Casa-lar dos cegos de MG: linda comunidade ameaçada de despejo

Renato Leonardo, presidente da Associação União Auxiliadora dos Cegos de MG, na porta do prédio da entidade ameaçada de despejo Foto: Frei Gilvander

Por frei Gilvander Moreira¹

Nossa atuação no meio dos empobrecidos na luta pelos seus direitos se inspira no Deus da vida, que ouviu os clamores dos escravizados sob as garras do imperialismo dos faraós no Egito e em Jesus Cristo, que cresceu na periferia da Palestina sofrendo todas as injustiças e as discriminações que se abatiam sobre os Povos colonizados pelo Império Romano e discriminados pela religião oficial, o judaísmo ritualista e moralista. Neste contexto, por amor, Jesus Cristo se esmerava em empatia e, por isso, abraçou a causa dos considerados impuros: os empobrecidos, os adoecidos, os cegados, os paralisados e os jogados para fora da convivência social. Ao optar pelos “impuros” consolava-os e incomodava os exploradores. 

Ao fazermos opção pelos empobrecidos, primeiro nos comovemos e ficamos indignados diante das injustiças que se abatem sobre pessoas e grupos que, geralmente, sozinhos, têm mais dificuldade de se defender. Aproximamos para conhecer, nos fazemos solidários e tentamos entabular lutas que levem à superação das injustiças reinantes. Pelas primeiras impressões vemos a carência e as necessidades das pessoas. Entretanto, com a convivência e o aprofundamento da luta por direitos, na convivência com as pessoas injustiçadas, ficamos encantados ao descobrir e perceber a existência de belezas e maravilhas que revelam um poço de humanidade, de sabedoria e força de resistência infinita que o povo injustiçado tem.

Assim está acontecendo na luta para impedirmos o despejo da Casa-Lar dos Cegos de Minas Gerais, no bairro Santa Tereza, em Belo Horizonte, MG, onde a sede única da Associação filantrópica União Auxiliadora dos Cegos de Minas Gerais está com despejo decretado por um desembargador do Tribunal Regional Federal 6ª Região (TRF6), decisão  que violenta a dignidade humana e todos os direitos humanos fundamentais dos cegos que moram na Casa-lar dos Cegos de MG, vários há mais de 45 anos, vários negros e sem parentes ou qualquer vínculo afetivo fora do ambiente em que vivem e, portanto, sem rede de apoio para além da União Auxiliadora. 

O prédio da União Auxiliadora dos Cegos de MG, em decisão injusta, foi leiloado por 720 mil reais, sendo que, se fosse para vender, o prédio vale mais de 5 milhões de reais. Esta decisão precisa ser revista. Clamamos ao desembargador do TRF6 para que reveja esta decisão. Já enviamos Ofício à ministra Macaé Evaristo, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, reivindicando que o Governo Federal abra uma Mesa de Negociação que exclua a decisão de leilão do prédio e o despejo dos Cegos do seu histórico lar no bairro Santa Tereza em Belo Horizonte. Esperamos que o Governo Federal – Lula, Haddad e Macaé – tenha sensibilidade humana e perdoe a dívida de INSS de 50 anos atrás e deixe a Associação Filantrópica União Auxiliadora dos Cegos de MG em paz, melhor dizendo, que destine à União Auxiliadora dos Cegos de MG recursos necessários para ela ser revitalizada para voltar a ser espaço de acolhida de centenas de cegos que clamam por apoio em BH, Região Metropolitana, MG e Brasil. 

Toda vez que volto à Casa-lar dos Cegos da União Auxiliadora aprendo muito com eles e experimento os valores que nutrem o dia-a-dia de uma verdadeira comunidade. O Sr. Renato Leonardo, presidente da União Auxiliadora dos Cegos de MG, cuida com muito carinho e dedicação de todos. Há sete anos, mensalmente, Renato doa sangue para colher plaquetas que são vitais para dez pessoas que precisam melhorar a saúde. “Somos cegos, mas não somos mendigos. Não aceitaremos migalhas. Lutamos pelo nosso direito de continuar na nossa Casa-lar. Não aceitamos despejo jamais”, pontua Renato.

Trabalhando em um notebook no quarto dele, encontrei o Edson, cego natural de Barbacena, MG, que mora há 9 anos na Casa-lar dos Cegos de MG, Além do braile, é formado em massoterapia e Tecnologia da Informação. Ele trabalha produzindo livro em áudio. Revelando profundo amor pela Casa-lar União dos Cegos de MG, Edson nos contou que muitos cegos que foram acolhidos e moraram na casa enquanto estudavam, hoje são profissionais trabalhando no Ministério Público, no Tribunal de Justiça e em outros órgãos públicos. São advogados, massoterapeutas, muitos trabalham com tecnologia da informação. “Cheguei nesta casa 9 anos atrás sem eira e nem beira. Aqui é um cego ajudando o outro. Minha vida se transformou depois que fui acolhido nesta casa-lar. Nas Décadas de 50 e 60 do século XX, os cegos que aqui chegavam saíam pedindo ajuda para construir esta casa. O esforço e o trabalho de todos que contribuíram para construir esta casa precisa ser considerado. Não se pode pisar na memória de todos que batalharam para construir esta casa. Esta casa, nosso lar, tem sido mãe para muitos cegos de MG e de outros estados. Todos que passaram por aqui, mais de mil em sete décadas, construíram aqui mais de mil sonhos que não podem jamais serem destruídos. Dói muito pensar nesta decisão judicial que poderá devastar vidas e sonhos,” diz emocionado Edson, enquanto produz mais um audiolivro. 

