Por Casé Angatu, indígena e morador no Território Tupinambá em Olivença, Ilhéus (BA)*
Muitos falaram da brutalidade que foi colocar fogo na estátua de Borba Gato, localizada em Santo Amaro, Zona Sul da cidade de São Paulo/SP. Entretanto, poucos dizem da bestialidade de construir e erguer uma estátua para um dos genocidas/etnocidas dos Povos Originários e que escravizou indígenas, negros/negras, violentou kuña, kuñatã, kurumin e awá gwarïnï (mulheres, meninas, meninos, guerreiras e guerreiros) de diferentes etnias, bem como fez parte do início da destruição da Natureza Encantada.
Muitos parecem ignorar a estupidez autoritária que é manter estátuas e espaços (ruas, praças, viadutos, cidades, bairros, escolas, universidades) com nomes de genocidas/etnocidas e ações feitas através da primeira forma que esse país conheceu da cruel regra, hoje denominada como “excludente de ilicitude”: as chamadas “Guerras Justas”, decretadas pelos invasores europeus em nome da Coroa Portuguesa e do Deus deles contra os Povos Indígenas e Negros das Terras Brasilis – para muitos de nós Pindorama (Terra das Palmeiras – Terra Sem Males) .
Não foram “Guerras” e nem “Justas” a barbárie imposta pelos invasores. O que ocorreram foram alguns dos maiores massacres da história humana. Claro que protagonizamos nossa resistência: Confederação Tamuya (1554-1567), Cerco de Piratininga (09/07/1562), Levantes dos Goitacá (séc. XVI), Confederação dos Kariri (entre 1683 e 1713), Revolta de Mandu Ladino (1712 a 1719), Guerra dos Sete Povos (1753-1756), Revolta de Marcelino em Olivença (Ilhéus/BA – década de 1930), entre tantas revoltas e algumas delas ainda desconhecidas.
Certamente, como hoje, nossos ancestrais foram descritos como violentos, canibais, selvagens. Assim são denominados os que se revoltam contra a barbárie dos invasores, destruidores da Natureza, genocidas, etnocidas. Por isto digo: a rebeldia é justa contra os opressores e seus símbolos. Como dizia o grande Cacique Xicão Xukuru: “Massacrados sim, exterminados não” (perdoem se não são exatamente essas as palavras desse grande Cacique). Os invasores e seus representantes, como Borba Gato, não fizeram “Guerra Justas” e sim massacres genocidas, escravidão, estupros e iniciaram a destruição da Natureza.
Guerras fizeram nossos ancestrais e ainda fazemos nós indígenas há quinhentos anos: guerreamos pela resistências e (re)existências para não sermos massacrados, escravizados, violentados e extintos. Batalhas que não desejávamos, mas necessárias para termos nossos direitos originários de volta, incluindo a Terra/Natureza Sagrada. Se denominam Borba Gato e outros como “bandeirantes” (nominação inventada para amenizar a violência que faziam) quero também chamá-los de bestiais milicianos genocidas, estupradores e escravagistas. Sim, não temos rancor, possuímos Memória. Em nome dessa memória, é brutal nos forçar a conviver com estátuas aos genocidas, estupradores, caçadores de indígenas e população negra para escravidão, invasores de nossas terras e destruidores da natureza.
Se querem falar de brutalidade, falem o quanto é brutal ouvir nomes como Borba Gato, Fernão Dias, Amador Bueno, Mem de Sá, entre outros. Este último, assassino. Mem de Sá chegou mesmo a narrar numa carta ao rei de Portugal a ação genocida que cometeu em 1559 aqui em Olivença (Terra Indígena Tupinambá – Ilhéus/BA), onde moro. Brutal é saber o que representam nomes como: Vitória do Espírito Santo, Vitória da Conquista, Santa Cruz, Santa Cruz de Cabrália, Monte Pascoal, Porto Seguro. Nomes que consagram as ações dos invasores, genocidas e etnocidas.
Na sequência segue a íntegra de uma entrevista minha (Casé Angatu) feita pela ótima jornalista Brenda Zacharias (via skype) e os links das matérias que foram publicadas em 23/06/2020 pelo jornal “O Estado de São Paulo – O Estadão”. Entrevista que agora foi em parte reproduzida a propósito do fogo colocado na estátua de Borba Gato por outros veículos, conforme segue no final deste texto. Como as perguntas para entrevista foram enviadas com antecedência, escrevi à base do que falei e estou apresentando abaixo na íntegra e com acréscimos.
