por Boaventura de Sousa Santos – A Cruel Pedagogia do Vírus
capítulo 2
A trágica transparência do vírus
Os debates culturais, políticos e ideológicos do nosso tempo têm uma opacidade estranha que decorre da sua distância em relação ao quotidiano vivido pela grande maioria da população, os cidadãos comuns– «la gente de a pie», como dizem os latino-americanos. Em particular, a política, que devia ser a mediadora entre as ideologias e as necessidades e aspirações dos cidadãos, tem vindo a demitir-se dessa função. Se mantém algum resíduo de mediação, é com as necessidades e aspirações dos mercados, esse mega cidadão informe e monstruoso que nunca ninguém viu nem tocou ou cheirou, um cidadão estranho que só tem direitos e nenhum dever. É como se a luz que ele projecta nos cegasse. De repente, a pandemia irrompe, a luz dos mercados empalidece, e da escuridão com que eles sempre nos ameaçam se não lhe prestarmos vassalagem emerge uma nova claridade. A claridade pandémica e as aparições em que ela se materializa. O que ela nos permite ver e o modo como for interpretado e avaliado determinarão o futuro da civilização em que vivemos. Estas aparições, ao contrário de outras, são reais e vieram para ficar.
A pandemia é uma alegoria. O sentido literal da pandemia do coronavírus é o medo caótico generalizado e a morte sem fronteiras causados por um inimigo invisível. Mas o que ela exprime está muito além disso. Eis alguns dos sentidos que nela se exprimem. O invisível todo-poderoso tanto pode ser o infinitamente grande (o deus das religiões do livro) como o infinitamente pequeno (o vírus). Em tempos recentes, emergiu um outro ser invisível todo-poderoso, nem grande nem pequeno porque disforme: os mercados. Tal como o vírus, é insidioso e imprevisível nas suas mutações, e, tal como deus (Santíssima Trindade, incarnações), é uno e múltiplo. Exprime-se no plural mas é singular. Ao contrário de deus, os mercados é omnipresente neste mundo e não no mundo do além, e, ao contrário do vírus, é uma bendição para os poderosos e uma maldição para todos os outros (a esmagadora maioria dos humanos e a totalidade da vida não humana). Apesar de omnipresentes, todos estes seres invisíveis têm espaços específicos de acolhimento: o vírus, nos corpos; deus, nos templos; os mercados, nas bolsas de valores. Fora desses espaços, o ser humano é um ente sem-abrigo transcendental.
Sujeitos a tantos seres imprevisíveis e todo-poderosos, o ser humano e toda a vida não-humana de que depende não podem deixar de ser iminentemente frágeis. Se todos estes seres invisíveis continuarem activos, a vida humana será em breve (se o não é já) uma espécie em extinção. Está sujeita a uma ordem escatológica e aproxima-se do fim. A intensa teologia que é tecida à volta dessa escatologia contempla vários níveis de invisibilidade e de imprevisibilidade. O deus, o vírus e os mercados são as formulações do último reino, o mais invisível e imprevisível, o reino da glória celestial ou da perdição infernal. Só ascendem a ele os que se salvam, os mais fortes (os mais santos, os mais jovens, os mais ricos). Abaixo desse reino está o reino das causas. É o reino das mediações entre o humano e o não humano. Neste reino, a invisibilidade é menos rarefeita, mas é produzida por luzes intensas que projectam sombras densas sobre ele. Este reino é composto por três unicórnios. Sobre o unicórnio, escreveu Leonardo da Vinci: «O unicórnio, através da sua intemperança e incapacidade de se dominar, e devido ao deleite que as donzelas lhe proporcionam, esquece a sua ferocidade e selvajaria. Ele põe de parte a desconfiança, aproxima-se da donzela sentada e adormece no seu regaço. Assim, os caçadores conseguem caçá- lo.» Ou seja, o unicórnio é um todo-poderoso feroz e selvagem que, no entanto, tem um ponto fraco, sucumbe à astúcia de quem o souber identificar.
Desde o século XVII, os três unicórnios são o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. São os modos de dominação principais. Para dominarem eficazmente têm de ser destemperados, ferozes e incapazes de se dominar, como adverte Da Vinci. Apesar de serem omnipresentes na vida dos humanos e das sociedades, são invisíveis na sua essência e na essencial articulação entre eles. A invisibilidade decorre de um sentido comum inculcado nos seres humanos pela educação e pela doutrinação permanentes. Esse sentido comum é evidente e é contraditório ao mesmo tempo. Todos os seres humanos são iguais (afirma o capitalismo); mas, como há diferenças naturais entre eles, a igualdade entre os inferiores não pode coincidir com a igualdade entre os superiores (afirmam o colonialismo e o patriarcado). Este sentido comum é antigo e foi debatido por Aristóteles, mas só a partir do século XVII entrou na vida das pessoas comuns, primeiro na Europa e depois no resto do mundo.
