Porque só conhecemos as histórias dos brancos torturados na Ditadura? 

Robson foi torturado e morto pelas mesmas técnicas pelas quais os brancos foram assassinados na Ditadura

Por Kátia Passos e Lucas Martins

Em 31 de março deste ano, véspera de descomemoração da Ditadura Militar, uma investigação histórica ganhou mais luz depois de tantos desencontros: uma manifestação popular no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, marcou o desarquivamento de documentos do caso de Robson Silveira da Luz. 

Robson, era um jovem negro de 21 anos, comerciante e tinha uma venda no centro de São Paulo. 

Para Sueli Luz, viúva Robson, o ato significou a soma da luta de muitos anos

“A gente tá lutando, não só pelo Robson e sim pela maioria das pessoas hoje, né? Porque matam como se fosse bicho. Nenhum bicho deve ser morto. Pode fazer o que eles fazem? Não pode, né? Então eu fui à luta! Mesmo eles [a polícia] mandando bilhete, falando que ia me matar, pondo medo em mim. Eu falei, eu vou até o fim, senão eu morria. Então foi um jeito de eu também viver, porque eu tinha mais dois filhos para criar”

A viúva Sueli Luz com uma cópia de uma das páginas do processo Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres

Robson foi um nome que invocou muitas histórias, mas foi pouco conhecido em vida, como são cotidianamente tratadas as vidas negras, pobres e periféricas no Brasil dos racismos deles [pessoas brancas] de cada dia. Já sua morte gerou manifestações que mobilizaram, reorganizaram e fortaleceram os movimentos negros em plena Ditadura Militar. Muitos atribuem a essa movimentação, a criação posterior do Movimento Negro Unificado – MNU, em 1978. Os documentos, compilados em onze volumes, poderão esclarecer muitas dúvidas sobre a conduta dos três assassinos. E ajudar a recontar a história que movimentou o Brasil à época. 

Lucas Scaravelli da Silva, historiador e militante que buscou os documentos, contou como foi o processo para acessá-los

“Fui atrás de Rafael Pinto, que é um dos fundadores da organização [MNU], foi através dele, de sua memória e memória vivência que tudo começou. Ele me indicou o Celso Fontana, que foi um dos advogados do segundo momento do processo. Fiz um primeiro acesso com meu pai, durante a pandemia, mas foi praticamente impossível progredir. Tive que fazer todo um trânsito burocrático, agendamentos e justificativas para o Fórum. E não fui bem recebido, fui muito mal recebido. Eles queriam saber tudo. Disseram que esse arquivo nunca havia sido acessado e eu quis entender o porquê? Agora temos um arquivo catalogado e livre conosco. Mas minha intenção é que a história não seja contada por mim e sim pela família do Robson. E ele [o processo] agora é público. Ele está liberado pras pessoas acessarem, não só para nós”

O historiador Lucas Scaravelli da Silva com uma das milhares de paginas do caso Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres

Essa luta pelo desarquivamento contou com a presença de diversas organizações e militantes, de diversas gerações, acompanharam o processo. No ato estiveram presentes Regina e Lenny Blue – (MNU), João Elias (MNU), José Adão (MNU), Rafael Pinto (MNU/Conen), Simony (Marcha das Mulheres Negras), João de Xangô (Conen), Romildo (SOWETO), Edson Roberto (IGBADU), Paulo Rafael (SOWETO), Júlio (Mandata Coletiva Quilombo Periférico), Renata Eleutério Adriano e Fernando (CPDOC Guaianás) e Celso Fontana (Advogado de Robson). 

O assassinato de Robson, perpetrado por agentes da ditadura, motivou a tese apresentada pelo movimento negro que nega a diferença entre presos políticos e “comuns”, apontando o caráter político de todas as prisões e violências de Estado. O caso, por si só, é emblemático, uma vez que os culpados, policiais, foram punidos por conta de uma ação que teve início em plena Ditadura. Situação quase inimaginável na época. Nenhum dos três policiais foi preso, mas foram expulsos da corporação.  

