Café com muriçoca

muriçoca vinheta

Bem-vindos e bem-vindas ao “Café com muriçoca” – espaço de compartilhamento literário dos Jornalistas Livres. Toda semana publicaremos uma crônica, quase sempre leve e irritante, como uma muriçoca. Bora tomar café comigo?

Por Dinha 

Meu café com muriçoca

“A muriçoca, sim, sou eu. Nordestina extraviada, poeta das margens, cronista da confusão. Meu caminho é de favela, minha escrita é pé-de-guerra e meu destino é a revolução.”

Muriçoca é o mosquito da minha infância cearense. Pra ser mais exata, eu só nasci em Milagres e o milagre, de fato, foi termos sobrevivido, minha família e eu, por quatro décadas nesta cidade hostil que é São Paulo.

No Jardim Míriam, lar da minha primeira infância, lidávamos com as muriçocas enquanto o bairro inteiro lutava contra pernilongos. Questão de nome, de origem e de identidade.

De noite ou de dia, no café da manhã ou da tarde, havia sempre um zunido incômodo, uma sangria controlada de nosso líquido vital meio ralo, alimentando o inseto, minúsculo terrorista alado.

Desde cedo, a mosca na sopa de Raul foi trilha sonora do nosso arroz e feijão com farinha, mas insetos voadores sugadores de sangue humano, pra nós, se chamava muriçoca. Não Aedes. Não Zika. Não veículo pra Chikungunya viajar. Seus problemas, os únicos, era zunir   nos ouvidos, chupar nosso sangue de pouca tinta e deixar de lembrança a coceira infeliz.

Na minha casa, hoje só tem pernilongo. As muriçocas morreram de câncer há três anos, junto com meu pai – o nosso mais fiel falante da língua natal milagreira.

Hoje nós as ressuscitamos com a estreia desta coluna  que receberá semanalmente crônicas minhas e de pessoas convidadas. Mas ressuscitar é pouco. Nossa muriçoca nasce ressignificada: como símbolo de tradições nordestinas dispersas nas grandes cidades, como símbolo do feminino que incomoda e não se cala, como retrato daquela baba que aplica em nós veneno e nos obriga a tomar decisões.

A muriçoca, sim, sou eu. Nordestina extraviada, poeta das margens, cronista da confusão.

Meu caminho é de favela, minha escrita é pé-de-guerra e meu destino é a revolução.

Que nossas conversas sejam tijolos na construção de paradigmas novos.  Que nosso zunido incomode e que permaneçamos atentas à mão hostil do Estado. Que na sua sopa sejamos a mosca, que nos seus ataques sejamos escudo e na sua ausência sejamos pólen defendendo e multiplicando a vida contra o Estado Necrótico.


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006) e Maria do Povo (2019), entre outros.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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