Carta de Mujica a Lula é histórica e de punho firme: “Não basta nos unirmos, devemos caminhar juntos”

No dia 24 de maio, o ex-presidente do Uruguai e líder histórico, Pepe Mujica, enviou uma carta ao presidente Lula em resposta ao convite para participar da reunião em Brasília entre presidentes sul-americanos, ocorrid na última terça-feira (30/05).
Foto: Ricardo Stuckert

A carta de Mujica a Lula traz uma série de reflexões acerca da integração regional, tendo o retiro de chefes de Estado como foco de suas principais recomendações. A carta, além de trazer uma visão sensível sobre a importância da união de países da América do Sul, é também um documento histórico escrito com sabedoria e esperança, com toques de “poesia política”.

Confira carta na íntegra:

Querido companheiro presidente Lula,

Quero desejar-lhe sucesso em sua iniciativa com os Presidentes de nossa região. Acho da maior relevância a criação de um espaço de encontro, de conhecimento mútuo, de diálogo e reflexão, que você acertadamente chamou de “retiro”. As reuniões presidenciais em espanhol são geralmente chamadas de “cumbre” que significa o cume da montanha, mas não existem cumes sem montanhas para se apoiarem, essas montanhas são nossos povos. 


O “retiro” cria uma oportunidade histórica em que a grandeza da participação dos envolvidos será o que determinará a sua altura. A partir daí, moveremos montanhas e uma cordilheira dos povos crescerá, tão alta quanto os Andes, símbolo da unidade que buscamos. As grandes decisões que movem o mundo são tomadas em outros lugares, longe de nossa mesa. É necessário construir proximidade em nossa região para sermos ouvidos internacionalmente. Os desafios que enfrentamos como humanidade exigem, mais do que nunca, esforços coletivos e propostas inovadoras. 

Como você sabe, tivemos algumas reuniões com representantes indicados de presidentes sul-americanos. Eu olhava para aquele punhado de lutadores sociais e políticos. Carregávamos ali mais de um século de prisão e exilio, décadas de experiência em governos nacionais e em organizações sociais, vidas inteiras dedicadas a melhorar as condições de vida de nossos povos. 

Mas passamos dois séculos fracassando na tentativa de alcançar uma integração regional, desde aquele sonho bolivariano de um conjunto de repúblicas confederadas, que ficou esquecido no tempo. Temos experiência suficiente para não repetir os mesmos erros do passado. 


Não basta nos unirmos, devemos caminhar juntos, e se em algumas ocasiões isso não for possível, as portas devem estar abertas para sair e voltar quando for necessário. Devemos ser capazes de construir um consenso progressivo que não nos paralise e que permita àqueles que estão em condições avançar, e depois agregar àqueles que assim decidam. 

Não é inteligente repetir os fracassos. A inovação não vem apenas da tecnologia. Podemos inovar também em nossa forma de agir como militantes políticos e sociais, levando em consideração tudo o que não conseguimos, não quisemos ou não soubemos fazer. É preciso construir, não impor. 
Quero compartilhar brevemente algumas reflexões. Considere isso como uma modesta contribuição de um grupo de ajuda. Não temos pretensões nem expectativas, sabemos que esse é o peso e a responsabilidade daqueles que estão no governo. Trabalhamos para nos apoiar e defender. Não se trata de questões de esquerda, direita ou centro, mas sim de ser desenvolvidos ou não. 

A integração regional é uma meta. O caminho passa pela proliferação de projetos de cooperação entre dois ou mais países da região. Há um extenso e legítimo inventário de propostas apresentadas em recentes reuniões regionais. 


Acreditamos que os projetos devem, de alguma forma, potencializar a solidariedade continental e despertar o sentimento de pertencimento. Pensamos que estes projetos devem ser executados em conjunto com as pessoas. Acreditamos que é indispensável que se desenvolvam com uma visão integradora que represente as necessidades, os valores e os desejos de nossos povos. Por exemplo, uma plataforma permanente de resposta rápida regional a desastres naturais; melhorar a integração energética e das infraestruturas regionais; ter como objetivo a industrialização e a complementação produtiva como região. 