Anos depois, a Ditadura é rememorada e seu fim celebrado. Mas seus crimes seguem sem punição e, na maioria dos casos, sem resolução. Por isso o ato no Fórum da Barra Funda é importante. Por mais que o caso de Robson seja conhecido, muitas dúvidas existem. Com o acesso aos documentos, informações verídicas virão. 

Por isso, para entender mais sobre o caso, conversamos com três historiadores que  investigam a história de Robson. 

Lucas Scaravelli da Silva Historiador, doutorando em Antropologia Social e militante da SOWETO, organização Negra, que buscou o acesso e a liberação do processo. 

Renata Eleutério, mestra em Ciências Sociais UNIFESP, integrante e idealizadora do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica – CPDOC Guaianás que trabalha com memória, história e patrimônio no extremo leste da periferia de São Paulo, realiza pesquisas, entrevistas e documentários em relação a memória e histórias dos bairros periféricos por processos de organização popular.

Paulo César Ramos, doutor em sociologia pela USP, pesquisador de pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia. e pesquisador do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, coordenador do Projeto Reconexão Periferias da Fundação Perseu Abramo, fez seu doutorado sobre violência policial e genocídio negro que o levou a uma investigação o caso do Robson.

Jornalistas Livres – Qual é a importância de relembrar em 2022 a história de Robson?

Renata Eleutério – Faço parte de um coletivo de pesquisadores periféricos tentativa autônoma de documentação histórica do extremo leste de São Paulo [Guaianases, Lajeado, outros]. Pesquisamos a memória dos patrimônios desses bairros, uma vez que o extremo leste é colocado como um lugar que não tem nada, portanto, não produz histórias. E quando aparecem são os heróis do bairro, as grandes famílias, sempre italianas, portuguesas, espanholas dizendo que trouxeram o progresso para o bairro. Então questiono e busco a memória desses trabalhadores, para identificá-los enquanto sujeitos dos processos históricos e acumuladores de lutas por isso, o trabalho de memória e patrimônio da região.

Nesse sentido a questão do Robson chega até nós. Começamos a evidenciar pontos sobre esse processo da Ditadura no território. Temos, por exemplo, três incêndios no cemitério do Lajeado como uma forma de apagar desovas que ocorriam.  Depois encontramos um espaço que fica no [conjunto habitacional] Prestes Mais, que era o aparelho do DOPS, mas não foi identificado como tal. A gente não encontrou na Comissão da Verdade, mas toda a documentação que a gente encontra desse lugar indica que ele foi o aparelho do DOPS. 

Quando Robson é preso em 1978, ele já tinha passagem em 1976. A esposa dele nos contou essa história: eles moravam no Jardim Soares, Guaianases. Segundo ela, Robson curtia bailes, gostava de jogar futebol, tinha um time preferido, o clube Primeiro de Maio, várzea importante em Guaianases e ele trabalhava com o pai no Ipiranga, onde tinha uma vendinha. Nessa entrevista, Sueli narra que ele andava com um grupo gigante de jovens que passavam pela rua e resolveram pegar frutas de uma casa vizinha. Ela conta que ele queria pagar, mas que não foi possível voltar para pagar. A partir de então Robson foi perseguido e há aqui acontece um outro processo. 

Primeiro ele era negro e já tinha passagem. Outros pegaram as frutas também, mas ninguém assumiu essa questão. Robson foi preso. Pegaram ele dentro de um ônibus, quando estava indo trabalhar e o levaram para a delegacia. Robson foi retirado da delegacia para sofrer tortura em outro lugar. Simone foi perseguida pela polícia que chegava a ir na casa dos seus pais ameaçá-la. 

JL – O que te mobilizou a dedicar muito tempo de sua vida para buscar os documentos do caso? 