Vale destacar que nas matérias foram ouvidos outros acadêmicos, indígenas e representantes do movimento negro. . As entrevistas resultaram em duas excelentes matérias: “Entenda quem foram os bandeirantes e por que eles são homenageados em São Paulo (*1)” e “Estátuas racistas devem ser derrubadas? Veja o que dizem historiadores(*2)”. No final indico também dois vídeos em que falo da atuação dos Bandeirantes na cidade de São Paulo (*3) e no Massacre do Rio Cururupe (*4). . Meus agradecimentos a Brenda Zacharias por seu qualificado trabalho.
Na sequência, a íntegra da minha entrevista:
Brenda Zacharias: Qual é o significado ou o peso dessas homenagens a bandeirantes serem prestadas em ambientes públicos? Faz sentido que estes símbolos estejam presentes na vida urbana na forma de esculturas, nomes de ruas e de espaços públicos?
Casé Angatu: São as chamadas disputas pelos lugares de memória, espaços identitários e territorialidades. Neste caso, as “homenagens aos bandeirantes” na capital paulista são uma tentativa de demonstrar que a cidade supostamente tem donos. Além do poder político, econômico e policial é necessário impor que às pessoas façam reverências aos hipotéticos donos da cidade. São as redes de poder que buscam incutir a dominação. Assim, essas “homenagens” não são somente simbólicas. Elas ocupam espaços físicos com propósitos políticos reais de tentar impor o poder de certos grupos. Por exemplo: é comum ler em algumas abordagens que em 1872 ocorreu uma suposta “segunda fundação de São Paulo”, tentando-se apagar a cidade indígena, caipira, cabocla, negra durante a chamada “belle époque” paulistana na virada do século 19 para o 20. Buscava-se então seguir padrões europeus de civilização. Em meu livro “Nem Tudo Era italiano – São Paulo e Pobreza (1890-1915)” analiso como os donos do poder político e econômico, tendo à frente Antônio da Silva Prado, procuravam europeizar arquitetônica e urbanisticamente a cidade. Ao mesmo tempo, realizavam uma limpeza sociocultural na cidade objetivando apagar todos os traços indígenas, negros, caipiras, caboclos então predominantes até na língua – por isto muitos nomes de lugares de São Paulo são originários.
Escrevo o seguinte em meu livro: “Havia um projeto de europeização arquitetônica, urbanística e populacional. Buscava-se a apagar qualquer traço indígena, caipira, caboclo e negro da cidade. O objetivo era uma ‘limpeza sociocultural’ visando o branqueamento da população, perseguindo práticas e espaços de vivencias das camadas populacionais nacionais nas áreas mais centrais e suas adjacências. Procurava-se a formação de um mercado de trabalho supostamente controlado e disciplinado” (ANGATU, Casé – SANTOS, Carlos. José F. Nem Tudo Era italiano – São Paulo e Pobreza – 1890-1915. São Paulo: Annablume/Fapesp, 4ª. Edição, 2018).17:37Em meu outro livro “Identidade Urbana e Globalização: a Formação dos Múltiplos Territórios em Guarulhos” digo que a mesma coisa ocorreu naquele município que possuiu dois aldeamentos indígenas em suas espacialidades (ANGATU, Casé – SANTOS, Carlos. José F. Identidade Urbana e Globalização: a Formação dos Múltiplos Territórios em Guarulhos, São Paulo: Annablume/Sinpro-Gru, 2012).
Em 1954, a cidade de São Paulo passou novamente pela tentativa da elite paulistana de recriar o passado. Naquele período procurava-se destacar as “origens briosas das famílias quatrocentonas”. Destacava-se o passado “desbravador e heroico dos bandeirantes”. Valoriza-se a “Revolução Constitucionalista no 9 de julho de 1932”. Homenageavam-se as ações jesuíticas que “catequizaram os selvagens e fundaram São Paulo”. Foi nesta época que se fortaleceu a construção de muitos dos monumentos e batizaram-se ruas, praças, viadutos, avenidas e edificações sobre este passado idealizado pelas elites paulistanas. Quando se fala de indígena fala-se de Tibiriçá e Bartira como exemplos dos “selvagens que aceitaram a fé católica e contribuíram para o desenvolvimento da cidade”. Interessante que aquela também era a época quando a cidade passava de 1.326.261 habitantes em 1940 para 3.781.446 moradores em 1960. Um crescimento decorrente das migrações interioranas e, especialmente, nordestina/indígena. Ou seja, a “cidade bandeirante” que nunca deixou de ser indígena, negra e cabocla agora também era nordestina.
