Belo Horizonte se inspira na gripe espanhola e cerca o covid-19

Até mesmo as estátuas de Carlos Drummond de Andrade e do médico e escritor Pedro Nava foram usadas para a campanha pelo uso das máscaras
Edifício JK, um projeto de Oscar Niemeyer, foi usado para apelos à população para ficar em casa

Graças às rápidas medidas adotadas pelas autoridades e pela população, quase cem anos depois Belo Horizonte poderá registrar um baixo índice de mortes pelo covid-19, a exemplo do que ocorreu durante a peste da gripe espanhola, em 1918. É o que já apontaram os primeiros estudos de um grupo de epidemiologistas. A gripe espanhola matou entre 20 a 50 milhões de pessoas em todo o mundo. Em Belo Horizonte a peste provocou 282 mortes, um número bem abaixo do registrados em inúmeras cidades brasileiras e da Europa, segundo estudos da historiadora mineira Heloísa Starling, da UFMG.

Para se ter uma ideia, o isolamento social determinado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e adotado pela prefeitura de Belo Horizonte já evitou 2.128 casos de contaminação pelo novo coronavírus. Esse levantamento foi realizado entre os dias 16 de março e 7 de abril pelo infectologista e epidemiologista Carlos Starling, pelo engenheiro de produção Joaquim José da Cunha Júnior e pelo doutor em bioengenharia Bráulio Couto. “Essa é uma amostra representativa, mas esse número deve ser muito maior. Estamos evitando um percentual de mortes muito significativo”, disse Starling ao portal O Tempo. 

O levantamento mostra um comparativo da curva de infecções em BH, na Itália e na Suíça. Nesses países europeus, os casos esperados de Covid-19 são muito superiores se confrontados aos da capital. “Temos conseguido manter em níveis muito mais baixos e uma curva muito menos íngreme do que temos na Itália, na Suíça e nos Estados Unidos também, por exemplo”, observou o epidemiologista.

Isso se deve, segundo Starling, às medidas impostas. “O isolamento social é fundamental e uma arma efetiva, tem lastro científico. Já demonstramos que a estratégia está correta. É isso que se espera de quem dirige um país, um Estado ou um município”, afirmou.

Além do isolamento, Carlos Starling salienta outras precauções que devem ser tratadas como prioritárias, como lavar as mãos regularmente com água e sabão e álcool em gel, evitar tocar o rosto e ter o mínimo de convívio social possível, no caso daqueles que não podem adotar o confinamento. Ele acredita que uma flexibilização da política de distanciamento traria consequências trágicas à população. “Temos acompanhado a realidade com dados estatísticos e epidemiológicos. Você não tira isso da cartola, tal dia é o ‘Dia D’ para liberar tudo. O isolamento não tem um tempo definido para acabar”.

A gripe espanhola

Em 1918, em cerca de 90 dias a febre espanhola infectou um quinto da população mundial e matou entre 20 a 50 milhões de pessoas. A gripe desembarcou no Rio de Janeiro provavelmente no dia 14 de setembro. Veio de Lisboa no barco “Demerara” que atracou no porto com gente doente a bordo. Os tripulantes desceram na Praça Mauá sem que ninguém prestasse muita atenção, mas já estavam contaminados e contaminando. Pouco depois, a gripe chegou a São Paulo vinda do Rio de Janeiro e cinco mil paulistanos morreram até o final de dezembro. 

Em Belo Horizonte, a gripe espanhola durou três meses. A população girava em torno de 45 mil habitantes e a doença derrubou cerca de 15 mil pessoas. “Os registros apontam 282 mortes, mas faltam dados. Quantos faleceram fora dos hospitais? Quantos óbitos foram notificados? Não sabemos”, diz Heloísa Starling.

No dia 7 de outubro, um oficial da Vila Militar, no Rio de Janeiro, desembarcou na Praça da Estação da capital mineira junto com a família. Instalaram-se, numa casa do bairro da Floresta e, dois dias depois, os primeiros sintomas da gripe espanhola apareciam. “Quem morava no bairro entrou em pânico assistindo à chegada dos enfermeiros responsáveis pela transferência imediata dos doentes para o Hospital de Isolamento, e dos funcionários da Diretoria de Higiene, o equivalente hoje à Secretaria de Saúde, devidamente paramentados, transportando, em carroças da prefeitura, o equipamento para desinfecção da casa”, contou a historiadora Heloísa Starling em trabalho encomendado pelo portal G1.  

As praças da Liberdade e do Papa, esta aos pé da Serra do Curral, foram fechadas para evitar caminhadas e  aglomeração

O surto não tinha nada de benigno, a doença avançava com rapidez pela zona urbana, suburbana e rural e atacava qualquer pessoa: ricos e pobres, homens, mulheres, crianças, velhos, jovens, fracos ou atléticos, sem distinção.

