Brasil: o país dos policiais vacinados e periferias famintas

Artigo de opinião de Leandro PC Freire, questiona o Estado priorizar a imunização das polícias à proteção social dos mais vulneráveis.
Ilustração de Joana Brasileiro sob imagem de Lucas Martins de reintegração de posse em Carapicuíba (12/09/2019).

Artigo de Leandro PC Freire (*)
Nesta semana, categorias de motoristas, cobradores e metroviários entraram na fila da vacina em São Paulo. Outras categorias profissionais já estão sendo vacinadas, entre elas, os policiais. Tais fatos revelam  distorções no combate à covid e as verdadeiras prioridades do Estado brasileiro. Novamente, a ciência é deixada de lado pela política e o Estado escolhe a repressão como política pública para os problemas sociais.

Na situação extrema de escassez de vacinas que o país passa, visto a incompetência criminosa do governo Bolsonaro ao não planejar, dolosamente, a compra de insumos e vacinas de outros países, vemos crescer a disputa entre categorias profissionais para entrarem na fila da vacina primeiro, como se isso fosse normal.

Importante deixar claro três pontos. O primeiro é o fato de que o Brasil tem estrutura e sabe vacinar como nenhum outro país no mundo. Tem histórico bem sucedido de campanhas de vacinação, como o exemplo do combate à H1N1[1]. Durante a gestão do presidente Lula vacinou-se 88 milhões de pessoas em 3 meses. Quase 1 milhão de pessoas por dia[2].

O segundo ponto é que não devemos nos deixar levar apenas pelos discursos dos nossos representantes ao analisar as ações do Estado.  O orçamento e a prática das políticas públicas demonstram as verdadeiras prioridades. E o que decide uma ou outra prioridade é o poder de influência de grupos organizados junto aos tomadores de decisão que ocupam cargos públicos relevantes, ou seja, quem conversa com quem nos corredores dos palácios.

Além disso, o Estado que não considera a questão da segurança através dos seus componentes integrais, com apregoa a ONU através do conceito de segurança humana: segurança alimentar, econômica, de saúde, ambiental, acesso à justiça, livrar indivíduos dos preconceitos, e segurança para expressar opiniões. Por isso, repete o mantra estúpido de que prover segurança significa disponibilizar repressão. Explico.

Muitos analistas mostram que a fome e falta de perspectiva de populações vulnerabilizadas pode levar a saques, aumento de delitos contra patrimônio e, até, revolta social. Assim, a prioridade da vacinação de policiais revela uma intenção que vai muito além da simples proteção de um servidor essencial, submissão à pressão corporativa, ou a vontade de não deixar que o caos tome conta da sociedade.

Manter a ordem seria legítimo, não fosse o fato dessa ‘ordem’ andar de mãos dadas com o abandono absurdo das populações periféricas e aumento da população em situação de rua. Relegou-se à própria sorte camadas inteiras da sociedade que hoje sobrevivem apenas por ações de solidariedade de entidades civis. Os governos abstêm-se de uma política pública efetiva e eficaz para prover segurança econômica e alimentar, apostando na incerteza do legado da política de repressão. O absurdo dessa perspectiva, não é apenas saber que o Estado prepara seus agentes estatais para evitar um possível caos causado pelo desdobramento da pandemia, mas ver como o Estado, ativamente, fomenta esse caos ao mesmo tempo em que traz a violência como solução.

Não incluir no rol de prioridades do combate à covid a segurança alimentar das populações vulnerabilizadas pela pandemia, excluir aqueles que, sem segurança econômica, não tem como pagar moradia e negar acesso à saúde através da ausência de política de distribuição de kits de higiene (álcool gel e máscara), é implementar uma visão de segurança que, sendo realizada há mais de um século, mostrou-se totalmente ineficiente.

Em suma, reflete a saída repressiva que o Estado brasileiro está acostumado a dar aos problemas sociais. É mais do mesmo. “A questão social é um caso de polícia” como diria o presidente Washington Luiz em 1926. Abandona-se a pauta da segurança alimentar, econômica e de saúde para fomentar a pauta de segurança repressiva: o grande mal que mantém a desigualdade e perpetua a violência no Brasil.

