Por Emanuela Godoy e Laura Capriglione
Alguns dias após os atos pela democracia tomarem conta do país, Walter Casagrande Jr., que esteve na dianteira da luta pelo direito ao voto no fim da ditadura, conversou com os Jornalistas Livres sobre a situação do Brasil.
Em novembro, o comentarista terá a experiência de uma primeira Copa fora da Globo depois de seis coberturas pela emissora. Agora, como colunista da Folha e do UOL, Casagrande promete não escrever apenas sobre os jogos. Observador da realidade fora dos campos, quer também abordar os comportamentos do país em que estará.
Com 59 anos, Casagrande tem uma vida marcada pela contestação. Na década de 80, quando o país ia aos poucos se livrando do regime militar, o ex-jogador lutou pela liberdade dentro e fora de campo. Como membro da Democracia Corinthiana, questionava a cultura autoritária do futebol, ao mesmo tempo em que defendia a volta de um país democrático.
Na Globo, onde trabalhou como comentarista esportivo por 25 anos, também nunca deixou de se posicionar. Durante os anos de TV, trocou farpas algumas vezes com o colega Caio Ribeiro. Em uma ocasião, Caio chegou a dizer que Raí deveria ter cuidado ao se posicionar politicamente, pois sua imagem estaria sempre associada à instituição São Paulo Futebol Clube. Em 2018, Casagrande também entrou em conflito com o apresentador Tiago Leifert, que criticou atletas que usavam eventos esportivos como palco de manifestações políticas. Já o ex-jogador do Corinthians defende desde sempre que futebol e política andam de mãos dadas.
Confira os principais trechos da entrevista:
Como está sendo a sua preparação para a primeira Copa fora da Globo?
Está sendo uma coisa nova. Primeiro, a credencial sou eu que estou fazendo. Antes, eu chegava lá e a Globo fazia tudo. Dessa vez, tivemos que entrar em contato com a Fifa e pedir credencial. Eles têm minha ficha, eu fiz seis copas do mundo lá, não sou também uma pessoa estranha pedindo credencial. O que vai ser diferente? Não vou estar em cabine, vou ficar sentado assistindo ao jogo e vou escrever, não vou falar. Então assim, vai ser uma novidade para mim, mas uma coisa que eu estou empolgado em fazer. Nesse momento, eu estou empolgado em escrever. Eu não estou a fim de comentar jogo. Eu não sou nem a fim de participar de programa esportivo e ficar conversando de rodada, quem fez gol, se valeu. Estou no UOL e na Folha e tenho total liberdade nos dois. Eu vou para a Copa para escrever e eu não vou escrever só sobre futebol. Eu vou estar em um país que eu não gosto. Vou estar em um país que trata mal a mulher, que teve trabalho escravo, que os caras não deixam o pessoal beber. Eu não bebo, mas quem bebe, bebe e tal. Então tem um monte de regras naquele país, que a Copa não deveria ser lá. É uma Copa do Mundo que as pessoas que estarão lá não vão poder se divertir. Para começar não tem tradição nenhuma com futebol. Eu vou para a Copa para conversar sobre os comportamentos do país e vou escrever sobre o que eu acho: se eu estou me sentindo bem, se eu estou me sentindo mal, se eu estou incomodado com alguma coisa ou não, se eu estou me sentindo livre…
Na Globo, você sempre defendeu que os jogadores deveriam se posicionar politicamente. Entretanto, nem todos os jornalistas e comentaristas esportivos pensam assim. Por que se tem essa ideia de que não podemos misturar futebol com política?