O médico Samuel Libânio, responsável pela Diretoria de Higiene, suspendeu o comércio e ordenou o fechamento das lojas; os proprietários obedeceram, mesmo a contragosto. As ruas ficaram vazias, cafés e bares, cinemas, clubes e casas de diversão às moscas, a circulação dos bondes foi reduzida. Os estabelecimentos de ensino suspenderam as aulas, inclusive as faculdades. Tudo ficou deserto, menos as farmácias, onde uma multidão se aglomerava em busca dos medicamentos que começavam a faltar.

“Em Belo Horizonte, a gripe espanhola se alastrou indiferente pelos bairros. Os hospitais não dispunham de capacidade para receberem tantos doentes ao mesmo tempo, e era urgente criar um serviço de hospitalização para mendigos e para a população pobre. Havia dificuldades de abastecimento, risco de desemprego, queda no volume de negócios, perigo de falência, desestruturação dos elementos que constroem o cotidiano das pessoas. Quem não era funcionário público, não recebia salário mensal e vivia exclusivamente do trabalho diário, ficou em situação precária, iam faltar recursos. Não existia remédio disponível para todo mundo e as pessoas não podiam dominar a epidemia, mas descobriram que era possível juntar esforços para tentar combatê-la”, observa Heloísa Starling.

“Reconhecer isso uniu a população. A Congregação da Faculdade de Medicina transformou o prédio da sua Escola em hospital provisório com 112 leitos e nove enfermarias, e orientou professores e estudantes a irem além do atendimento interno, prestando serviços nos inúmeros postos de saúde que estavam sendo abertos na cidade. A Escola de Enfermagem ainda não existia, mas a Congregação da Medicina não titubeou e os médicos convocaram as enfermeiras da Cruz Vermelha para o trabalho nos hospitais e elas responderam imediatamente”, destaca a historiadora.

“Cem anos depois, Belo Horizonte volta a enfrentar uma nova epidemia e imagens de pesadelo estão se espalhando por toda Minas Gerais. Ninguém recria o já vivido, e é certo que a História nunca se repete. Mas, por vezes, podemos arriscar e pedir algo emprestado ao passado. Talvez seja hora de tentarmos esse empréstimo. Para enfrentarmos juntos o tempo sombrio que estamos vivendo”, conclui Heloísa Starling.

E cem anos depois, quem está à frente da luta contra o coronavírus é o prefeito Alexandre Kalil (PSD), que, ao contrário do governador Romeu Zema (Novo), não titubeou em partir imediatamente para o combate à peste. Usando as mesmas estratégias do passado, Kalil, ex-presidente do Clube Atlético Mineiro, e acostumado a lidar com a massa atleticana, passou a utilizar de todos os meios para fazer com que a população ficasse em casa, o que não foi fácil.

Começou a ser atacado por aqueles contrários ao isolamento, como os bolsonaristas. Mas partiu para o enfrentamento. No alto do bairro Mangabeiras, por exemplo, botou a Guarda Municipal para dispersar uma carreata que ameaçava descer a Avenida Afonso Pena rumo ao centro da cidade. Para impedir o retorno daqueles que buscavam as farras e as churrascadas nos condomínios da vizinha Lagoa Santa e da Serra do Cipó, Kalil baixou decreto impedindo que ônibus daquela cidade entrassem na capital, medida que acabou estendida a outros municípios. “As pessoas vão para a farra, não se protegem, se infectam e depois vêm encher nossos hospitais”, esbravejou.

Para impedir que alguns teimosos insistissem em fazer caminhadas pela orla da Lagoa da Pampulha, por praças e parques de Belo Horizonte, o prefeito mandou cercá-los ou suspender o funcionamento. Por fim, assinou decreto determinando que a partir do dia 17 de abril todos os moradores deveriam usar máscaras em locais públicos. O resultado é que as ruas e avenidas passaram a ficar vazias e o comércio fechado, enquanto a população se colocava em isolamento se precavendo contra o covid-19. Até este domingo, 19, Minas contava 39 mortes provocadas pelo coronavírus. Belo Horizonte mostrava-se estabilizada, registrando oito mortos, número idêntico ao de Macapá, Sorocaba (SP) e São João do Meriti (RJ) e 440 pessoas infectadas pela doença. A expectativa é de que ela seja contida em Belo Horizonte, a exemplo do passado, um bom motivo para que todos fiquem em casa.                                                        

 

 

 

 

 

 

 

 

 

POSTS RELACIONADOS

Plano Diretor da Grande BH para quem?

Por frei Gilvander Moreira[1] Ferramenta constitucional para o planejamento metropolitano, prevista no artigo 46, inciso III da Constituição do Estado de Minas Gerais de 1989,

Domingo em defesa da Serra do Curral

Organizado com o apoio de mais de 100 entidades, coletivos ambientais, movimentos sociais aconteceu em Belo Horizonte (MG) neste domingo (4/6) o 6º Abraço à