Por Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Desde os primeiros momentos do governo de Jair Bolsonaro ficou claro que estávamos dentro de uma “questão militar”, termo consolidado na bibliografia especializada para definir experiências de intervenção dos militares na política. O que talvez não seja tão evidente é que a tal “questão militar” não é invenção do bolsonarismo. Na verdade, tem vida longa e se arrasta desde o final da década de 1970, quando o país iniciou sua lenta, gradual e pactuada transição democrática.
Os acampamentos golpistas na frente dos quartéis do Exército, a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, com a clara adesão de parte considerável das Forças Armadas. Esses eventos não estão isolados no processo histórico recente brasileiro e dizem muito sobre os limites de nossa ordem democrática, sobre os entulhos autoritários que herdamos da ditadura.
A boa notícia é que estamos, hoje, diante da oportunidade histórica de, finalmente, enterrar a tradição golpista das Forças Armadas.
Antes, vale refrescar a memória do leitor e da leitora, mostrando como a crise democrática em curso no Brasil é marcada pelo golpismo militar. Para citar apenas alguns exemplos.:
- Em fevereiro de 2018, Michel Temer nomeou o general Joaquim Silva e Luna para comandar o Ministério da Defesa, rompendo com a tradição que vinha desde os anos 1990 de escolher civis para a chefia da pasta. Um civil no controle Ministério da Defesa era o símbolo da tutela do poder civil sobre os militares, algo fundamental para um país que tem sua história atravessada por quarteladas.
- Em março de 2018, ainda no governo Temer, começou a intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. O general Braga Netto, até então ilustre desconhecido para a maioria da população, foi nomeado interventor, o que na prática lhe deu poderes de governador do Estado. Desde o fim da ditadura que um militar não tinha tanto poder sobre a sociedade civil.
- Em 3 de abril de 2018, também no governo Temer, o general Eduardo Vilas Boas, então comandante do Exército, utilizou o Twitter para ameaçar o Supremo Tribunal Federal, constrangendo a corte a negar o habeas corpus a Lula. Em entrevista recente, Vilas Boas disse que a mensagem foi redigida em conjunto pelo alto comando das Forças Armadas.
- Em 1º de outubro de 2018, Dias Toffoli, então presidente do Supremo Tribunal Federal, disse que preferia usar o termo “movimento de 1964” a “golpe de 1964”, em claro gesto de negacionismo histórico. Na época, Toffoli havia nomeado o general Fernando Azevedo como seu assessor pessoal, com quem acompanhou a apuração do resultado do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, realizado em 7 de outubro.
Tudo isso aconteceu antes de Jair Bolsonaro vencer as eleições e assumir o governo. Quando Bolsonaro subiu a rampa do Planalto, portanto, a política brasileira já estava profundamente militarizada. É claro que Bolsonaro intensificou ainda mais a militarização, ao entregar oito dos seus 22 ministérios para o comando de militares, sem contar os cargos de segundo escalão e a própria vice-presidência da República. Mas seria equivocado dizer que Bolsonaro criou o problema. Neste aspecto, ele é mais consequência do que causa.
As raízes mais profundas da questão nos levam ao final da década de 1970. Naquele momento, liderados por Ernesto Geisel, setores das Forças Armadas começaram a se convencer de que era hora de voltar aos quarteis e devolver o poder aos civis. Começou aí aquilo que ficou conhecido como “distensão”, que encontrou oposição dentro do próprio governo militar, com destaque para Sílvio Frota, ministro do Exército, que liderou uma insurgência contra Geisel. O movimento foi derrotado e Frota demitido em agosto de 1977.
A “linha dura” liderada por Sílvio Frota continuaria resistindo à distensão, promovendo, inclusive, o atentado terrorista do Rio Centro, em abril de 1978. Os distensionistas acabaram vencendo a disputa interna e negociaram com as lideranças civis os termos da redemocratização.
Anistia ampla, geral e irrestrita, que protegia juridicamente os militares envolvidos em crimes contra a humanidade. Privilégios previdenciários. Manutenção do pleno controle militar sobre a formação do oficialato. Justiça específica em que os militares acusados de conduta criminosa são processados e julgados por seus pares. Serviço de saúde específico para os militares e seus familiares.
Eram esses os termos da negociação. Foi esse o preço que a sociedade brasileira pagou pela volta da democracia. Não estou entre aqueles que criticam as lideranças civis por terem “cedido” às exigências dos militares. As possibilidades de ação eram bem restritas e as Forças Armadas tinham o controle efetivo do país. Foi a redemocratização possível.
Hoje, no entanto, a situação é completamente diferente. As eleições de 2022 consagraram a vitória da ordem democrática. Os militares golpistas não têm sustentação internacional e são apoiados apenas por uma minoria da população.
Finalmente, é possível realizar a tão necessária reforma militar, começando pela punição exemplar dos militares que, de alguma forma, participaram da ação golpista de 8 de janeiro.
Punir não com aposentadoria compulsória. Punir com a cadeia.
Os privilégios previdenciários precisam ser revistos, pois não há motivo nenhum para que os servidores das Forças Armadas tenham benefícios que não contemplam os outros funcionários públicos. Os currículos das escolas militares precisam ser completamente reformulados pela inteligência civil, com a abolição imediata da semântica da Guerra Fria e da histeria anticomunista.
Por que os militares e seus familiares têm acessos a serviço público de saúde independente do SUS e de muito melhor qualidade do que aquele que atende o restante da população?
Que tipo de rigor podemos esperar por parte da justiça militar, dominada pelas próprias corporações militares sem nenhum controle externo?
De uma vez por todas, a democracia brasileira precisa convencer as Forças Armadas a aceitarem aquilo que são: burocracia de Estado que, como qualquer outro setor do serviço público, deve cumprir ordens.
Em entrevistas e discursos públicos, o presidente Lula demonstra que não está disposto a conciliar com as frações golpistas das Forças Armadas. A troca do comando do Exército, com a saída de Júlio Cézar Arruda e a nomeação do legalista Tomás Paiva, mostra que o mandatário está priorizando não apenas o seu governo, mas o fortalecimento da democracia brasileira.
O Brasil não pode mais admitir que de tempos em tempos suas forças armadas se achem no direito de tomarem para si o governo da nação. As armas que a sociedade entrega aos militares devem ser usadas na defesa da soberania nacional, no patrulhamento das fronteiras, na garantia da sobrevivência e dos direitos dos povos indígenas e outras comunidades isoladas. Não são para chantagear o país.
Chegou o momento de encerrar, de uma vez por todas, o capítulo da redemocratização. O equilíbrio de forças é favorável. Os generais golpistas não estão mais em condições de fazerem exigências. Diferente do que aconteceu há 40 anos, são o lado mais fraco da disputa. A democracia está no poder.