Walter Casagrande Jr. – Isso é uma coisa muito antiga, né, que eu não levo nem mais em consideração. Eu já discuti até ao vivo com pessoas que falam que jogador de futebol não pode falar de polítcia. Já tive um atrito com o Caio Ribeiro sobre isso. Já tive também um atrito com o Tiago Liefert quando gente escrevia coluna na GQ. Ele escreveu uma coluna falando que jogador de futebol não podia falar de política e eu escrevi uma coluna explicando o que é democracia. Então não adianta, os caras não conseguem entender que tudo é política. Ir num show de música, por exemplo, é político, porque tem gente que consegue passar na sua frente por ser filho de não sei quem. Então não tem nada numa sociedade que não seja político. E tem uma coisa que o Magrão (Sócrates) me falava muito e eu sempre achava que ele tinha razão: se tem uma coisa política na nossa sociedade aqui no Brasil é o futebol. Porque é ali que se vê as tensões socias. A Copa América veio para cá no meio da pandemia porque o Caboclo veio falar com o Bolsonaro. O Flamengo vai ganhar um terreno para fazer um estádio porque o Landim foi falar com Bolsonaro. Sempre se falou aqui, e era verdade, que nos anos 70, a ditadura usava o futebol. Parece que foi o Médici que fez o gol de cabeça contra a Itália, o primeiro gol do Pelé. O Bolsonaro também faz essa troca muito bem, né? Ele fala que é palmeirense, ele fala que é flamenguista, só não faz isso com o Corinthianas que sabe que vai ser uma roubada.
Já que você mencionou a música, no fim dos anos 70 você começou a frequentar inúmeros shows que tinham motivação política. Tem história sua com Raul Seixas, Gonzaguinha, Rita Lee, entre outros. O que a música representa para você?
Walter Casagrande Jr. – A música é importante para mim desde que eu me dou por gente. Quando eu era muito pequeno, meu pai trazia muitos discos dos Beatles para casa e aí, com quatro, cinco anos, eu aprendi a colocar o disco no toca-disco. Minha mãe cuidava da casa, minhas irmãs iam estudar e eu ficava ouvindo música. Brincava, mas ouvia música. O primeiro disco que eu ouvi foi um do Chuck Berry. Ouvia muito Beatles, mas tudo mudou quando eu ouvi Janis Joplin. Aí eu pensei: “Caramba, eu acho que eu sou desse jeito”. Dos anos 70 em diante, eu fui entendendo de política ouvindo música. Chico, Milton, Gil, Caetano, Ivan Lins, os caras que faziam músicas políticas. Eu conseguia entender o que acontecia no país através das músicas. E ouvi muito Belchior, e o o Belchior, na minha opinição, foi o poeta que mais retratou a dificuldade da juventude nos anos 70. Então eu comecei a crescer e a música nunca me largou. Eu acordo de manhã, coloco uma música. A música nunca para de tocar na minha cabeça.
Hoje em dia, os jogadores de futebol quase não se posicionam politicamente. Por que você acha que isso acontece?
Walter Casagrande Jr. – A distância entre os jogadores e os torcedores está ficando cada vez maior. Então o que você espera de um jogador, não só do Neymar, mas os outros também, com o Brasil passando fome? Que parte das pessoas não tem almoço e janta, e os caras postam foto do iate, mansão e lancha? E outra coisa, a grande maioria é de direita, a grande maioria apoia o Jair Bolsonaro, para eles é cômodo apoiar um cara que apoia quem tem grana. Difícil é você brigar contra uma corrente, contra uma liderança que está no poder hoje e você não concorda. E eles não estão a fim de colocar em risco aquilo que eles já têm. Para mim, não falar de política, quem está no meio do futebol, é um absurdo. O futebol é a voz do povo. Esses caras da seleção brasileira tinham que utilizar as vozes deles para passar mensagens, se posicionar, para chamar atenção: “Pô, olha a Amazônia, olha os índios, olha as florestas”. E eles não estão nem aí para nada. O meio do futebol começou a se isolar de tal maneira que eu acho que fortaleceu essa ideia do mundo do futebol.
O que você define como “mundo do futebol”?
