Carta do Levante das Mulheres a CPI da pandemia

Levante Das Mulheres Brasileiras mandou hoje esta carta para a CPI. Como todos os integrantes são homens, brancos, da elite brasileira, corremos o sério risco de que eles não enxerguem as mulheres, sobretudo as mulheres negras, as mais impactadas pela pandemia. Queremos uma investigação correta!

Do face do Levante das Mulheres Brasileiras. O Levante mandou hoje esta carta para a CPI. Como todos os integrantes são homens, brancos, da elite brasileira, corremos o sério risco de que eles não enxerguem as mulheres, sobretudo as mulheres negras, as mais impactadas pela pandemia. Queremos uma investigação correta! A arte que ilustra este post é da compa Marta Moura. Leia:

Recomendações do Levante Das Mulheres Brasileiras para a COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO (CPI) DA PANDEMIA

Excelentíssimo Senador Omar Aziz

Presidente da CPI

Excelentíssimo Senador Randolfe Rodrigues

Vice-Presidente da CPI

Excelentíssimo Senador Renan Calheiros

Relator da CPI

Excelentíssimos Senadores Titulares e Suplentes da CPI

Nós, mulheres articuladas nacionalmente no Levante das Mulheres Brasileiras, vimos até os Exmos. Senadores integrantes da CPI da Pandemia, ora instalada nessa Casa Legislativa, para expressarmos a mais profunda preocupação quanto à necessidade de apurar como as omissões e ações negacionistas estão afetando, em particular, a vida das mulheres.

Os partidos políticos, ao indicarem em sua totalidade homens brancos para comporem a Comissão, deixaram de considerar o critério de representatividade gênero/raça que conferiria uma maior identidade e confiança da população em relação à análise das iniquidades a serem consideradas quanto ao impacto das omissões e das ações negacionistas e anticientíficas no combate à pandemia da Covid-19.

A Covid-19 afeta, desigualmente, os diferentes segmentos da população. O recorte gênero/raça/classe se impõe ao discurso de que todos se igualam na morte durante a pandemia. O Brasil vive um “apartheid sanitário”, não é uma “ameaça”, é um fato. As condições de acesso aos serviços, testagem, possibilidade de isolamento, adoecimento e a morte não se dão da mesma maneira em todo o tecido social.

Nossa jovem democracia sobrevive da exploração de classe, própria do capitalismo, que, aliada ao pensamento patriarcal/colonialista, alimenta-se dos preconceitos de raça e gênero e realiza-se na opressão estrutural e cultural, concretizando-se no silêncio, na submissão e na dominação das mulheres e, mais gravemente, naquelas afetadas pelo racismo, sexismo, lesbofobia e transfobia.

É sabido que a pandemia, em todo o seu curso, afeta as mulheres de forma desproporcional em múltiplas dimensões, especialmente as mais vulneráveis, entre as quais, as mulheres negras, indígenas, quilombolas e periféricas. De acordo com a ONU, “em todas as esferas, da saúde à economia, da segurança à seguridade social, os impactos da Covid-19 são exacerbados para mulheres e meninas simplesmente por causa de seu sexo”. 1

Neste sentido é que pretendemos, com estas recomendações, chamar a atenção para que esta CPI aborde as desigualdades estruturais que foram aprofundadas pela pandemia, considerando em especial os recortes de gênero e raça.

Partindo do princípio que ao Governo Federal, em articulação com os Estados, Distrito Federal e Municípios, cabe: organizar e financiar o Sistema Único de Saúde, identificar as necessidades da população, formular e implementar políticas para áreas prioritárias e cooperar técnica e financeiramente com os gestores locais, para que façam o mesmo nos seus territórios 2 perguntamos: Quantas vidas teriam sido poupadas se o Governo Federal, em suas diversas instâncias e através de um grande pacto federativo, estivesse de fato empenhado no combate à Pandemia da Covid-19? A formulação e implementação das políticas públicas certamente estariam voltadas para a proteção das populações mais vulneráveis e das mulheres. Cabe lembrar, que as mulheres são a maioria da população brasileira – 51,8%, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada em 2019 (IBGE).

A incompetência, o negacionismo e a omissão do Governo traduzem-se no seguinte quadro social e epidemiológico:

O perfil das famílias brasileiras é composto por mulheres chefes de família. Em 2019, 12,755 milhões de pessoas viviam em arranjos familiares formados por responsável, sem cônjuge e com filhos até 14 anos, compreendendo 7,4% da população. Desse total, em 90,3% dos domicílios a responsável era mulher. Dentre estas, 67,5% eram pretas ou pardas e 31,2% brancas3;

A situação é ainda mais profunda quando consideramos os domicílios pobres, nos quais as mulheres chefes de família, com filhos e sem cônjuges concentram 54% do total, aqueles chefiados por mulheres pretas e pardas 63% e os chefiados por mulheres brancas 39,6%. Ou seja, ainda que represente menos de 8% da população do país, esses arranjos concentram a maior parte dos domicílios pobres4 ;

