Cidinha da Silva: A cadeira de Miss Davis

Eu sou uma mulher de sorte. Esta afirmação tem a força de atrair cada vez mais os bons augúrios e afastar a desinsorte, já que aquele nomezinho de quatro letras nem pronuncio.

Acontece que fui a Cachoeira turistar com familiares e à noite resolvi tietar amigas que participavam de um curso sobre feminismo negro decolonial nas Américas, promovido pelo Coletivo Ângela Davis. Encontros daqui e dali, papos rápidos, beijos e abraços e um restaurante escolhido para jantar. De repente as vozes sussurradas e emocionadas dão conta de uma presença em movimento: “Olha ela, é Ângela. É Ângela. Ela saiu de casa. Ela está vindo.”

E quem é que vem para a mesma calçada onde estou e senta-se à mesma mesa, a três cadeiras de distância da locutora que vos fala? Ela, a Pantera, como o pessoal a estava chamando por lá. A que chamaram de Ângela, sem sobrenome, porque passou a ser da família. Tá bom, tá bom. Era a mesa da diretoria e da amada, por isso ela se sentou na “minha mesa”. Não tem problema, pessoal, isso não embaralha minha sorte.

Conversa vai, conversa vem, uma filha do Rei de Oyó postada à cabeceira da mesa iniciou, com Ângela, um papo sobre política brasileira. Eu me mordi de vontade de participar com meu inglesinho de boa base gramatical e pronúncia imperfeita, só que não fui mencionada, convidada, e me resignei ao silêncio observador. Cada qual reinando no seu reino.

Alguém, creio que a própria Ângela, resolveu rearranjar os lugares da mesa para que os casais separados ficassem próximos. Uma vizinha de cadeira moveu-se para o lugar de Ângela Davis, a primeira a se levantar. E ela, a Pantera, sentou-se onde? Adivinhem. Quem responder “ao lado de Cidinha da Silva”, ganha um doce.

A primeira sensação quando isso acontece, vou contar para você que nunca se sentou ao lado de um ícone, é: O que posso falar que não vá incomodá-la? A pessoa está ali no bar para relaxar. As anfitriãs já haviam montado um forte esquema espacial para blindá-la das cansativas selfies, não queria ser eu a incomodá-la. Optei por ficar calada e, se surgisse alguma oportunidade falaria algo.

Angela Davis no Brasil. foto: Forum Anarquista Especifista em: https://www.facebook.com/faebahia/photos/a.684794088222670.1073741828.684778788224200/1393549037347168/?type=3

Ângela sorriu para mim e me cumprimentou, perguntou como estava? Respondi ao cumprimento e aproveitando a deixa disse-lhe que diria minha frase clichê desde 1997, quando a encontrei em sua primeira vinda ao Brasil: “A primeira vez que te vi foi em Atlanta, em 1994, e você tinha longuíssimos dreadlocks”. Muito simpática, ela disse que se lembrava, que meu rosto lhe era familiar nessas duas décadas que vinha ao Brasil. Calma, gente! É óbvio que ela não se lembrou de mim, principalmente no evento em Atlanta, onde havia centenas de mulheres negras. Talvez se lembrasse que tinha mesmo dreads àquela época, e a lembrança de dreads cortados sempre traz uma nostalgia, ou talvez (sou otimista) se lembrasse da minha frazezinha-clichê, que, vamos combinar, já era a terceira-vez que eu dizia a ela.

Ainda na linha simpatia total, ela me perguntou o que havia sido o evento de Atlanta e o que eu fazia por lá. Respondi que se tratava de uma edição da Black Women’s Health Conference, e eu, que estudava e morava em Illinois à época, havia ido lá encontrar uma companheira de Geledés, participante do encontro. Depois ela me perguntou como se dizia ketchup em português. Respondi que era daquele jeito mesmo e que a gente só acentuava a letra u. Rimos. Pedimos ketchup ao garçom que nunca o trouxe e como as batatas fritas de Ângela já estavam pela metade, fui ao balcão buscar o molho vermelho. Conversamos ainda sobre a tradição africana de deixar o sal em cima da mesa, ao invés de entregá-lo a alguém que o solicita. Sobre banhos de sal grosso e sobre jogar sal para trás como táticas de proteção espiritual e ainda, sobre não entregar uma faca com a ponta voltada para a pessoa que a recebe.