Walter Casagrande Jr. – Aqui no Brasil tem uma cultura do tal universo do futebol. Então no mundo do futebol você pode ser racista, machista, homofóbico, ofender mulher, bater, brigar e até matar alguém que você sai do estádio e volta para a sua casa. As leis só valem na rua. É uma cultura que o Brasil tem que eu estou falando há anos. Isso de “mundo do futebol” não existe. O futebol está dentro da nossa sociedade. Se você é preso por racismo, na rua, você tem que ser preso dentro do estádio. Se você é preso quando mata alguém fora do estádio, você tem que ser preso dentro do estádio. E os próprios jornalistas insistem em falar “o mundo do futebol”, colaboram com esse engano social.
Em 84, você e o Sócrates estavam presentes no comício das Diretas Já no Anhangabaú. Agora, no dia 11, você estava no Largo São Francisco para a leitura da carta às brasileiras e aos brasileiros. Você se imaginava tendo que lutar pela democracia de novo? Quais são os paralelos entre antes e agora?
Walter Casagrande Jr. – Quando eu fui lá, no Largo São Francisco, eu pensei “tá tudo acontecendo de novo”. Nós participamos, na época, no final dos anos 70, pela anistia, aí surgiu a Democracia Corinthiana. Então nós fomos adiante, chegamos até as Diretas. Dali em diante eu fui embora tranquilo pensando que íamos ter que lutar por várias coisas que o Brasil tem de problema, desmatamento, violência, racismo. Mas pela democracia, sinceramente, eu achei que era um problema resolvido. Achei que não tinha mais risco de ter uma volta da ditadura de forma nenhuma. Eu comecei a perceber que isso poderia acontecer de novo em 2016, quando o Bolsonaro fez uma homenagem ao Ustra lá na Câmara, e eu falei “ih, cara, esse cara é meio estranho”. Aí ele ganhou a eleição. Na verdade, nós saímos do lugar, mas estão querendo que a gente volte para o que era antigamente. Em relação à palavra democracia, ela está do mesmo jeito. Porque na época da ditadura ela era proibida, e hoje você fala de democracia e você é atacado. Hoje tá pior, porque antes a gente sabia quem era o adversário. Hoje, a gente está enfrentando mentira. Quer dizer, o cara fala que é a favor da democracia e da liberdade, mas quando tem uma carta a favor da democracia ele chama a gente de cara de pau e mau caráter. Então você vê o terreno que nós estamos pisando. Naquela época, era eles contra a democracia e nós a favor da democracia. Hoje, está meio enrolado, nós sabemos que eles são contra a democracia, mas eles conseguem enganar um monte de gente se disfarçando de democratas.
O que você acha que tornou possível a Democracia Corinthiana nos anos 80?
Walter Casagrande Jr. – A Democracia Corintiana surgiu assim: eu tinha saído do Corinthians e estava em Poços de Caldas. Apesar do Matheus Vicente ter sido o melhor presidente do Corinthians, eu não concordava com o modo autoritário de comandar o clube. Além disso, eu tinha tido uma discussão com o Osvaldo Brandão, que era um treinador autoritário, mas a grande maioria era. Por isso fui embora do time. Quando eu voltei para o Corinthians, em 82, eu não conhecia quem estava dirigindo, que era o Adilson Monteiro Alves, um sociólogo. Aí ele me convenceu a ficar, fiz um contrato de três meses. E eu comecei a conhecer o Magrão. Começamos a jogar junto, começamos a sair e comecei a ouvir as ideias não só do Magrão, do Wladimir, mas principalmente do Adilson, que era diretor, e do presidente, que era o Waldemar Pires. E aí eu percebi que o negócio estava mudando e nós fomos caminhando dessa maneira: escolhendo o hotel que íamos ficar, a hora que ia ser o voo… Nós fomos discutindo, mas não tinha um nome. Era um modo dos jogadores de futebol se relacionarem com a direção. Foi quando teve um debate na PUC que o Juca Kfouri falou: “Então vocês estão fazendo uma democracia do Corinthians”. E o Washington Olivetto estava lá e, genial como ele era, já veio na cabeça dele: “Democracia Corinthiana”. Então nós começamos a colocar Democracia Corinthiana nas camisas. Quando surgiu esse slogan, além da gente ficar mais forte, a gente também ficou mais vulnerável aos ataques da ditadura. Porque até então, a gente fazia movimentos democráticos sem ter um nome. Quando colocamos Democracia Corinthiana nas camisas, aí o bicho pegou. Porque era proibido falar em democracia e nós colocamos na camisa.