De acordo com Carissa Etienne, diretora da Organização Pan-americana da Saúde, “Frequentemente, deixamos de priorizar a saúde e o bem estar dos mais vulneráveis. Isso deve mudar se quisermos deter a disseminação da COVID – 19 e, ao mesmo tempo, estarmos preparados para enfrentar futuras pandemias”5;

As mulheres são as responsáveis pela execução da maioria das tarefas domésticas e estão expostas aos mais diferentes riscos de contrair a COVID-19;

O confinamento, o trabalho domiciliar, a convivência forçada entre as famílias elevaram, de forma exponencial, a violência doméstica e o feminicídio;

O aumento do desemprego, decorrente da crise econômica e agravado pela pandemia, acomete de forma explosiva as mulheres e no caso de adoecimento e morte deixa órfãos e idosos abandonados sem a devida proteção do Estado;

Segundo a Organização Pan-americana de Saúde, a taxa de letalidade de mulheres grávidas e puérperas por Covid-19 no Brasil é nove vezes maior que a média das Américas; no entanto a solução que o Ministério da Saúde propõe é de um cruel sarcasmo: “Atrasem a gravidez” foi a recomendação do Ministério da Saúde sobre o número de morte materna ter mais do que dobrado de 2020 para 2021. Quando indagado, o Secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara, conhecido por suas posições racistas, pelo repúdio ao termo “violência obstétrica”, e contrárias aos direitos sexuais e reprodutivos, disse que as mulheres devem “se virar” para não engravidar 6;

Mais de 800 mortes maternas já ocorreram em decorrência da COVID-19 no Brasil desde o início da pandemia. Os EUA, que tem uma população similar e também enfrentou momento difíceis, relatou até o momento 95 mortes maternas por COVID-19.

Em relação às medidas de proteção à saúde de gestantes e mulheres pós-parto, as gestantes ainda não contam com proteção trabalhista para serem afastadas de trabalhos com alto risco de exposição, não têm vacina garantida tão cedo dentro do plano nacional de vacinação e o governo federal demorou quase 1 ano para publicar a primeira diretriz orientando os profissionais de saúde sobre como cuidar de COVID-19 na gestação;

Nesta diretriz, o governo federal recomendou testagem universal de todas as gestantes no pré-natal e na maternidade, porém não garantiu testes suficientes para que os serviços de saúde pudesses implementar essa testagem;

O risco de morte de gestantes e puérperas internadas por COVID-19 no Brasil duplicou em 2021 comparado com 2020, o que significa que essa população ou está internando mais tarde por não encontrar vaga ou, mesmo quando encontram vaga, estão morrendo mais. Esse incremento no risco de morte pode se dever ao colapso no sistema de saúde com recursos mais precários para atender casos graves ou ainda às novas variantes genéticas que parecem estar matando mais jovens. A falta de medidas para conter a circulação do vírus e a lentidão na vacinação favorecem o aparecimento dessas novas variantes, que parecem mais graves na população obstétrica7;

Estudos brasileiros detalham o impacto das falhas dos serviços de saúde nessa tragédia: 15% das mulheres grávidas ou puérperas, que morreram de Covid-19 até julho de 2020, não receberam nenhuma assistência ventilatória; 28% não tiveram acesso a UTI e 36% não foram intubadas nem receberam ventilação mecânica;8

Entre fevereiro de 2020 e 15 de março de 2021, a Covid-19 foi responsável pela morte de pelo menos 852 crianças brasileiras de até nove anos, incluindo 518 bebês com menos de um ano, segundo dados do próprio Ministério da Saúde. No entanto, segundo a Dra. Fátima Marinho, epidemiologista da Universidade de São Paulo e conselheira sênior da ONG internacional de saúde Vital Strategies, houve o dobro desse número de mortes; 9

A disparidade racial na crise da Covid-19 está por toda parte: “apesar da vacinação brasileira ter sido iniciada com uma mulher negra – a enfermeira Mônica Calazans, atualmente a proporção é de aproximadamente duas pessoas brancas para cada pessoa negra vacinada. Os dados apontam que a mortalidade foi maior entre negros que entre brancos: 92 óbitos a cada 100 mil habitantes em negros, para 88 em brancos.10.

As mulheres negras grávidas e puérperas têm um risco de morte por Covid-19 quase duas vezes maior que o de mulheres brancas principalmente quando esses dados de morbimortalidade se cruzam com o racismo institucional e os sistemas de saúde em colapso;11

A primeira vítima fatal de coronavírus no Rio de Janeiro foi uma mulher, trabalhadora doméstica, negra, infectada “pelos patrões” que não a informaram de que estavam doentes12. Assim como o primeiro caso de covid – 19 entre povos indígenas, confirmado em 8 de abril de 2020, foi de uma mulher de 20 anos do povo Kokama, que trabalhava como agente indígena de saúde. A infecção ocorreu após contato com um médico infectado. “Os agentes do Estado acabaram servindo como o principal caminho para a entrada do vírus entre os povos indígenas;”13

