Censura ao filme “Boy Erased” tem a ver com homofobia institucional

Por Rodrigo Veloso

Nas últimas semanas quem aguardava o lançamento no Brasil do filme indicado ao Globo de Ouro “Boy Erased: Uma verdade anulada“, teve uma ingrata notícia. O longa, que trata da história de vida de Gerrard Conley e sua juventude perturbada por terapias de reversão da sexualidade, teve o lançamento cancelado pela sua distribuidora, a Universal Pictures.

A empresa alega que o desempenho projetado para bilheteria não compensaria os custos de sua distribuição nos cinemas, e por isso, “única e exclusivamente”, diz sua nota oficial, o lançamento inicialmente previsto para o dia 1 de fevereiro foi cancelado, com promessa de distribuição para pay per view.

Pessoas que aguardavam pelo filme ou que já o assistiram no exterior usaram as redes sociais para reclamar.

Um dos primeiros a questionar se o motivo real não seria outro, bem menos defensável, foi o ator Kevin McHale, conhecido pelo seu trabalho na série Glee. Em uma mensagem em inglês pelo Twitter, ele disse: “Começa assim. Boy Erased foi banido no Brasil. Bolsonaro é perigoso e uma ameaça para a comunidade gay no Brasil. Censurar um filme sobre os riscos da terapia de conversão é apenas o início.”

E sua denúncia circulou muito pela imprensa americana e os círculos ativistas. Até o presidente Jair Bolsonaro se viu obrigado a respondê-lo [usando sua tradicional linguagem truculenta para assuntos que envolvem as minorias]. Ele disse simplesmente que teria mais o que fazer.

A denúncia de McHale, contudo, não deve ser lida como se ele acreditasse que Bolsonaro tem diretamente o poder de censurar filmes. O que ele diz, e tem razão, é que o contexto político do “novo Brasil” influencia decisões como esta, baseadas em preconceitos.

Em 2012, parlamentares da Frente Parlamentar Evangélica decidiram impulsionar no Congresso um projeto de lei do deputado João Campos que regulamentaria as instituições que ganham dinheiro prometendo cura gay, e tiveram veemente apoio do hoje presidente Bolsonaro nas audiências públicas. Em uma delas, ele disse que os então deputados Jean Wyllys e Erika Kokay estavam contra porque também seriam gays.

Em 2017, quando já se imaginava que a matéria estava definitivamente encerrada, um juiz da 14ª vara da justiça federal de Brasília deu autorização para que as “curas” fossem realizadas, e novamente não faltaram aqueles que vieram a público defender a sentença, enquanto o Conselho Federal de Psicologia dizia que o procedimento era errado, prejudicial aos que eram submetidos a ele e que ainda poderia agravar quadros de depressão.

E a atual ministra dos direitos humanos, a quem caberia cuidar das minorias, não só acredita nesse charlatanismo como passou boa parte dos seus últimos anos viajando pelos estados brasileiros prometendo aos pais de crianças e adolescentes LGBTs que este poderia ser um caminho para melhorar suas vidas.

O ator americano hoje vê Bolsonaro presidente do país e um filme aclamado retirado de uma programação que já estava pronta como quem só está acostumado a ver filmes de Hollywood banidos pelas cenas gays em país ditatoriais e extremamente conservadores. Não faltam razões para associar as duas coisas.

No melhor dos mundos, o que é muito difícil de acreditar com tantos membros do governo divulgando fake news e difamações sobre pessoas gays, a política não teria tido qualquer peso e a empresa estaria pensando “apenas” em seus lucros, mas até aí haveria homofobia a ser questionada.

Pois, quando um filme de tamanha repercussão é avaliado como de difícil aceitação, parte, pode-se creditar à homofobia que estruturalmente apaga os talentos de pessoas LGBT e enclausura-as em rótulos. É muito comum. Muitos filmes já enfrentaram no circuito nacional situações semelhantes. E vez ou outra algum diretor diz que teve dificuldade de captar recursos ou distribuir um novo filme por conta de cenas de amor entre seus personagens. Até o longa sobre Freddie Mercury, que está indicado ao Oscar e é um sucesso mundial de bilheteria, sofreu com reações violentas.

Se alguém tem dúvida de que o afeto entre pessoas LGBT ainda motiva o ódio e que este público pouco tem o direito de se ver retratado nos cinemas, faça um teste rápido e consulte quantos romances em cartaz no cinema mais próximo têm esse perfil. E mais ainda, imagine-se pertencente a uma comunidade com milhões de pessoas, como parte de um público que sempre vai ao cinema, e que mesmo assim não é contabilizado nas projeções medíocres que as empresas fazem sobre o sucesso de um filme.

É assim que nos sentimos sobre Boy Erased. Ofendidos por um governo que torce para nos varrer até dos filmes; apagados por uma empresa que não nos contabiliza; e negligenciados na dor por uma imprensa que nem sempre aborda a dimensão completa do problema.

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