Bem, essa prosopopéia toda foi para justificar porque sou uma mulher se sorte, uma legítima filha do Rei. Mas, o mais importante da noite ainda não contei. É que ao mudar-se de lugar, Ângela Davis que é muito alta, sentou-se numa cadeira maior do que as outras ou que estava num ponto mais alto da calçada. Fato é que a junção das duas coisas deixou-a em destaque na mesa. Ninguém reparou porque ela já era a grande estrela e era natural que a víssemos como a maior de todas. Mas ela, muito incomodada, falava como que para si mesma, que estava mais alta do que todo mundo e olhava para o chão e para os lados, buscando solução para o problema. Eu, pensando se tratar da própria altura dela, disse que ela era mesmo a mais alta da mesa e ela respondeu: “Eu sei, mas tem alguma coisa errada aqui”.

Então, mais uma vez, Ângela se levantou e trocou de lugar, sentando-se na cadeira ao lado, mais baixa ou que não estava num ponto alto da calçada, ficando assim na mesma altura das demais pessoas. E disse aliviada: “Agora, sim! Agora eu estou confortável!”

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

2 respostas

  1. A vinda de Ângela Davis à Bahia, para transmitir um saber de luta contra o racismo e toda forma de exploração e segregação, parecia um momento de muita importância para a militância jovem que tem um papel fundamental na reconstrução de uma sociedade mais justa. No entanto, eu e alguns colegas professores assistimos a cenas deprimentes, no salão nobre da Reitoria, que tinham muito mais a aparência de rituais nazistas do que o cenário de uma coletividade que se preparava para ouvir as ideias de uma das maiores filósofas da contemporaneidade. Um grupo de meninas, com ares de desequilíbrio, na primeira parte superior à direita perto da saída, ordenava, primeiramente, rapazes brancos a se levantarem para conceder suas cadeiras a mulheres negras, pois a palestra seria para “mulheres negras encrespadas”. Com muitos gritos, passaram também a ordenar as mulheres tidas como “brancas” ou negras com cabelos de chapinha a se levantarem e se retirarem da sala. Naturalmente, houve mal-estar e revolta até mesmo entre uma grande maioria de negros que afirmavam que o espaço da universidade é público e foi divulgado de que a entrada era gratuita para todos. Duas amigas, professoras da UFBA. que reclamaram, foram também convidadas a se retirar segundo os gritos de ordem: “Saia daí suas brancas”. Poucos minutos antes das 18h, aconteceu um ato de irresponsabilidade: as portas foram subitamente abertas e uma multidão enfurecida adentrou pelo salão nobre, como se fossem derrubar tudo. Houve momentos de pânico do público sentado nas últimas cadeiras que imaginavam pisoteamento ou mesmo massacre. O grupo das meninas bradaram ainda mais para que as professoras se levantassem e dessem seus lugares a mulheres “negras encrespadas”. As professoras se retiraram quando a multidão se acalmou, pois o salão ficou irrespirável.
    Até mesmo outros negros se retiraram com o seguinte questionamento: Qual a responsabilidade da UFBa. em manter esses grupos extremistas, de comportamento mesmo nazista: “Branco sai, negro se senta” em eventos realizados em seus espaços. Com certeza, a filósofa americana, que falou rapidamente durante meia hora, sendo sempre interrompida por uma gritaria incompreensível, não aprovaria uma tal limpeza étnica na universidade pública que tem tentado mais integrar com políticas de relação, inclusão e cotas, do que segregar. Será que a UFBa. teria uma resposta para a presença de grupos fundamentalistas racistas em um evento de envergadura como o da presença de uma filósofa que prega um feminismo de inclusão e o fim das discriminações? Seriam esses grupos infiltrações direitistas? Se sim, por que a polícia não foi acionada, já que estavam constrangendo cidadãos de bem?
    O Thingspiel, a ginástica do consenso, foi uma estratégia nazista utilizada para manipular grupos e leva-los a adotar uma gramática de voz e de corpo apta a enquadrá-los numa ideologia. No restante do século XX , e início do século XXi, o Thingspiel, esteve e está presente em toda manifestação de massa manipulada para se atingir um objetivo determinado. Precisamos ficar alertas para este comportamento, pois ele nos conduzirá á beira de um abismo irreversível.

    Luis Carlos Gomes

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