BZ: A questão do bandeirantismo está muito ligada à construção de São Paulo. Qual é o impacto da construção desse ideário na sociedade paulistana de hoje? Como é possível superar essa herança, minimizar os danos dela?
CA: Podemos pensar que a presença do bandeirantismo está representada na exploração da natureza de forma devastadora e do trabalho humano, particularmente através da escravidão indígena, negra, estupro e genocídio. O que está mais ligado à construção de São Paulo em sua diversidade sociocultural é a forte presença indígena, caipira, cabocla, negra, imigrante, migrante e nordestina. Presenças presentes, resistentes e (re)existentes em territórios pela cidade, nomes dos lugares, nas culturas e na vida cotidiana. Só que os grupos no poder tentam historicamente silenciar e invisibilizar estas presenças. Buscam destacar personagens como Fernão Dias Pais; Manuel Borba Gato; Domingo Jorge Velho; Antônio Raposo Tavares; Bartolomeu Bueno da Veiga, entre outros. Suas formas mais atuais na cidade são: – Ostentação e arrogância da elite paulistana do tipo: “Você sabe com quem está falando?”; – incômodo que sentimos ao andarmos em certos lugares da cidade e a forma como a polícia trata as pessoas nos bairros periféricos, quebradas e a população de rua: são comuns as abordagens policiais violentas; – monopólio de algumas destas famílias em algumas instituições privadas e públicas: repare os sobrenomes de alguns que ocupam elevados cargos, incluindo nas universidades públicas; – ideário desenvolvimentista do tipo: “a cidade que não pode parar”; – preconceito aos que estão fora deste padrão de comportamento; – forma de atuar dos ruralistas não só de São Paulo: “os ruralistas de hoje são os bandeirantes de ontem”.
BZ: Como é possível superar essa herança, minimizar os danos dela?
CA: Valorizando outras histórias, memórias e identidades. Esta é uma das minhas militâncias indígenas. Quero dizer: é decolonizando olhares, saberes e espíritos. Mostrando o quanto as presenças indígenas, negras, caboclas, nordestinas e imigrante são fundamentais na construção da cidade.17:37Por exemplo: antes da pandemia faríamos em 2020 um evento no entorno da Capela dos Índios – Capela de São Miguel Paulista, na Praça do forró. Uma atividade denominada: “Por um outro 9 de Julho – Cerco de Piratininga em 9 de Julho de 1562”. A atividade seria para relembrar quando naquela data (1562) os Índios de São Miguel e outros indígenas cercaram o Pátio do Colégio, rejeitando a catequese e a colonização portuguesa, liderados por Pikyroby e Jaguanharan. Um dos momentos que demonstra as várias resistências indígenas em São Paulo e no Brasil. Agora pergunto: quantos sabem desta história e de seus personagens? Muitos dizem: “não vejo a presença indígena na história do Brasil e muito menos na cidade de São Paulo”. Não enxergam esta presença porque tenta-se propositalmente apagá-la. Pois bem, São Paulo é uma das maiores cidades indígenas do Brasil – depois procurem os dados no IBGE. São Paulo é uma cidade indígena. Lembro que quando falei isto uma vez numa entrevista a uma rádio paulistana o entrevistador discordou. Mas onde encontramos esta presença indígena: em histórias ocultadas como narrei acima. Atualmente está presente entre os Parentes Guaranis no Jaraguá e em Parelheiros. Mas não só nestes territórios. Esta presença se faz sentir de forma espalhada pela cidade. Muitos dos migrantes, especialmente nordestinos, que chegaram na capital paulista e em outras grandes cidades, são indígenas. Os indígenas estão nos bairros, quebradas, conjuntos habitacionais e nas ruas. As pessoas do povo não constroem monumentos de concreto igual aos de Brecheret. Elas fazem arte sem saber o que é arte e seus monumentos são as vivências cotidianas. São as formas socioculturais de resistência e (re)existência. A cidade está cheia de vestígios, territórios, memórias na forma de falar, andar, nomes de lugares indígenas. Porém, para percebê-los é necessário decolonizar os olhares e espíritos.