Hoje em dia, é possível falar em um futebol democrático, pensando não só nos jogadores, mas também nos torcedores?
Walter Casagrande Jr. – O futebol não é democrático mais. Só vai nos estádios quem tem dinheiro. O verdadeiro torcedor, aquele cara que guardava a graninha dele para ir no final de semana extravasar e ser feliz começou a ficar excluído. Antes, as pessoas tinham condições de ir, que nem o Maracanã, que tinha Geral. A Geral do Maracanã lotava todo jogo e você via que os caras que estavam lá eram muito humildes. Hoje, não tem mais democracia no futebol, muito menos humildade, você não encontra mais esse grupo humilde no estádio. Então o futebol hoje no Brasil virou um esporte de elite. Já não é mais o esporte do povo. O país é o país do futebol, todo mundo gosta de futebol, mas nem todo mundo consegue ir ao estádio. E quando você para de ser do povo, você para de ser democrático. O futebol mudou completamente e acho que não tem mais volta. O Corinthians, por exemplo, foi campeão da Libertadores no Pacaembu com o povo colado na grade. O Tite foi expulso do jogo, saiu e ficou sentado com a torcida. Você imagina isso hoje no futebol? Primeiro, que não vai ter ninguém colado na grade, porque não tem nem mais grade e o estádio do Pacembu está destruído. E outra, você imagina o treinador que é expulso subir e ficar sentado com a torcida que está vendo o jogo?
O Zenon, camisa 10 da Democracia Corinthiana, já deu declarações dizendo que apoia o atual governo, o que você acha disso e como você se coloca nessas eleições?
Para mim não é surpresa, ele nunca foi um componente na Demcoracia Corinthiana que se posicionou. Isso mostra para mim que esse cara lá atrás não era a favor da democracia. Porque você não pode ser a favor da democracia nos anos 80 e apoiar o Bolsonaro agora. E sobre mim, já falei, sempre votei no PT, vou votar no Lula. A princípio, a coisa mais importante é que eu sou contra o governo Bolsonaro. Se o Ciro pudesse vencer o Bolsonaro eu votaria no Ciro. Mas quem pode ganhar essa eleição e tirar o Bolsonaro de lá é o PT. Então eu vou colaborar com a derrota dessa turma.
Diante do cenário atual, como está sendo a experiência de ser avô?
Eu ainda não sou muito avô, porque teve a pandemia e eu tive que ficar dois anos sem ver os meninos e tal. E meu relacionamento com os meu filhos não é muito relacionamento de pai e filho. Eu tive filho muito novo. Então eu criei meus filhos e eu nunca conversei com eles como neném, eu descia ao patamar deles e brincava com eles que nem criança. Conversava com eles numa boa assim. Tinha filho de três anos e ia batendo papo com eles. Teve um dia que eu coloquei ele na cadeirinha e ele disse assim, “pai, põe Titãs”, de tanto ele ouvir eu colocar Titãs no carro. Então meu relacionamento com eles foi desse jeito. Eu levava um papo meio de igual para igual. E minha relação com os meus netos é meio dessa maneira. Eu não consigo ser adulto perto de criança. Perto de criança eu sou criança. Eu sou adulto perto e adulto. Eu sempre fui assim. Para eles entenderem legal, você tem que ser que nem eles. Essa é a minha teoria. Quando você cria assim, quando eles crescem você não fica tanto pai, você fica mais amigo.
Confira o vídeo da entrevista com trechos inéditos a seguir: