Bolsonaro já atravessou o rubicão há muito tempo

Não tem sentido esperar pelo "Dia D". O golpe não é mais um evento. É um processo em desenvolvimento

Por Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

Acompanhar a crônica da crise democrática brasileira contemporânea é especialmente desafiador, pois envolve um novo tipo de racionalidade política. Temos na memória um modelo de crise democrática que não existe mais, que teve seu lugar em um mundo que não existe mais.

Na segunda metade do século XX, vários golpes militares derrubaram governos democráticos na América Latina. No contexto da guerra-fria, a coalização anti-democrática, formada pelo departamento de Estado dos EUA e por setores conservadores das diversas sociedades latino-americanas, apoiou intervenções golpistas das Forças Armadas, atores institucionais externos à dinâmica democrática. O golpe “clássico” é um evento, claramente demarcado no tempo e promovido de fora pra dentro.

A situação hoje é bastante diferente. A crise é provocada pela desconfiança da sociedade civil no primado da representação liberal. Em outras palavras: as pessoas não confiam na capacidade da classe política tradicional em representar seus interesses.

Na democracia representativa, a confiança é condição de existência. O cidadão, periodicamente, participa do rito eleitoral, escolhe seu representante e depois volta à casa, para cuidar de seus interesses privados, confiando na abstração da representação. Sem a confiança, sem essa abstração, a democracia liberal não se sustenta e a coletividade passa a viver em constante agitação.

Nos últimos anos, esse ceticismo e a desconfiança, foram alimentados à direita e à esquerda. O resultado foi o pior possível: o fortalecimento de autocratas eleitos, populistas de extrema direita, que tentam estabelecer relação direta com sua base social de apoio, boicotando a democracia de dentro pra fora.

Se na segunda metade do século XX, a democracia foi explodida de fora pra dentro, hoje ela está sendo implodida de dentro pra fora. É exatamente isso que está acontecendo no brasil agora, neste exato momento. O Brasil é o laboratório mundial para esse novo tipo de crise democrática.

Hoje, o golpe não é um evento, é um processo.

Jair Bolsonaro não subiu a rampa do Planalto em janeiro de 2019 para governar, no sentido usual do termo. Subiu para implodir a democracia. O golpe começou nesse momento. Tudo que fez ao longo desses quase três anos foi em função desse objetivo: deslegitimar as instituições da democracia liberal representativa. Não dá pra negar que está sendo muito eficiente.

Bolsonaro já atravessou o rubicão várias vezes, sempre dando um passo adiante, sempre implodindo a democracia mais um pouco.

É nessa chave que interpreto os acontecimentos de 7/9. Vimos mais um passo no processo de ruptura democrática em curso. É erro grave subestimar o que aconteceu. Os atos foram numericamente relevantes, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, o que demonstra que o bolsonarismo é forte, e já se apresenta como corrente de opinião consolidada na sociedade civil.

O inimigo não é exatamente a esquerda. É o sistema, simbolizado no STF, a alegoria da Bastilha na cultura política bolsonarista. O bolsonarista típico está convencido de que faz parte de uma revolução destinada a regenerar o país. O revolucionário é apaixonado, não negocia. É tipo político muito perigoso.

Bolsonaro opera em duas lógicas distintas:

1) A pragmática/institucional, entregando a chave do cofre para o centrão e mantendo Augusto Aras sob constante expectativa de nomeação para o STF. Assim, foram fechados os caminhos institucionais para o impeachment.

2) A agitação ideológica, viajando pelo país, estando perto de sua base, flexibilizando a legislação anti-armas, estimulando seus apoiadores a frequentarem clubes de tiro, doutrinando as PMs.

Assim, Bolsonaro garante o mandato enquanto conspira, enquanto continua a marchar sobre a democracia brasileira. O tempo corre a seu favor. Tudo que ele quer é sobreviver até outubro em 2022, se candidatar e tumultuar o processo eleitoral. Aposta que até lá terá uma base de 50 milhões de pessoas (aproximadamente 25% da população) ainda mais treinada, coesa e comprometida com a causa.

Bolsonaro não é um bravateiro. Tratá-lo assim significa subestimar o problema, é flertar, inconscientemente, com o colaboracionismo. Bolsonaro é um perigo real e concreto.

Não tem sentido esperar pelo “Dia D”. O golpe não é mais um evento. É um processo em desenvolvimento.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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