BZ: Com a retomada dessa discussão, tendo os exemplos que vimos em manifestações de outros países, você acredita que o debate pode pressionar ainda mais a sociedade e o poder público por mudanças como a retirada dessas figuras?
CA: Acredito sempre que a mudança advém das forças coletivas. Precisam de demandas daqueles que se sentem incomodados. Quero dizer: o poder público tirar o monumento tem tanta legitimidade de quando ele mandou colocá-los. A força que advém da demanda coletiva é o caminho. Lembrando de Paulo Freire em sua Pedagogia do Oprimido: “Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando esta se revista da falsa generosidade referida”.
BZ: Alguns entrevistados chamaram a atenção para o risco de negacionismo; de que apenas eliminando esses símbolos do espaço público estaríamos correndo o risco de apagar a história sem debatê-la ou refletir sobre ela. O que você pensa sobre essa questão?
CA: Negacionismo é o que os donos do poder fazem por mais de 500 anos. Eu chamaria de reconstrução decolonial das narrativas históricas. O negacionismo destes donos do poder não envolve só o passado como também o presente e o futuro. Eles continuam nos negando direitos. Vale lembrar que os que lutam contra os Povos Indígenas tirando nossos direitos estão vivos e à frente do poder econômico, político e cultural. Os massacres não estão no passado, mas ainda estão presentes. O atual governo federal que classifico como fascista e miliciano é imbuído do espírito bandeirante. A PL 490 que busca colocar nas mãos do congresso nacional a demarcação de terra é negação de direitos. A intenção de impor um marco temporal (1988) para demarcação territorial é negação de direitos. Os ruralistas e seus aliados atuam como os velhos/novos bandeirantes retirando direitos originários, parando as demarcações das Terras Indígenas, ameaçando as terra demarcadas, devastando a Natureza. O desmatamento da floresta amazônica aumentou 171% em abril de 2020 em relação ao mesmo período de 2019, conforme os dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). O atual governo cria nos diferentes territórios indígenas situações de conflito.
Os números do Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019 do Conselho Indigenista Missionário são expressivos nessa direção. De acordo com o CIMI, em 2019, primeiro ano do mandato do Presidente Bolsonaro teve: “(…) abuso de poder (13); ameaça de morte (33); ameaças várias (34); assassinatos (113); homicídio culposo (20); lesões corporais dolosas (13); racismo e discriminação étnico-cultural (16); tentativa de assassinato (25); e violência sexual (10); totalizando o registro de 277 casos de violência praticados contra a pessoa indígena em 2019. Este total de registros é maior que o dobro do total registrado em 2018, que foi de 110. O total de 113 registros de indígenas assassinados em 2019, de acordo com dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), é um pouco menor do que o total sistematizado em 2018, que foi de 135 (CIMI. Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019, 2020). A Covid-19, mas a atuação assassina do governo, tem aumentado em muito o número de indígena mortos. A Covid-19 virou uma arma para o genocídio dos Povos Originários, Negro e Pobre. Assim, quanto a derrubar os monumentos: parto do princípio espiritual da sabedoria indígena na qual fui formado – não é bom mexer com a ancestralidade sem um bom motivo, mesmo dos que foram inimigos do meu Povo. Entretanto, costumo dizer: “Não temos rancor. Mas, possuímos Memória”. Não tem como esquecer mais de 500 anos de invasões, massacres, genocídios, etnocídios, estupros e ecocídios cometidos por muitos destes que viraram monumentos, recebem homenagens e são considerados heróis nacionais. Assim, quando as energias coletivas daqueles que são herdeiros desta história de imposições caminharem para a derrubada dos monumentos, penso que devemos derrubá-los. Derrubar as imagens daqueles que há mais de 500 anos tentam derrubar nossas histórias, memórias e identidades.
BZ: Assim, eliminando esses símbolos do espaço público estaríamos correndo o risco de apagar a história sem debatê-la ou refletir sobre ela?