O SOS Corpo elaborou um dossiê14 sobre a situação das mulheres indígenas durante a pandemia de Covid-19. Segundo a Articulaion Feminista Marcosur elas são responsáveis pelo cuidado com a saúde e a alimentação das comunidades, estão sobrecarregadas pela ampliação da necessidade de cuidados e, segundo o dossiê, durante a pandemia houve um agravamento das violências, crimes de lesão corporal, ameaças, ameaças de morte, calúnia, difamação e injúria, estupro, violência doméstica e familiar, com o agravamento das violências;15

O relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) de janeiro de 2021, revela o aumento da violência e de assassinato de pessoas trans durante a pandemia, impactando especialmente as vidas das travestis e mulheres transexuais trabalhadoras sexuais. Cerca de 70% da população de travestis e mulheres transexuais não conseguiram acesso às políticas emergenciais do Estado, devido à precarização histórica de suas vidas, não restando outra opção, a não ser o trabalho nas ruas, impondo que tal grupo se exponha ao vírus em todas as fases da pandemia. Mesmo diante deste cenário e da constante cobrança por parte dos movimentos sociais, não houve um único projeto específico de apoio a essa população.16

O Brasil é o 4º país com mais mulheres presas no mundo, mais de 42 mil detentas, sendo quase metade sem condenação e a maioria das prisões estão relacionadas ao tráfico de drogas. São mulheres jovens (50% possuem entre 18 a 29 anos), negras (62%), com baixa escolaridade (45% não chegaram a completar o ensino fundamental), solteiras (62%) e mães (74%). Vivendo em celas superlotadas, mal iluminadas, sem ventilação, com racionamento de água, falta de profissionais de saúde, alimentação precária. Além disso, ausência de distribuição constante e suficiente dos itens básicos de higiene (sabonete, pasta de dente, papel higiênico, absorventes íntimos, etc.) é uma prática comum no contexto prisional. 17

As condições do cárcere enfrentadas por estas mulheres, tornam estes espaços ideais para a proliferação e espalhamento do Coronavírus. Sendo ainda, o distanciamento social e higiene constante as únicas formas de proteção contra o vírus, fica evidente que os presídios brasileiros não tem nenhuma condição de proteger as pessoas presas da Covid-1918.

Ao longo da pandemia observamos que o governo brasileiro atuou de forma negacionista, omissa e necrófila e que essas atitudes demandam providências imediatas tais como:

– Estabelecer uma articulação e pactuação entre os entes federativos (governo federal, estados e municípios) para a proposição de políticas protetivas que minimizem o impacto sanitário, econômico e social imposto pela Covid-19, que afeta desigual e severamente as populações mais vulneráveis, em especial as mulheres. Garantia de renda básica às mulheres responsáveis pelos cuidados de familiares sequelados pela COVID, plano de segurança alimentar, desenvolvimento de projetos de geração de renda para as mulheres que ficaram desempregadas na pandemia, política de incentivos para ampliar a contratação de mulheres no mercado de trabalho entre outras;

– Recompor o Plano Nacional de Imunização–PNI;

– Garantir testagem e o acesso à vacinação a toda população do território brasileiro;

– Questionar por que o governo não utilizou o mecanismo legal das licenças compulsórias de patentes para garantir a transferência de tecnologia e produção local das vacinas;

– Garantir o acesso aos insumos, ampolas por exemplo, para as instituições que estão fabricando e vierem a fabricar as vacinas;

– Garantir acesso a Suprimento de EPIs – Equipamentos de Proteção Individual para as unidades de assistência à saúde (UBSs, UPAs, HOSPITAIS), máscaras para a população, e álcool a 70%; testagem (compra/produção de testes e treinamento de pessoal);

– Atuar em defesa do Sistema Único de Saúde, do Sistema Único de Assistência Social e da Educação, com a derrubada da Emenda Constitucional do Teto de Gastos (PEC da Morte);

– Responsabilizar o Conselho Federal de Medicina e Conselhos Regionais de Medicina pela conivência com a prescrição de medicamentos e procedimentos sabidamente ineficazes contra a Covid-19.

Frente ao acima exposto

PROPOMOS A CPI DA PANDEMIA

Que a pauta dos trabalhos da CPI considere o sofrimento e o peso que a pandemia e a necropolítica praticadas pelo Estado estão impondo à vida das mulheres. Os poderes da União devem cumprir seu papel constitucional de defender e proteger a vida dos brasileiros e brasileiras, em especial as mais vulneráveis, observando a plena consecução dos princípios que orientam o SUS no Brasil: universalidade, equidade e integralidade.

Na CPI da Pandemia, Que sejam convidadas representantes de organizações de mulheres da sociedade civil organizada, para que possam apresentar os resultados das pesquisas sobre os impactos da pandemia e da ausência de políticas públicas na vida e na saúde das mulheres.

São essas as Recomendações que o Levante das Mulheres Brasileiras encaminha à consideração dos Excelentíssimos Senadores da República Federativa do Brasil, em especial aos ilustres integrantes da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia de Covid-19.

Brasília (DF), 03 de maio de 2021

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Ilustração de Marta Moura

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