O Sr. Juvenal, 80 anos, nascido em Itagi, no Sul da Bahia, chegou cego e como mendigo em Belo Horizonte dia 30 de novembro de 1971 – ele não esquece a data que chegou em BH! Sobreviveu 1,5 ano em um abrigo público em BH. Depois foi para um barraco na favela no morro da Serra. Mora na sede da União Auxiliadora dos Cegos de MG há 44 anos. Faz questão de dizer: “Nosso companheiro Zé Dias mora aqui há 50 anos. Ele foi para a igreja agora, como vai toda semana.” “Foi aqui nesta nossa casa-lar que aprendi a andar nas ruas da cidade. Antes eu só ficava sentado. Uma professora que tinha aqui durante um mês me ensinou a andar nas ruas. Agora, se precisar, ando para qualquer lugar. Se eu encontrasse o desembargador que decidiu leiloar nossa casa e nos expulsar daqui, eu diria para ele: “Coloque-se no lugar de nós, cegos!” Eu ajudei na grande campanha para arrecadar dinheiro para construir esta casa. Todos os cegos que faziam parte da Associação União Auxiliadora dos Cegos saíam pedindo e o povo na época era solidário e ajudava. Esta nossa casa-lar foi construída com dinheiro do povo, “tijolo a tijolo. Como pode tomar algo que foi construído pelos cegos com apoio do povo e entregar para um grande empresário?! Não é justo tirar nossa casa-lar de nós que precisamos para entregá-la para quem não precisa,” diz indignado Juvenal, revelando profunda sabedoria. 

Feliz vendo a luta contra o despejo crescer, o Sr. Elvécio, 74 anos, diz: “Esta é nossa casa-mãe, um presente que caiu do céu, pois eu, cego, morava em um barraco na favela no Alto do bairro Vera Cruz, mas, com uma doença nas pernas, eu não conseguia subir mais o morro. Fui acolhido aqui e ganhei vida nova. Aqui somos uma família. Vivemos uns ajudando os outros.”

Amanda, tesoureira e secretária da Casa-Lar dos Cegos de MG, revela o carinho e o amor com que organiza a documentação, o bazar e uma sala de visita, “o cantinho do sonho”, com sofás e ornamentação em uma sala espaçosa reservada para os cegos receberem visitas e conviver à vontade. “Aqui não é apenas uma associação. Somos uma família. Todos aqui são cuidado com muito amor. Aqui é o lar dos cegos de MG. Retire esta decisão de despejo, por favor”, pede Amanda. A cozinheira Maria prepara com muito amor e dedicação as refeições de todos da casa. 

Murilo, cego que veio de Fortaleza, no Ceará, e mora na Casa, nos mostra como os cegos aprendem a ler e a escrever em braile, e alerta: “A União Auxiliadora dos Cegos de MG é também uma escola, que tem garantido para centenas de cegos a possibilidade de escudar e se desenvolver na vida”. 

Como o profeta Zacarias, clamamos: “Administrem a verdadeira justiça, mostrem misericórdia e compaixão uns para com os outros” (Zc 7,9). Reverter a decisão de despejo dos cegos da Casa-Lar dos Cegos de Minas Gerais é praticar justiça social, é praticar empatia, demanda constante do Deus da vida. 

31/10/2024.

¹

 Frei e padre da Ordem dos carmelitas; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, Itália; doutor em Educação pela FAE/UFMG; assessor da CPT, CEBI, Movimentos Sociais e Ocupações.  

E-mail: [email protected]www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.gilvander.org.brwww.twitter.com/gilvanderluis        –     Face book: Gilvander Moreira III – Canal no you tube: Frei Gilvander luta pela terra e por direitos

² Processo n. 0036885-69.2015.4.01.3800

Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 – DESPEJO? SEDE DA UNIÃO AUXILIADORA DOS CEGOS DE MG com decisão do TRF6 p despejo de 8 cegos. Vídeo 1

2 – “Se nos despejar daqui, nos porá no caixão.” Há 70 anos UNIÃO AUXILIADORA DOS CEGOS DE MG. Vídeo 2

3 – “DAQUI SÓ SAÍMOS NO CAIXÃO. NÃO ACEITAMOS SER DESPEJADOS. UNIÃO AUXILIADORA DE CEGOS DE MG Vídeo 3

4 – “Aqui, nosso lar. 70 anos de história. Despejo, JAMAIS!” UNIÃO AUXILIADORA DOS CEGOS DE MG. Vídeo 4

5 – “TRF6, Lula, Macaé Evaristo e empresário, pelo amor de Deus, não nos despeje. Somos cegos”. Vídeo 5

6 – CEGOS de MG: “JOGAR NÓS PRA RUA..?” UNIÃO AUXILIADORA DOS CEGOS DE MG sob ameaça de despejo. Vídeo 6

7 – CASA-LAR DOS CEGOS DE MG, DESPEJO por TRF6: ““TIRAR DE QUEM PRECISA?” Santa Tereza, BH/MG. Vídeo 7

8 – POR DENTRO DA CASA-LAR DOS CEGOS DE MG AMEAÇADA DE DESPEJO em BH/MG. Não pode ser destruída. Vídeo 8

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