CA: Caso os monumentos se mantenham, faremos como já fazemos: releituras decoloniais críticas acerca das histórias e memórias entorno deles. Demonstrando que estes monumentos comprovam os massacres, mas não a derrota porque estamos aqui como herdeiros dos que foram massacrados. Como dizia o grande Cacique Xicão Xukuru: “Massacrados sim, exterminados não”. Insisto: derrubar os monumentos não é negacionismo e sim decolonialidade. Assim, caso os mesmos fiquem a história não deixará de ser debatida ou refletida, até porque existem outras fontes para isto, como as memórias e espiritualidades de nossos ancestrais. Poderiam me perguntar: mas se derrubar ou “danificar” não estaremos perdendo a chance de demonstrar como eles desejaram impor a história deles? Ao que responderia com outra pergunta: como nós Povos Originários conseguimos narrar a história de nossa resistência e (re)existência e das violências que sofremos sem precisarmos de monumentos? Existem outras formas de se buscar a memória que é uma das bases para se escrever a história que vão para além da materialidade dos monumentos. Os Povos Indígenas tem muito a ensinar sobre isto. Assim, na minha leitura não estaríamos correndo o risco “de apagar a história sem debatê-la ou refletir sobre ela”. Aliás, qual história estaríamos apagando, debatendo e refletindo? Como escreveu Ailton Krenak no texto “Antes, o Mundo não Existia”: “Entre a história e a memória, eu quero ficar com a memória”. Nós indígenas não precisamos de monumentos para preservar nossa memória. Quem precisa de monumentos são os invasores e os donos do poder para impor a memórias genocida e etnocida deles.
BZ: Como poderia acontecer o trabalho para que uma parcela mais ampla da sociedade possa aprender a história dos povos originários e incluí-la nas práticas do cotidiano?
CA: Um dos caminhos é a educação decolonial e paulofreiriana no sentido que assinala Catherine Walsh ao somar a obra de Paulo Freire e Frantz Fanon: “[…] como metodologias produzidas em contextos de luta, marginalização, resistência e que Adolfo Albán tem chamado ‘re-existência’; pedagogias como práticas insurgentes que fraturam a modernidade/colonialidade e tornam possível outras maneiras de ser, estar, pensar, saber, sentir, existir e viver-com” (WALSH, C, Pedagogias Decoloniales: Prácticas Insurgentes de Resisitir, (Re)existir y (Re)vivir”- Tomo I. Quito, Ecuador: Ediciones Abya-Yala, 2013, p. 19). Para isto precisaríamos fazer valer a Lei 11.645/2008. Ao mesmo tempo, aprofundar a formação das educadoras e educadores para atuarem neste sentido. Já têm ocorrido várias iniciativas em São Paulo e em outros lugares. Diferentes Parentes estão atuando nestas iniciativas. Eu mesmo ofereço cursos de formação nesta direção (“Histórias, Culturas Indígenas e a Cidade de São Paulo”. “Indígenas Identidades Paulistanas). Algumas universidades têm operado nesta formação. Conforme disse existem aliados atuando em diferentes espaços de formação abrindo estes lugares, como por exemplo a exposição que ocorreu entre 2018-2019 no Museu da Resistência (prédio do antigo DOPS) intitulada: “Ser Essa Terra: São Paulo Cidade Indígena”. São espaços como esses de diálogo uma outra forma importante para divulgar nossas falas e produções. Podemos falar hoje de literatura, arte, música, cinema e produção acadêmica indígena que são fundamentais. No entanto, acima de tudo uma coisa é fundamental: apoiar a Luta dos Povos Originários e de todas as pessoas por seus direitos contra os novos/velhos bandeirantes no poder. Para isto entendo que é necessário lutar contra os que estão no poder, como o atual presidente fascista e miliciano. Por isto a história é uma construção seletiva das memórias que possuímos sobre o passado. Os monumentos são construções seletivas feitas pelos donos do poder. Neste sentido precisamos construir nossas histórias a partir de nossas memórias mesmo que para isto seja necessário derrubar monumentos supremacistas aos velhos e novos bandeirantes. Deste modo, também precisamos construir juntos um mundo que já existe em muitos de nós. Um mundo onde existam vários mundos com igualdade social respeitando as diferenças.