Ao contrário do que pensa Da Vinci, a ferocidade destes três unicórnios não assenta apenas na força bruta. Assenta também na astúcia que lhes permite desaparecer quando continuam vivos, ou parecer fracos quando permanecem fortes. A primeira astúcia revela-se em múltiplas artimanhas. Assim, o capitalismo aparentou ter desaparecido numa parte do mundo com a vitória da Revolução Russa. Afinal, apenas hibernou no interior da União Soviética e continuou a controlá-la a partir de fora (capitalismo financeiro, contra-insurgência). Hoje em dia, o capitalismo consegue a sua maior vitalidade no seio do seu maior inimigo de sempre, o comunismo, num país que em breve será a primeira economia do mundo, a China. Por sua vez, o colonialismo dissimulou o seu desaparecimento com as independências das colónias europeias, mas, de facto, continuou metamorfoseado de neocolonialismo, imperialismo, dependência, racismo, etc. Finalmente, o patriarcado induz a ideia de estar moribundo ou enfraquecido em virtude das vitórias significativas dos movimentos feministas nas últimas décadas, mas, de facto, a violência doméstica, a discriminação sexista e o feminicídio não cessam de aumentar. A segunda astúcia consiste em capitalismo, colonialismo e patriarcado surgirem como entidades separadas que nada têm que ver umas com as outras. A verdade é que nenhum destes unicórnios em separado tem poder para dominar. Só os três em conjunto são todos poderosos. Ou seja, enquanto houver capitalismo, haverá colonialismo e patriarcado.
O terceiro reino é o reino das consequências. É o reino em que os três poderes todo-poderosos mostram a sua verdadeira face. É esta a camada que a grande maioria da população consegue ver, embora com alguma dificuldade. Este reino tem hoje duas paisagens principais onde é mais visível e cruel: a escandalosa concentração de riqueza/extrema desigualdade social e a destruição da vida do planeta/iminente catástrofe ecológica. É ante estas duas paisagens brutais que os três seres todo- poderosos e suas mediações mostram aquilo a que nos conduzem se continuarmos a considerá-los todo-poderosos. Mas serão eles todo- poderosos? Ou não será a sua omnipotência apenas o espelho da induzida incapacidade dos humanos de os combater? Eis a questão.
A realidade à solta e a excepcionalidade da excepção. A pandemia confere à realidade uma liberdade caótica, e qualquer tentativa de a aprisionar analiticamente está condenada ao fracasso, dado que a realidade vai sempre adiante do que pensamos ou sentimos sobre ela. Teorizar ou escrever sobre ela é pôr as nossas categorias e a nossa linguagem à beira do abismo. Como diria André Gide, é conceber a sociedade contemporânea e a sua cultura dominante em modo de mise en abyme. Os intelectuais são os que mais deviam temer esta situação. Tal como aconteceu com os políticos, os intelectuais também deixaram, em geral, de mediar entre as ideologias e as necessidades e as aspirações dos cidadãos comuns. Medeiam entre si, entre as suas pequenas-grandes divergências ideológicas. Escrevem sobre o mundo, mas não com o mundo. São poucos os intelectuais públicos, e também estes não escapam ao abismo destes dias. A geração que nasceu ou cresceu depois da Segunda Guerra Mundial habituou-se a ter um pensamento excepcional em tempos normais. Perante a crise pandémica, têm dificuldade em pensar a excecão em tempos excepcionais. O problema é que a prática caótica e esquiva dos dias foge à teorização e exige ser entendida em modo de sub-teorização. Ou seja,
como se a claridade da pandemia criasse tanta transparência que nos impedisse de ler e muito menos reescrever o que fôssemos registando no ecrã ou no papel. Dois exemplos. Logo no irromper da crise pandémica, Giorgio Agamben insurgiu-se contra o perigo da emergência de um Estado de excepção. O Estado, ao tomar medidas de vigilância e de restrição da mobilidade sob o pretexto de combater a pandemia, adquiriria poderes excessivos que poriam em causa a própria democracia. Esta advertência faz sentido e foi premonitória em relação a alguns países, nomeadamente a Hungria. Mas foi escrita num momento em que os cidadãos, tomados de pânico, constatavam que os serviços nacionais de saúde não estavam preparados para combater a pandemia e exigiam que o Estado tomasse medidas eficazes para evitar a propagação do vírus. A reacção não se fez esperar, e Agamben teve de voltar atrás. Ou seja, a excepcionalidade desta excepção não lhe permitiu pensar que há excepções e excepções e que, em face disso, teremos de distinguir no futuro não apenas entre Estado democrático e Estado de exceção, mas também entre Estado de excepção democrático e Estado de excepção anti-democrático. O segundo exemplo diz respeito a SlavojŽižek, que na mesma altura afirmou que a pandemia demonstrava que o «comunismo global» era a única solução futura. A proposta vinha no seguimento das suas teorias em tempos normais, mas era inteiramente descabida em tempo de excepção excepcional. Também ele teve de reconsiderar. Por muitas razões, tenho defendido que o tempo dos intelectuais de vanguarda acabou. Os intelectuais devem aceitar-se como intelectuais de retaguarda, devem estar atentos às necessidades e às aspirações dos cidadãos comuns e saber partir delas para teorizar. De outro modo, os cidadãos estarão indefesos perante os únicos que sabem falar a sua linguagem e entender as suas inquietações. Em muitos países, esses são os pastores evangélicos conservadores ou os imãs do islamismo radical, apologistas da dominação capitalista, colonialista e patriarcal.
Imagens de Antonello Veneri, nascido em Trento, uma pequena cidade da Itália, o fotógrafo vive no Brasil e seu olhar, espetacularmente baiano, revela-nos durante a pandemia detalhes de nossas veredas.
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