Dinamizar o comercio criando formas combinadas para as transações com nossas próprias moedas, concordar com melhores mecanismos aduaneiros, bem como a necessária harmonização sanitária e fitossanitária. 

Esses são exemplos de metas alcançáveis. Partir do possível para alcançar o desejável, promover projetos que podemos realizar. Para isso, contamos com uma ferramenta fabulosa como o CAF, um banco de desenvolvimento.


Precisamos facilitar a circulação de cidadãos. Devem abundar as trocas estudantis e a validação de diplomas, multiplicar os espaços de encontro entre as novas gerações, cujo futuro se define agora. 

Devemos nos unir na proteção da água doce e na defesa da natureza. Nos identificamos, de todos os cantos do continente, com a vida representada pela Amazônia, com a grandeza e a dignidade evocadas pelos Andes, com a abundância e a liberdade das pradarias e com as riquezas do âmago de nossas terras. 


A integração não será apenas fruto da visão de intelectuais e políticos, mas também do sentimento e do imaginário coletivo que soubermos construir. Os intelectuais e cientistas pensam, os povos sentem, para isso, precisamos de datas, bandeira e nome, inclusive um hino. 

Sem a força do povo, continuaremos iguais. Devemos construir mística, pois essa é a luta por uma cultura diferente, algo que nunca alcançamos. Até agora, quando falamos de integração, temos sido puramente “fenícios”: quanto eu te vendo e quanto você vende para mim. Mas, os fenícios, que foram mercadores formidáveis, nunca criaram nenhuma civilização. 

Um passo no caminho rumo a` meta da integração seria ter um mesmo dia do ano em que, em toda a extensão do continente, todas as escolas possam se dedicar a esse tema. Em português, em castelhano ou em suas línguas locais. Cada um em seu lugar e
todos juntos. 

Avançar na integração significa colocar paixão, esperança e conhecimento em nosso povo. 

Dois assuntos de organização que nos parecem úteis: 

  1. Acreditamos que a comunicação entre os presidentes deve ser fluida e frequente, para que falem diretamente com seus pares quando considerarem pertinente. Cada presidente ou membro de seu círculo mais próximo deve ter os meios para contatar fácil, informal e rapidamente seus pares.
  2. No gabinete do presidente, ou próximo dele, deve haver uma pessoa responsável por acompanhar os projetos que envolvem dois ou mais países da região, a fim de avaliar o progresso, facilitar informações, superar obstáculos, ouvir as pessoas e estimular. Essa pessoa desempenharia a função de “secretaria de integração” e deveria trabalhar ativamente para motivar os responsáveis estaduais correspondentes. 

Nossos representantes em fóruns internacionais devem levar posições e propostas previamente acordadas para transmitir a mensagem de que somos uma região que cuida de seus interesses comuns. E´ desejável que nossos presidentes incorporem referencias a` região em cada discurso, tanto em nível nacional quanto internacional. 

Querido Lula, 
O conjunto de crises globais que estamos enfrentando pode levar ao colapso das condições essenciais para a vida no planeta. Muitos esforços serão necessários para enfrentar as mudanças climáticas, a crise do modelo econômico hegemônico, a ordem internacional obsoleta e as grandes forcas polarizantes. Unir forças e´ o mínimo que podemos fazer para não sermos vitimas passivas e nos dar uma chance de um futuro melhor. 

Conhecemos sua liderança e esforço, que vão além da região e incorporam uma mensagem de paz. 
Aos meus 88 anos, a capacidade de sonhar com uma América diferente da´ mais sentido a` vida. 
Com os melhores votos para todos os participantes do “retiro”, envio-lhe um abraço fraternal, seu amigo e companheiro, 

Pepe
Montevidéu, 24 de maio de 2023

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