(*) Casé Angatu (Carlos José F. Santos) é indígena e morador no Território Tupinambá em Olivença (Ilhéus/BA) na Taba Gwarïnï Atã; Docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia – Campus Jorge Amado (PPGER-UFSB-CJA); Docente da Universidade Estadual de Santa Cruz – (UESC/Ilhéus/BA); Pós-Doutorando no em Psicologia na UNESP/Assis; Doutor pela FAU/USP; Mestre em História pela PUC/SP e Historiador pela UNESP. A Coluna Imbau é um espaço no Correio da Cidadania aberto junto de organizações e indivíduos indígenas de 13 etnias diferentes, com a finalidade de divulgar as produções e o pensamento dos povos originários brasileiros e suas pautas. Este artigo foi escrito por Casé Angatu.
Nota do autor: Não irei aqui falar sobre as pessoas que colocaram fogo na estátua de Borba Gato porque não as conheço. A intenção é apresentar o ponto de vista de um indígena historiador e que escreve sobre o tema e a cidade de São Paulo, apesar de nossas leituras terem poucos espaços.
Nota do Correio da Cidadania: Casé Angatu é estudioso e especialista das línguas gerais e comunicação indígena. Algumas palavras que podem parecer “erradas” estão colocadas assim propositadamente, a fim de aproximar o trabalho da comunicação oral dos povos indígenas, de como se pronunciam as palavras.
Notas do texto: 1: “Entenda quem foram os bandeirantes e por que eles são homenageados em São Paulo” (Estadão) https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/entenda-quem-foram-os-bandeirantes-e-por-que-eles-sao-homenageados-em-sao-paulo,e4a454ef74a66ac515e37a6a2e15b292b9drni4k.html 2: “Estátuas racistas devem ser derrubadas? Veja o que dizem historiadores” (Estadão) https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/estatuas-racistas-devem-ser-derrubadas-veja-o-que-dizem-historiadores,75394e18101954ae2f8d3cec4180686a799acxa9.html 3: Vídeo: “É ISTO QUE CHAMAMOS DE TERRIÓRIO”. parte do Webdocumentário Mobiliário Urbano: moburb.org. https://www.facebook.com/682753167/videos/pcb.10157866940153168/10157866939318168 4: Vídeo: “Massacre do Cururupe” – parte do filme Îandê Yby: Nós Somos A Terra Tupinambá!” https://www.facebook.com/103931204760569/videos/149747936845562 Sugestões de leitura do autor: “Entenda o motivo do incêndio na Estátua de Borba Gato”: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/entenda-o-motivo-do-incendio-na-estatua-de-borba-gato/ “Estátua de Borba Gato: entenda porque manifestantes a incendiaram”: https://www.otempo.com.br/brasil/estatua-de-borba-gato-entenda-porque-manifestantes-a-incendiaram-1.2517456 Conheça o trabalho de Casé Angatu 1) ANGATU, Casé (SANTOS, Carlos José F. dos). Nem Tudo Era Italiano – São Paulo e Pobreza na virada do século (1870-1915). São Paulo: Annablume/FAPESP, 4a. Edição 2018. 2) ANGATU, Casé (SANTOS, Carlos José F. dos). Identidades Urbanas e Globalização – a formação dos múltiplos territórios em Guarulhos/SP. São Paulo: SINPRO/GRU, 2006 3) ANGATU, Casé (SANTOS, Carlos José F. dos). “Indígenas Identidades Paulistas”. In: Organizadores: COSTA, Paulo de Freitas, COSTA, Ana Cristina Moutela. Cadernos da Casa Museu Ema Klabin; v. 2: identidades paulistanas. São Paulo: Fundação Cultural Ema Klabin, Disponível Online em: https://emaklabin.org.br/…/cadernos-da-casa-museu…/… , 202017:374) ANGATU, Casé (SANTOS, Carlos José F. dos). “Ser Esta Terra: São Paulo Cidade Indígenas”. In: Espaço Ameríndio: Dossiê Agenciamentos Indígenas da Forma Museu. Porto Alegre: UFRGS, Disponível Online em: https://seer.ufrgs.br/EspacoAme…/article/view/102699/58300 , Jan/Jun de 2020. 5)ANGATU, Casé (Carlos José F. Santos) & TUPINAMBÁ, Ayra (Vanessa Rodrigues Santos). “Protagonismos Indígenas: (Re)Existências Indígenas e Indianidades”. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci e ROSSI, Mirian Silva (Orgs.) Índios no Brasil: Vida, Cultura e Morte. São Paulo: IHF; LEER/USP; Intermeios: 2019, p. 23-4.