Lucas Scaravelli da Silva – Primeiro como alguém se preocupa em contar história né? Geralmente as pessoas se comovem com qualquer sofrimento, menos o sofrimento dos marginalizados e dos subalternizados. Quando se fala em genocídio e com todo respeito que a história merece, mas se fala sempre em genocídio do povo judeu. Agora, a população preta, a população de África em África, sofre genocídio há mais de 600 anos.  Principalmente o genocídio colonial da história, porque conta-se a história a partir da Grécia, da Magna Grécia, e não do Egito clássico. Por isso, a morte de Robson Silveira da Luz, é apenas mais uma de várias mortes que já tinham acontecido desde 1600 quando os negros chegam a primeira vez no Brasil dos séculos XV e XVI. 

Mas essa história [o assassinato de Robson] acaba não sendo só mais uma, porque a negra de classe média baixa no final da década de 70, quase no final da Ditadura, já com período de abertura, tinha tido acesso a uma educação de qualidade resolveu se manifestar e se impor.

A morte de Robson impulsionou a reorganização dos movimentos negros, negras e negros no Brasil. Nós temos os partícipes da reorganização do movimento, que são pessoas como Lélia Gonzalez, Hamilton Cardoso, Milton Barbosa que são pessoas importantíssimas no ato fundacional. O Robson acaba se tornando um mito fundacional. E é geralmente isso que acontece na história dos marginalizados. A gente passa a criar os nossos próprios mitos, sejam eles míticos ou não, para que tenha sentido a nossa existência e o nosso sofrimento não tenha sido em vão. 

Recontar a história do Robson é dar nome, lugar, endereço, rosto, voz, família, um estatuto ontológico humano para esse ser preto, que geralmente é retirado nos anais oficiais. E quando se conta essa história, as informações sempre desencontradas, as próprias lideranças não sabem, mas isso não é responsabilidade deles. Isso é responsabilidade de uma organização social e do Estado, que tem como intenção o apagamento dessas memórias. 

Eu como um sujeito preto que se entende com o preto, se reconhece como preto e vive como preto porque eu sou lembrado o tempo todo pela política, preciso recontar a história. Essa contação, portanto, torna-se parte da história da minha família e da minha vida. 

Meus pais participam das ações de reorganização dos movimentos negros e eu cresço e sou hoje um adulto que foi criança nas décadas 80 e 90, sempre atravessado por essas histórias. Então recontar a história de Robson é não deixar o Amarildo morrer, não deixar o menino João morrer, Marielle Franco não morrer e tantas outras pretas e pretos que morrem a cada 20 minutos no Brasil por violência policial e motivo fútil.

JL – Ao longo da pesquisa acadêmica, como foi possível descobrir as entranhas da vida de Robson?

Paulo César Ramos – Robson é um nome muito conhecido e muito circulado, cuja vida é ignorada. É angustiante, e quando eu fiz a minha defesa de doutorado eu comecei a reconstituir o caso e não estava interessado na vida do Robson. Estava interessado no conflito que produziu a morte dele.  Depois o conflito que se seguiu a morte dele. Ou seja, a mobilização social contra a violência policial. O nome dele sempre foi muito repetido. 

A memória do Robson é reivindicada pelo movimento negro. Mas sabemos pouquíssimo sobre sua história. Assim como sabemos pouquíssimo sobre outras vítimas de policiais que são mortas todo dia. A morte fica famosa, mas a vida não fica. 

Escrever a tese foi um pouco angustiante. Contar a história da morte das pessoas e não saber nada da vida delas, não saber como é que elas viveram, como os familiares sobreviveram….

A história do Robson é muito confundida. Às vezes as pessoas falam que ele era feirante. Ele não era, tinha 27 anos e não tinha. Foi acusado de roubar frutas na feira, não foi isso. Eu estou sempre interessado em corrigir essas confusões que fizeram em torno dele. Foi possível reconstituir a ocorrência. Ele era comerciante, tinha um boteco no centro de São Paulo, onde dormia durante a semana e nos finais de semana ele voltava para casa e dormia em casa.

Em uma sexta-feira à noite, foi para uma festa e voltando com os amigos, passou em frente a um caminhão de frutas que estava preparando para feira e pegou umas caixas de frutas. Mas era coisa de vizinho, entendeu?  E aquilo foi interpretado dentro de uma chave racial de relações contenciosas entre vizinhos. Uma vizinha viu e avisou a polícia. Só que a polícia ficou uma semana atrás do Robson. 

