conheciam a dureza da vida como pessoas em situação de rua. Projetada na parede do prédio ao lado da casa histórica de uma família italiana doada para o Centro de Acolhida Morada São Martinho de Lima, no Brás, a história do músico Pixinguinha em docudrama dirigido por Denise Saraceni e estrelado por Seu Jorge e Taís Araújo. Na plateia, muita emoção por músicas da infância como Carinhoso e também pela luta do compositor contra o vício na bebida. (Vejam matéria sobre a sessão aqui https://projetocineb.com.br/?p=14459).

O pipoqueiro Seu Antônio preparando o carrinho ao lado da van do CineB Solar na rua sem saída, entre o Templo de Salomão e o prédio administrativo da Assembleia de Deus, em que seria apresentada a história de Pixinguinha em março de 2015

Foi bom reencontrar o diretor da Brazucah, Cidálio Vieira, e saber sobre como o projeto resistiu aos anos pós-PT de apoio à cultura nacional e especialmente durante a pandemia que esvaziou até os cinemas lotados de super-heróis importados. Mas foi ótimo ver como o brasileiro se reinventa e segue firme! Pouco antes da pandemia, o CineB já tinha virado “Solar”. Uma van adaptada com placas fotovoltaicas carrega não somente projeto, cadeira e carrinho de pipoca, mas também baterias com carga suficiente para não depender de tomadas em locais periféricos onde talvez nem a luz tenha chegado ou não seja estável. Durante a proibição de aglomerações, a inovação foi o CineB Solar na Janela, com as projeções sendo feitas em paredes de conjuntos habitacionais populares e fortes caixas de som para que os moradores pudessem assistir os filmes de casa com mais segurança de não serem contaminados pela Covid-19.

O diretor da Brazucah Produções se preparando para a exibição do filme Pureza em escola de Educação para Jovens e Adultos, muitos imigrantes haitianos, no bairro de Perus, São Paulo, 2022

Foi assim que Cidálio e Cínthia Alario, os diretores da Brazucah, conseguiram segurar firme nos momentos mais difíceis. Isso e o patrocínio, desde 2007, do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região. Foi na gestão do então presidente Luiz Cláudio Marcolino, depois deputado estadual e hoje vice-presidente da CUT-SP, que a produtora começou o projeto. Numa sessão posterior, na sede da Associação dos Movimentos de Moradia da Região Sudeste, o ex-deputado contou que durante o mandato também houve verba estadual dentro do programa Cine Comunidade, que levou projetos semelhantes de cinema nacional para outras cidades do estado. Mas, segundo ele, a continuidade ininterrupta da parceria do sindicato com a Brazucah nas gestões de suas sucessoras (Juvandia Moreira e Ivone Maria da Silva) deveu-se à compreensão de que é preciso “formar público pras produções nacionais onde as pessoas às vezes não têm acesso a cinema, seja pela distância ou pelos custos. É no nosso audiovisual que podemos ver nossa história, nossa realidade e refletirmos sobre quem somos”.

Luiz Cláudio Marcolino, em pé ao centro, entre ativistas da Associação dos Movimentos de Moradia da Região Sudoeste de São Paulo e as dançarinas do Grupo Mulheres da Casa, que também atuam com cultura na região há muitos anos

De fato, o projeto levou recentemente às telas dois filmes que, assim como o povo brasileiro, também enfrentaram dificuldades imensas nesse governo avesso à cultura e à história. O primeiro foi Mariguella, de Wagner Moura, que teve pré-estreia em dezembro de 2021 na Quadra dos Bancários, em São Paulo pelo CineB (https://projetocineb.com.br/?p=13758) ao mesmo tempo em que nós cobríamos para os Jornalistas Livres a exibição no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, com a presença de Lula, do filho do ativista, Carlinhos Marighella, e atores do filme (Veja matéria dos Jornalistas Livres aqui https://jornalistaslivres.org/lula-homenageia-marighella-as-vesperas-dos-110-anos-do-militante/). Em 31 de março de 2022, a falsa data do Golpe de Estado de 1964 foi a deixa para outra exibição pelo CineB, desta vez na quadra esportiva de uma escola estadual em Embu das Artes para centenas de estudantes secundaristas (Veja matéria aqui https://projetocineb.com.br/?p=14488). Com aulas na semana anterior sobre o contexto do golpe e das torturas, mortes e censura sob o regime do AI5, jovens adolescentes puderam ver na tela o que acontece quando falhamos em preservar a democracia, ainda que falha, no Brasil.

Público concentrado pra ver na tela grande a história do guerrilheiro Marighella em 31 de março de 2022 na Escola Estadual Tadakio Sakai, em Embu das Artes

Já na data de aniversário de 15 anos do projeto e de 99 anos do Sindicato dos Bancários de São Paulo, 19 de abril desse ano, foi a vez de mais um filme premiado no exterior e que levou mais de dois anos para conseguir ser exibido em nosso próprio país: Pureza, de Renato Barbieri (Veja matéria aqui https://projetocineb.com.br/?p=14712). Cru e real como Marighella, a película mostra a vida e a luta de Pureza Lopes Loiola, interpretada por Dira Paes, para resgatar o filho Abel do trabalho escravo, em plena “democracia” do governo de Fernando Henrique Cardoso. A realidade de pistoleiros no meio da selva amazônica, no Pará, matando ativistas a mando de grandes proprietários ricos vivendo em São Paulo e com conexões políticas em Brasília infelizmente não poderia estar mais atual. Afinal, o desgoverno de agora está indo muito além nos quesitos perda de direitos, fome, desemprego e privatizações a preço de banana do que o vivenciado na década de 1990. E, da mesma forma que o cinema nacional fez naquela década para renascer e que nós fizemos no início dos anos 2000 para encerrar um governo neoliberal e dar respostas às reais necessidades do povo brasileiro, é hora de juntarmos nossos talentos, nossa força e nossa esperança para enfrentarmos o fascismo que permitimos ter sido eleito.

Os aniversários de 15 anos do CineB e de 99 anos do Sindicato dos Bancários de São Paulo e Região foram comemorados com a exibição do filme Pureza, sobre a escravidão moderna no Brasil, na sub-sede do Sindicato na região da Avenida Paulista, abril de 2022

Luzes, Câmera, Luta!

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Maravilha d trabalhos an Ti Preconceitos.Viva !!-

POSTS RELACIONADOS