Em outras palavras, o Estado brasileiro escolhe a repressão em detrimento dos direitos. E repressão sem direitos não combate o crime nenhum, pois mantém grandes parcelas da população longe da cidadania.

O governador João Doria Jr, faz marketing no primeiro dia de imunização da Polícia Militar de São Paulo. Foto de divulgação Governo do Estado de São Paulo.

O contexto fica mais nítido quando lemos o artigo “Tranca, contêiner e bomba: a gestão penitenciária da pandemia no Brasil”[3] de Ricardo Campello e Rafael Godoi que, habilmente, demonstra que a primeira medida para combater o coronavírus foi isolar presos da sociedade e comprar bombas, sprays de pimenta e equipamentos para evitar motins. Deixou-se de lado medidas de diminuição de superlotação, adequação de unidades à pandemia ou melhoria da nutrição, por exemplo. Essa foi a política de segurança para encarcerados, sob o pretexto de que “isolados, eles estão mais seguros que nós”.

Eis o que está por trás da priorização de policiais antes de concluída a imunização dos grupos de risco, na contramão do que insiste a ciências médicas, e antes de prover proteção social aos mais vulneráveis, na contramão do que dizem as ciências sociais. É o Estado dando o recado de que não levará direitos, nem aplacará a fome, mas que a polícia estará pronta para impedir qualquer tipo de mudança ou cobrança justa.

O fato é que, mesmo governos estaduais críticos às políticas do presidente Bolsonaro, como o governo João Dória em São Paulo, além de estarem estruturalmente encurralados pela falta de uma política nacional de imunização séria, seguem a cartilha autoritária brasileira na questão social, pois a consideram-na a com menor risco político-eleitoral. A solução que dão, na prática, para a fome o desalento é a repressão policial para manter os desesperados distantes e sob controle.

Assim, desde de 17 de janeiro deste ano, quando houve a liberação das vacinas pela Anvisa, já poderíamos ter vacinado mais de 90 milhões de pessoas, mas, em vez de liderar e tomar decisões baseadas na ciência, os governantes, das mais variadas cores partidárias, sucumbiram ao discurso anticiência, seja a ciência médica, seja a social. Ao se verem obrigados a priorizar, dentro de um cenário de escassez, contribuem para a manutenção de uma forma de governar que já se provou populista e ineficaz: negar direitos e produzir violência estatal.

A solução seria simples se diabéticos, obesos, idosos, cardíacos, asmáticos, enfim, todos os grupos com maior mortandade por covid, estivessem sendo vacinados independentemente da categoria profissional. Os números de óbitos entre professores, policiais, motoristas e etc, também seria afetado.

Para nós, defensores e ativistas de direitos humanos, resta questionar: quem são aqueles que rondam os palácios e mudam as prioridades de vacinação na boca pequena? E por que querem tanto manter a violência como a verdadeira política social no Brasil e em São Paulo?


(*) Leandro PC Freire é sociólogo, advogado e ativista de direitos humanos

[1]    Acesso em 21.04.2021 às 11:31: https://cee.fiocruz.br/?q=node/1314

[2]    Acesso em 21.02.2021 às 11:35: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56774966

[3]    Acesso em 21.04.2021 às 11:59: https://diplomatique.org.br/tranca-conteiner-e-bomba-a-gestao-penitenciaria-da-pandemia-no-brasil/

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

A poeta e o monstro

A poeta e o monstro

“A poeta e o monstro” é o primeiro texto de uma série de contos de terror em que o Café com Muriçoca te desafia a descobrir o que é memória e o que é autoficção nas histórias contadas pela autora. Te convidamos também a refletir sobre o que pode ser mais assustador na vida de uma criança: monstros comedores de cérebro ou o rondar da fome, lobisomens ou maus tratos a animais, fantasmas ou abusadores infantis?