Gastaram tempo, prenderam um homem, torturaram o cara, mas ele não entregou ninguém. Prenderam a esposa do Robson, ou seja, levaram para a delegacia para ver se ela falava alguma coisa. Ela estava grávida. E depois houve uma perseguição ao Robson, o pegaram em um ônibus. Ele é levado para delegacia e apanha tanto que perdeu o testículo. Ele estava irreconhecível, não resistiu aos ferimentos e acabou morrendo. 

E por que esse crime foi tão poderoso para o movimento negro? Foi um instrumento do Estado dentro do contexto da Ditadura Militar em que o jovem negro morre sobre as mesmas condições que outros presos políticos morriam. Ele não era político. Ele era um jovem negro comum. E esse jovem negro comum é quem era criminalizado antes, durante e depois da Ditadura. Por isso, infelizmente, ainda é atual falar do Robson.

O Robson é um caso emblemático, que tem o papel de ser uma contra mitologia em oposição à mitologia da democracia racial. Ele é o emblema da anti democracia racial. E a partir do momento em que ele foi morto, as circunstâncias da morte dele foram tão simbólicas, tão cheias de significados, que o movimento negro resolveu fazer dele um emblema da sua luta. Luta contra a Ditadura e contra o Racismo. Por isso que em 1979, no Congresso Nacional de Anistia, o Movimento Negro Unificado defendeu a tese de que todos os presos eram presos políticos. É que neste caso o Robson foi torturado pelas mesmas técnicas pelas quais os brancos foram assassinados na Ditadura. Mas Robson não era um militante político, não era de classe média. Era um trabalhador, que tinha família.

JL – Qual é o simbolismo de realizar esse ato no Fórum? 

Lucas Scaravelli da Silva – O Fórum é um símbolo do Estado que geralmente julga com as brechas que a lei possui. Quem tem acesso a formatação das leis, são as pessoas privilegiadas socialmente e a gente precisa dar cor e nome para elas: brancos que representam determinadas simbologias que os marginalizados não têm. E são eles que vão dizer se nós vamos ser justiçados ou injustiçados? 

O caso do Robson foi o primeiro caso a ser julgado e vencido dentro da ditadura, contra a própria ditadura e não é revelado. É justamente essa a tentativa do Estado de alavancar e silenciar as vozes dos oprimidos. Então estar lá na frente do fórum, como ato simbólico é dizer para eles: a gente venceu. Então é uma história que nós vamos contar. Eu conto para os meus filhos, os meus pais me contaram e a intenção é que a gente continue fazendo isso.

JL – E com acesso aos documentos, como você pretende fazer essa reconstituição do caso?

Lucas Scaravelli da Silva – Dar nome a quem são as pessoas e trazer mais fatos além daqueles que já descobrimos com a pesquisa. Por exemplo, a esposa do Robson ainda vive todo o sofrimento que ela teve que passar por ser perseguida. Ela continua no processo, o quanto ela não tinha dinheiro para pagar advogados que aceitassem enfrentar a ditadura. Isso tudo sendo uma mulher preta, doméstica, criando os filhos do Robson que tinham ficado. 

Inclusive, um filho do Robson que estava na barriga dela quando ele morreu, nasce. Robson foi sentenciado e morto com 21 anos de idade. Depois esse filho, morreu com 21 anos de idade, pela polícia, no mesmo local que o Robson morreu. Para você ver que a história não só se repete com todo o povo preto, mas também com o próprio filho do Robson, da mesma maneira, com a mesma idade. E como é que fica uma mulher preta? Qual é a dor da solidão dessa mulher preta? Como é que ela se constitui? 

É então para gente entender como a base da sociedade funciona. São as mulheres e, preferencialmente, mulheres pretas. Então é recontar essa história é dizer quem é quem no movimento das vidas. São as mulheres pretas, na verdade.  Robson é um mote para chegarmos a outro tipo de referência que a gente quer mostrar, que são as mulheres pretas que movimentam toda uma cadeia.

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS